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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

2.6 O complexo das ideologias: alguns aspectos relevantes

2.6.2 Ideologia como função social

Nas sociedades desenvolvidas, onde a divisão social do trabalho alcançou um elevado grau de complexidade, já se sabe que qualquer ato humano tem em sua origem as prévia- ideações, as quais constituem um conjunto de ideias e pensamentos elaborados pela consciência dos que põem finalidades a outros seres humanos (LUKÁCS, 2013). Ao conjunto dessas ideias e pensamentos – que elaboram idealmente determinadas visões de mundo e orientam as tomadas de decisão concernentes às grandes e pequenas questões com as quais os sujeitos se deparam nas realidades em que vivem – chamamos, juntamente com Lukács, ideologia.

Nesse sentido, a concepção de ideologia com a qual trabalhamos não reduz os fenômenos ideológicos à função de elaborar falsas consciências, com o objetivo de velar aos olhos das classes oprimidas o processo pelo qual determinada forma hierarquizada de divisão social do trabalho produz a sua alienação, o seu alijamento do usufruto dos bens e produtos

resultantes de sua própria atividade laboral. A ideologia, no palco das lutas sociais, pode funcionar tanto a serviço da ocultação dos antagonismos estruturantes da sociedade, quanto na direção contrária, desvelando-os, desmascarando suas contradições fundamentais. Nesse sentido, Lukács se contrapõe à vertente marxista que equipara ideologia a uma ilusão ou falsificação do real e que, ao mesmo tempo, concebe a ciência como a expressão neutra da realidade. Lukács descarta a interpretação que contrapõe ideologia (falsificação) a ciência (revelação do real). Para ele, nem a ideologia tem a função exclusiva de inverter a realidade, nem a ciência é imune aos conflitos sociais e suas mediações. A teoria da ideologia como falsa consciência distingue ciência e ideologia mediante critério gnosiológico: conhecimento científico (verdadeiro); ideológico (falso). Como explicita Lessa (2007), essa abordagem gnosiológica do fenômeno ideológico se aproxima do marco do positivismo, na medida em que supõe uma pretensa neutralidade científica. Lukács avança muito além dessa perspectiva ao teorizar que

Nem um ponto de vista verdadeiro ou falso, nem uma hipótese, teoria etc., científica verdadeira ou falsa constituem em si e por si uma ideologia: eles podem vir a se tornar ideologia, como vimos. Eles podem se converter em ideologia só depois que tiverem se transformado em veículo teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou menor amplitude, determinantes do destino do mundo ou episódicos (2013, p 467). Portanto, o critério gnosiológico de verdade ou falsidade não serve para definir a natureza da ideologia. Essa definição está relacionada com a função social que uma opinião, uma hipótese ou uma teoria desempenham em determinadas condições materiais de existência determinadas pelos conflitos de classe e atravessadas por outros conflitos como os de gênero, de etnia etc. Tal como exemplifica Lukács (2013), a teoria astronômica heliocêntrica de Galileu, bem como a teoria evolucionista de Darwin não são, em princípio, ideologias. Pouco importa, para a compreensão dos fenômenos ideológicos, se elas sejam teorias verdadeiras (elaboradas em direção à intentio recta) ou falsas (forjadas por uma intentio oblíqua), como também é irrelevante sua simples afirmação ou negação. O que é essencialmente determinante do complexo da ideologia é a função social desempenhada por determinado conhecimento. Tanto o heliocentrismo quanto o evolucionismo, sem deixar de ser ciência, tornam-se ideologias quando passam a ser um conhecimento usado para combater o conservadorismo da visão de mundo dominante em seu tempo, a qual atribuía uma origem divina para a vida orgânica e seu desenvolvimento, bem como endossava uma visão segundo a qual a Terra era o centro do universo. Nessas condições, esses saberes participam dos conflitos sociais propondo

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determinadas escolhas alternativas para a solução de dilemas humanos. Logo, exercem funções e se constituem como ideologias.

