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4 A DOMINÂNCIA DA IDEOLOGIA HEDONISTA NO DISCURSO MUSICAL

4.4 Discurso musical e limites da alternativa hedonista/eudemonista

O discurso da música carnavalesca baiana, ao longo desses trinta anos de existência cantando prioritariamente o hedonismo/eudemonismo como alternativa posta, deixou, consciente ou inconscientemente, pistas e sintomas das condições materiais de sua produção,

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tanto pelo que foi e é dito quanto pelo que foi e tem sido silenciado. Um complexo de formações discursivas étnica, religiosa, moral, política, econômica e de gênero perpassa sua discursividade. De meados dos anos 1980 a início dos anos 1990, o dizer da axé music esteve mais em sintonia com as grandes questões que preocuparam a humanidade na segunda metade do século XX. No discurso da música carnavalesca baiana desse momento, abundavam os conclames por paz no mundo após as Duas Grandes Guerras mundiais e a explosão de outros conflitos armados em diferentes lugares do globo. Estava fresca ainda a memória atemorizante do risco de novos conflitos com proporções inimagináveis no contexto da Guerra Fria, tendo os Estados Unidos e a URSS como protagonistas de uma corrida armamentista com potenciais nucleares apocalípticos. Urgia pedir paz.

Dessa forma, o discurso do pacifismo produziu seus efeitos de sentido na textualidade da música “Grito de guerra”, que fez sucesso com o grupo Chiclete com Banana:

SD (26)

Vou caminhando entre flores e guerras Vou deslizando entre o bem e o mal Um pouco louco entre monstros e feras Sou cavaleiro do juízo final

A esperança é uma flecha de fogo Que faz arder no meu coração Eu canto e grito de novo Paz nesse mundo e união [...]

(GRITO DE GUERRA, [1986])

Dentro da lógica proposta pelo movimento hippie – mediante a bandeira do “Flower Power” e sob o lema “Faça amor, não faça guerra” – o sujeito do discurso diz que vai “caminhando entre flores e guerras e deslizando entre o bem e o mal”, para mais adiante revelar sua esperança de que ainda haja “Paz nesse mundo e união”. Entretanto, em “Grito de guerra”, que na verdade verbaliza um “Grito de paz”, a perspectiva do sujeito do discurso, que se opõe aos conflitos do mundo, não vai além de uma declaração de descontentamento contemplativo, cujo caráter idealista radica no etéreo plano da esperança (“A esperança é uma flecha de fogo / Que faz arder no meu coração”). Ao significar seu dizer filiando-se à ideologia do pacifismo, mas sem contar com meios concretos para promover a paz, o sujeito do discurso se significa como sujeito esperançoso que, em última instância, materializa a forma-sujeito idealista. Segue essa mesma lógica a Banda Mel na canção intitulada “Baianidade Nagô”:

[...]

Já pintou o verão Calor no coração A festa vai começar Salvador se agita Numa só alegria

Eternos Dodô e Osmar... Na Avenida Sete

Da paz eu sou tiete Na Barra o farol a brilhar Carnaval na Bahia Oitava maravilha Nunca irei te deixar Meu amor!

Eu vou!

Atrás do trio elétrico Vou!

Dançar ao negro Toque do agogô Curtindo minha Baianidade Nagô Iô! Iô! Iô! Iô! Eu queria

Que essa fantasia Fosse eterna

Quem sabe um dia a paz Vence a guerra

E viver será só Festejar!

(BAIANIDADE NAGÔ, [1991])

Na SD (27), Banda Mel dá voz a um discurso cujo sujeito, situando-se no contexto festivo do carnaval baiano, identifica-se como tiete da paz (“Da paz eu sou tiete”), fazendo a promoção do carnaval da Bahia: “Oitava maravilha” do mundo. Como uma réplica aos conflitos recentemente vivenciados pelo mundo (Guerra do Vietnã, Apartheid da África do Sul etc.), ele canta: “Eu vou! / Atrás do trio elétrico / Vou! / Dançar ao negro / Toque do agogô / Curtindo minha / Baianidade Nagô”. A alegria carnavalesca cantante de sua identidade étnica já se apresenta aqui como uma alternativa, ainda que conscientemente rotulada de fantasia, aos desmandos do mundo e como um caminho possível para a paz universal: “Eu queria / Que essa fantasia / Fosse eterna / Quem sabe um dia a paz / Vence a guerra / E viver será só / Festejar!”. Calçado pela ideologia do pacifismo, aos poucos, o discurso da música carnavalesca baiana, conforme reforça a sequência discursiva a seguir, vai produzindo imaginariamente um retrato da Bahia como um profano paraíso carnavalesco aqui na Terra:

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SD (28)

[...]

