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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

2.6 O complexo das ideologias: alguns aspectos relevantes

2.6.1 Ideologia como falsa consciência

Em “A ideologia Alemã”, Marx e Engels (1998) criticam o idealismo filosófico que dominava o cenário intelectual alemão na primeira metade do século XIX, quando os jovens hegelianos propunham revolucionar o campo do pensamento social através da crítica às ideias falsas de seu tempo. Uma das fantasmagorias mais combatidas pelos jovens hegelianos dizia

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respeito à representação de Deus como a origem de todas as coisas: o homem, verdadeiro criador da ideia de Deus, não deveria se inclinar diante de sua criação. Por isso, eles propunham retirar da cabeça das pessoas as representações supersticiosas e religiosas, a fim de revolucionar o mundo governado por ideias falsas tendo em vista outro mundo fundamentado na consciência crítica. Marx e Engels criticam duramente a suposta revolução desejada pelos jovens hegelianos, para os quais transformar a consciência equivaleria a interpretar de modo diferente a realidade existente. Isso não vai além da troca de uma fraseologia por outra, segundo a crítica mordaz dos fundadores do materialismo histórico.

A essa concepção idealista, Marx e Engels opõem uma concepção materialista da história das formações sociais, cujas bases são assim apresentadas: “Nenhum desses filósofos17

teve a ideia de perguntar qual era a ligação entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a relação entre a sua crítica e o seu próprio meio material” (1998, p. 10). Tem-se aí uma formulação embrionária do materialismo histórico, que coloca as condições materiais de existência como ponto de partida necessário para a compreensão da natureza das relações sociais desenvolvidas entre os humanos, bem como para o entendimento do complexo das ideologias. Como salientam os autores,

A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete realmente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, isto é, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de produção (MARX e ENGELS, 1998, p. 10).

Esse princípio geral faz do materialismo histórico uma teoria das lutas de classe articulada a uma teoria materialista das ideologias. Ele indica um norte seguro para pensar a constituição material dos sentidos e dos sujeitos, não mais concebidos como entidades autônomas, mas como produtos de determinadas relações sociais e históricas resultantes do modo como se produz a vida material da coletividade. Esse princípio nos permite pensar o discurso musical filiado à ideologia hedonista como um complexo da vida social relacionado com a maneira pela qual homens e mulheres produzem materialmente sua existência e como essa produção material afeta o modo como eles vivenciam as experiências dos desejos e prazeres sexuais. As ideias e representações dos sujeitos acerca dessas experiências não brotam dos céus, elas nascem da natureza das relações sociais concretas que ordenam sua atuação no mundo dos homens. Nas palavras de Marx e Engels,

A produção das ideias, das representações e da consciência está, a princípio, direta e indiretamente ligada à produção material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem como a emanação direta de seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, na das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo. São os homens que produzem suas representações, suas ideias etc., mas os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas que estas podem tomar (1998, p. 18).

É desse postulado fundante do materialismo histórico, para o qual as ideologias emanam das relações sociais concretas, que Michel Pêcheux deriva a categoria condições de produção do discurso, fazendo dela uma categoria central em AD. A tese segundo a qual os sentidos e os sujeitos são determinados pela processualidade histórica só adquire relevância teórica no interior da AD, se a concepção de história implicada nessa determinação estiver relacionada com as condições materiais nas quais, através de suas práticas discursivas, os sujeitos significam o mundo e a sua própria existência. Isso significa ir além das noções de “contexto” de usos da língua ou de “situação” comunicativa, uma vez que requer mais que o conhecimento dos elementos envolvidos imediatamente num “ato de fala” (emissor, receptor, mensagem etc.). Pensar o discurso da música carnavalesca baiana, relacionando-o às suas respectivas condições de produção discursiva exige uma análise da própria estrutura da sociedade capitalista e suas formas de entretenimento e festividades urbanas. A categoria condições de produção do discurso, portanto, coloca questionamentos para problemas linguísticos, no interior da própria Linguística, aprofundando e ampliando o alcance das análises.

Como obra seminal do materialismo histórico, “A ideologia alemã”, ao mesmo tempo em que lança as bases concretas para uma teoria materialista das formações sociais (seu ponto mais forte), tem suscitado interpretações controvertidas dos processos ideológicos como falsa consciência. Essas interpretações quase sempre partem da formulação em que Marx e Engels generalizam como traço característico do fenômeno ideológico a apresentação das relações entre os homens de cabeça para baixo, invertendo a realidade de forma semelhante ao efeito produzido por uma câmera escura. Eis o que dizem os autores,

A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E, se, em toda ideologia, os homens e suas relações nos aparecem de cabeça para baixo como em uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico (MARX e ENGELS, 1998, p. 19).

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Não há como negar que as ideologias funcionam, muitas vezes, invertendo a realidade das coisas, embora essa não seja sua única função. Segundo Gorender (1998), o problema, porém, é que Marx e Engels nunca se referiram à sua própria teoria como uma ideologia. Ao contrário, tomavam-na como uma reconstrução científica da realidade social, sem deixar de ser a expressão dos interesses da classe proletária, que era apresentada como a única classe em condições de se libertar da ilusão ideológica e atingir uma percepção objetiva da história humana e da sociedade em que vivia. De fato, “A ideologia alemã” é a matriz teórica que sugeriu elementos para leituras da ideologia como falsa consciência, embora essa não seja a única leitura que se possa fazer de um trabalho seminal. Quando Marx e Engels falam de ideologia dominante, não resta dúvida de que estão falando também de ideologias dominadas. Portanto, ideologias em conflitos.

Eles denunciam: na sociedade capitalista, as classes que detêm os meios de produção material dominam também os meios de produção intelectual, de modo que os pensamentos e a ideologia dominantes são, como em todas as sociedades de classe, os pensamentos e a ideologia da classe dominante. As ideias dessa classe se apresentam separadas de seus produtores e passam a existir autonomamente, aceitas como verdades universais. Assim, como obra fundadora de uma matriz teórica da magnitude do materialismo histórico, “A ideologia alemã” abriu um debate rico e controvertido em torno do complexo da ideologia, o qual foi desenvolvido e aprofundado por outras reelaborações marxistas, entre as quais destacamos aqui a contribuição de Lukács (2013), à qual nos filiamos.

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