O trabalho, categoria fundante do ser social, impulsiona o homem para atividades que não se reduzem ao próprio ato de trabalhar. Outros complexos surgem nas sociedades em que as forças produtivas se ampliam e a divisão social do trabalho adquire um nível elevado. Muitos dos novos complexos adquirem a função de regular a práxis social dos indivíduos nos limites necessários para a reprodução social. Eles, constituindo-se no campo das posições teleológicas secundárias, relacionam-se com o complexo da ideologia, entendida como uma

forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos do ser social; nesse sentido, toda ideologia possui o seu ser-precisamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade (LUKÁCS, 2013, p. 465).

A ênfase quase tautológica na determinação social da ideologia traz a memória da matriz materialista apresentada por Marx e Engels na obra seminal “A ideologia alemã”. Não há que se procurar a ideologia em outro lugar, que não seja nas próprias relações sociais que se estruturam antagonicamente a partir do surgimento das classes sociais. Quando o modo de produzir os meios de existência passou a se basear na exploração do trabalho da maioria pela minoria, esta impondo a finalidade de trabalhar àquela, surgem os antagonismos conflituosos que opõem o homem ao próprio homem, cuja defesa de interesses agora exige o auxílio de outros complexos encarregados de regular a práxis social de homens e mulheres. Nesse sentido, é a sociedade de classes que dá origem, por exemplo, ao direito, como complexo que deve regular juridicamente os conflitos sociais, tendo em vista a reprodução dessa mesma sociedade18.

Depreende-se daí que uma das funções sociais importantíssimas da ideologia consiste em regular a práxis social tornando possível ou operativa a reprodução dos antagonismos que estruturam a vida em sociedade. Para isso, ela vai oferecendo aos indivíduos determinadas concepções e visões de mundo que orientam, justificam e dão sentido a seu agir em meio aos conflitos sociais à sua volta. Lessa (2007, p. 69) explica que a ideologia tem por função fornecer

18Lessa (2007) demonstra como, de complexo que se origina com a sociedade de classes, o direito passou a ser

visto atualmente como um domínio do conhecimento que origina a vida em sociedade. Nega-se que o desenvolvimento da vida social deu origem ao direito, afirmando que o estabelecimento da ordem jurídica teria fundado a sociedade. O complexo fundado pela sociedade de classes se apresenta como fundante da vida social.

“respostas genéricas que permitam ao indivíduo não apenas compreender o mundo em que vive, mas também justificar sua práxis cotidiana, torná-la aceitável, desejável, natural”.

Mas a ideologia não apenas oferece justificativas para a práxis social dos indivíduos, através de respostas genéricas, visto que ela funciona também como “um meio de luta social, que caracteriza toda sociedade, pelo menos as da “pré-história”19 da humanidade” (LUKÁCS,

2013). A luta de classes tem na ideologia um de seus momentos mais importantes, porque é na esfera ideológica que determinados valores atrelados a determinadas finalidades postas podem ou não ser objetivados por determinadas escolhas alternativas. É na esfera da ideologia que ocorrem as disputas entre opressores e oprimidos para a objetivação de certas posições teleológicas em detrimento de outras, atendendo a objetivos emancipatórios ou desumanizadores.

Esse modo de operar da ideologia, sempre relacionada a finalidades postas e escolhas alternativas em disputa, atravessa também o discurso da música carnavalesca baiana e os conflitos inerentes à ideologia hedonista. A espetacularização do corpo e da sexualidade feminina, objetivada no discurso da música carnavalesca baiana, resulta de determinadas finalidades postas e de escolhas alternativas que traduzem ideologicamente os conflitos de gênero e de classe, entre outros. Enfim, a ideologia, nunca é demais lembrar, exerce uma função social no conjunto complexo dos conflitos sociais, entre os quais as questões de poder e dominação envolvendo homens e mulheres.