Bahia é carnaval é festa o ano inteiro que povo mais feliz

que se diverte sem dinheiro

(BAHIA É CARNAVAL, [1994])

A formação imaginária da Bahia como um eterno carnaval não apaga os indícios da luta de classe, mas subestima os antagonismos socioeconômicos como algo de pouca monta para se chegar a uma convivência alegre, pacífica e feliz, na medida em que se canta a felicidade do “povo” que, por sua natureza pacífica,“se diverte sem dinheiro”.Há nesse dizer um trabalho ideológico que habilmente dissocia dinheiro e felicidade no discurso que tem as camadas populares como auditório social. Está significando nele também o não menos ideológico elogio à capacidade que tem o baiano de ser feliz, apesar de não ter dinheiro. Donde se conclui, ainda ideologicamente, que não há necessidade de sair da pobreza para ser feliz e que, logicamente, não é preciso se rebelar contra as classes endinheiradas para alcançar a felicidade. Numa conjuntura em que ainda se confrontavam dois projetos de sociedade – capitalista ou socialista – o discurso da axé music silencia a alternativa revolucionária que propunha a construção de uma sociedade mais justa e igualitária sob bases socialistas, ao escolher a alternativa de cantar o hedonismo e o eudemonismo para os depauperados. Descartadas as vias do enfrentamento conflituoso, na linha dos sentidos míticos de um Brasil sem vocação bélica, a alternativa revolucionária é preterida pela alternativa hedonista/eudemonista.

No entanto, essa ideologia eudemonista da pobreza pacífica, alegre e feliz, da felicidade sem dinheiro – que, em função do intenso processo de monetarização das economias capitalistas, traduz-se como felicidade em precárias condições materiais de existência, devido à falta da mercadoria dinheiro, que é um equivalente geral de todas as demais mercadorias (MARX, 1998) – essa ideologia hedonista-eudemonista, que é também uma interpretação num determinado sentido, em determinada direção (ORLANDI, 2010), não constitui uma tendência homogênea no conjunto heterogêneo do discurso da música carnavalesca baiana. Como os rituais de interpelação ideológica são sujeitos a falhas e rachaduras que abrem espaço para derivas, deslocamentos e inversões (PÊCHEUX, 1990), no discurso da mesma axé music que canta/significa a Bahia como um paraíso, despontam sentidos que esboçam resistência à ordem estabelecida e a suas diversas formas de opressão.

A lógica antagônica e excludente que preside às relações entre os Estados nacionais na disputa imperialista pela hegemonia bélica, política e econômica aparece no discurso da música baiana quando ela lança seus olhos para dentro de casa:

SD (29)

[...]

Lá e cá, Norte és cópia Na Bahia existe Etiópia

Pro Nordeste o país vira as costas E lá vou eu

Moçambique hei!!!

Por minuto o homem vai morrer Sem ter pão, nem água pra beber E lá vou eu

Mas somos capazes

O nosso Deus a verdade nos traz Monumento da força e da paz E lá vou eu

[...]

(PROTESTO DO OLODUM, [1988])

O que sustenta o dizer “Na Bahia existe Etiópia / Pro Nordeste o país vira as costas” é uma visão macro e micro das desigualdades internacionais e regionais fincadas num histórico processo de exploração e distribuição injusta das riquezas produzidas pela humanidade no mundo capitalista. Sucesso com a Banda Mel, a canção “Protesto do Olodum” faz ecoar as manifestações contra a pauperização de países africanos, resultado do neocolonialismo europeu, que deixou as populações africanas em condições miseráveis de vida: “Moçambique hei!!! / Por minuto o homem vai morrer / Sem ter pão, nem água pra beber”. As contradições típicas das sociedades de classes e as formas de exploração do homem pelo homem, em escala nacional ou internacional, funcionam como pano de fundo que produz efeitos de sentido neste dizer da Banda Mel.

Em releitura da obra de Marx, bem como de uma vasta tradição marxista e antimarxista, Mészáros (2009) expõe os antagonismos explosivos do sistema sociometabólico do capital, cuja lógica excludente se objetiva pela disputa entre nações para exercer a hegemonia no mundo capitalista. Na lógica desse sistema sociometabólico, que só se reproduz mediante a exploração de uns poucos sobre a maioria, não há abrigo para todos, de modo que à opulência das nações mais poderosas do globo corresponde a extrema miséria dos Estados nacionais explorados e excluídos da disputa, a exemplo da Etiópia, Moçambique e quase a totalidade do continente

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africano. São essas as condições amplas de produção de uma fatia significativa do discurso da música carnavalesca baiana de fins dos anos oitenta. Estado com o maior contingente de população negra no Brasil, a Bahia tem sua identidade engendrada também por discursos musicais que a representam imaginariamente como a África brasileira, tomando como referência nossa histórica descendência étnica e a não menos histórica miséria socioeconômica. É essa historicidade que sustenta os sentidos do canto/dizer “Na Bahia existe Etiópia”.

Contudo, uma constante no dizer da música carnavalesca baiana desde sua emergência nos anos oitenta até a atualidade, os conflitos socioeconômicos se apresentam como um domínio sob o qual o homem se apequena em sua impotência política e contra o qual apenas o poder divino é capaz de interceder: “Mas somos capazes / O nosso Deus a verdade nos traz / Monumento da força e da paz”. Esse gesto de leitura dos conflitos do mundo, que cai numa concepção teleológica da história, faz de Deus o sujeito dos pores teleológicos necessários à humanidade, retira das mãos dos próprios homens o poder de construir sua história e suprime das classes oprimidas seu papel de protagonistas na luta contra as injustiças das quais são vítimas (LUKÁCS, 2013). Assim, a classe trabalhadora parece perder seu posto de sujeito revolucionário. Outras vozes, porém, parecem dispostas a desafiar o status quo:

SD (30)

[...]

Não quero mais essa conversa fiada Não quero mais ouvir essa piada Que o brasil é o país do futuro

Essa balela é pra trouxa, o povo anda duro Ei galera, vamos nessa

Nessa onda quero arrebentar Não quero mais ouvir essa conversa Papo de deixa disso, ou de deixa pra lá Consciência anda faltando

E más notícias andam mergulhando Pois hoje chega eu quero cantar

Que o povo que canta não me deixa calar (CONVERSA FIADA, [1991])

Na canção “Conversa fiada”, o sujeito do discurso, partindo de um pré-construído bastante conhecido por seu teor ideológico na propaganda oficial da Ditadura Militar, posiciona-se de um lugar de enfrentamento ideológico à retórica do governo: “Não quero mais essa conversa fiada / Não quero mais ouvir essa piada / Que o Brasil é o país do futuro / Essa balela é pra trouxa, o povo anda duro”. O mesmo enunciado que faz a propaganda do Brasil

como o país do futuro significa diferentemente na apropriação singular que o sujeito do discurso faz dele. As mesmas palavras e expressões, tal como ensina Pêcheux (2009), mudam de sentido de acordo com as posições ideológicas sustentadas pelos sujeitos. A contradição entre a propaganda oficial dos governos militares nas décadas de sessenta e setenta (“Brasil é o país do futuro”) e a situação socioeconômica real (“o povo anda duro”) faz resgatar à memória discursiva a tradicional descrença nas soluções políticas: “Essa balela é pra trouxa”.

Nos anos oitenta, não convenciam mais os sentidos de um Brasil grande, até mesmo porque a crise econômica se aguçava, a dívida externa crescia e o propalado “Milagre econômico” já havia perdido seu sentido miraculoso. Se noutras canções o discurso da música carnavalesca baiana recorre à intervenção divina para solucionar os problemas do mundo, em “Conversa fiada”, tem-se uma alternativa também muito revisitada pela tendência hedonista/eudemonista dessa música: cantar e dançar como comportamentos dominados pelo princípio de prazer a fim de esquecer os descontentamentos da vida regida pelo princípio de realidade: “Pois hoje chega eu quero cantar / Que o povo que canta não me deixa calar”.