19A noção de “pré-história” a que se refere Lukács dialoga com a concepção marxiana de sociedade de classes

como um estágio pré-histórico da humanidade. Pré-histórico no sentido de que ainda vai ser preciso superar as contradições de classe para o homem conquistar sua emancipação e inaugurar um período em que ele determina a sua história.

3 O DISCURSO MUSICAL:MEMÓRIAS DO DIZER E CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

Nenhum discurso é desprovido de memória, nem existe alheio às suas condições de produção. Ao contrário, os discursos só ganham vida, adquirem forma, produzem sentidos e passam a circular numa realidade social específica porque têm uma memória que lhes dá sustentação e porque as condições de sua produção já estão estabelecidas. Por isso, pensamos o discurso materializado em letras da música carnavalesca baiana a partir dessas duas categorias fundamentais para a Análise de Discurso: memória discursiva e condições de produção. Por meio delas, esperamos ampliar e aprofundar o alcance de nossa análise, de maneira que se tornem mais inteligíveis as determinações históricas dos sentidos no discurso musical tomado como nosso objeto de estudo.

O conceito de memória discursiva com o qual trabalhamos está relacionado com o que Michel Pêcheux (2009) denomina interdiscurso, dizeres já-ditos, pré-construídos que entram no discurso do sujeito sem que ele tenha consciência disso. A ideia básica é aquela de que algo falado/dito antes, noutros lugares, por outros sujeitos e sob outras condições de produção discursiva, adentra os novos dizeres. As formulações discursivas do presente estão repletas de sentidos legados por discursos do passado, ainda que as formulações atuais funcionem deslocando, contestando, replicando ou apenas reproduzindo os sentidos de discursos pregressos. Assim, o discurso que se materializa na música carnavalesca baiana tem como condição de seu próprio dizer uma memória discursiva constituída por outros dizeres que o antecederam no espaço e no tempo. Os sentidos dos já-ditos por outros discursos musicais sobre os desejos e prazeres sexuais, de alguma maneira, condicionam os sentidos do discurso da música carnavalesca baiana, que, não obstante a ilusão adâmica de ser um dizer fundante e original, apenas faz a rede dos sentidos hedonistas historicamente instituídos se movimentar.

Já a categoria condições de produção, em Análise de Discurso, tal como cunhada por Michel Pêcheux (2009), procura dar conta das condições materiais de existência nas quais os sujeitos, assim situados, produzem discursos. Não se trata, portanto, de recuperar os elementos contextuais ou situacionais presentes numa cena enunciativa qualquer. As condições de produção do discurso fazem parte do quadro categorial da AD no sentido trabalhado numa perspectiva marxiana: a realidade socioeconômica, em última instância, determina as maneiras de ser, pensar, agir, desejar e sentir dos sujeitos. Embora os sentidos hedonistas apareçam na história da música popular urbana brasileira através de complexas mediações, o discurso musical filiado à ideologia do hedonismo está intimamente relacionado à história das nossas

relações de produção econômica. Apenas quando o crescimento das forças produtivas permitiu um determinado grau de desenvolvimento da vida urbana, originando novas necessidades de entretenimento, a música passou a fazer parte do cotidiano de milhares de brasileiros e brasileiras, inevitavelmente afetados pela heterogeneidade dos discursos musicais.

Portanto, esta terceira seção, teoricamente orientada por duas categorias essências à AD (memória discursiva e condições de produção), tem como objetivo ampliar a análise das determinações históricas dos sentidos que impregnam o discurso da música carnavalesca baiana. O percurso analítico se fez num movimento de idas e voltas, das condições amplas às condições estritas de produção discursiva e vice-versa. A separação entre o que é constitutivo da memória e o que concerne às condições de produção atende a uma necessidade operativa da análise, embora esses fenômenos existam entrelaçados. O importante é que, ao final da análise, tenhamos conhecido de que maneira a memória discursiva e as condições de produção do discurso participam do processo de constituição histórica dos sentidos no discurso hedonista materializado em letras da música carnavalesca baiana.

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