Embora com menos frequência, não apenas vestígios, mas também a tematização deliberada das condições de vida das camadas populares adentra o discurso da música carnavalesca baiana dos anos noventa e da primeira década do século XXI, tal como ocorre numa canção que fez sucesso na voz de Netinho:

SD (31)

Pra quem mora lá no morro Pra quem vive nas encostas Onde o diabo faz fogo Pra onde Deus viró as costas Pra quem vive na surdina Onde a luz não ilumina Onde a morte começa Aonde a vida termina Esse barraco vai cair Eu não me canso de avisar Ele não tem alvenaria Não tem coluna pra apoiar Ai eu não quero ver o dia Dessa zorra desabar [...]

Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh...Vai desabar... Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh...Não dá pra viver lá

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Ainda no campo da axé music, na música “Barracos”, o sujeito do discurso dá visibilidade a “quem mora lá no morro” ou a “quem vive nas encostas”, ou seja, “Onde o diabo faz fogo” e “Pra onde Deus virou as costas”. Um discurso que denuncia as injustiças nas formas de apropriação do espaço urbano e faz ver as condições de vida miseráveis nas periferias de Salvador. Uma realidade para a qual a divindade homenageada no nome da cidade (o Salvador, Jesus Cristo, o enviado de Deus) teria dado as costas e deixado seu oponente, o diabo, reinar. Efeitos do desencantamento religioso e da desfiliação momentânea à ideologia ascética funcionando no discurso musical baiano. Como seres sem voz, posto que vivem “na surdina”, e sem iluminação ou esperança, visto que vivem “Onde a luz não ilumina”, as camadas sociais mais desvalidas das periferias urbanas radicam “Onde a morte começa e Aonde a vida termina”.

Nessas condições materiais de existência, a desgraça alheia é previsível segundo o sujeito do discurso: “Esse barraco vai cair / Eu não me canso de avisar / Ele não tem alvenaria / Não tem coluna pra apoiar / Ai eu não quero ver o dia / Dessa zorra desabar”. Esse dizer, trazendo à tona imagens que não servem como cartão-postal da Bahia ou para promover a “marca Bahia”, parece romper com a vertente ocupada em erigi-la como o lugar onde a vida é uma eterna festa. O princípio de realidade parece ter suplantado momentaneamente o princípio de prazer que subjaz à ideologia hedonista. Mas, na verdade, aquele dizer se situa no mesmo lugar ideológico que faz a gente depauperada dançar e pular, em acelerado ritmo carnavalesco, ao som de sua estranha e familiar desgraça: “Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh...Vai desabar... / Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh..Oh... Não dá pra viver lá”. No fundo, a alternativa hedonista/eudemonista domina os sentidos do dizer da música carnavalesca baiana, eliminando qualquer forma de enfrentamento mais radical ao status quo.

Muito presente nas novas formas de sociabilidade chamadas “redes sociais”, cujo acesso se popularizou por aqui na primeira década do século XXI, o discurso que enuncia a chegada da opressora e indesejada segunda-feira ou da libertadora e ansiada sexta-feira foi cantado também por Netinho na música “Fim de semana”ainda na virada do milênio:

SD (32)

Fim de Semana é sexta-feira No final do expediente A gente enrola

A gente reza prá acabar Bababá! Barababá! [...]

Fim de Semana

E se Deus for brasileiro Cinco dias foi pedreiro

Sexta-feira foi pro bar Bababá! Barababá! [...] Na sexta à noite Na birita da esquina Lá passa a vida

Passa as pernas da menina É na moleza da conversa Não se sabe onde começa Nem onde termina... Mas não tem nada não Só tá começando O Fim de Semana O meu descanso E a curtição...(2x) [...] (FIM DE SEMANA, [1997])

Festejar a chegada do fim de semana é uma forma de celebrar a suspensão momentânea do mundo opressivo do trabalho abstrato, aquele que converte as forças humanas em mercadoria e anula as singularidades de cada trabalhador (MARX, 1998): “Fim de Semana é sexta-feira / No final do expediente / A gente enrola / A gente reza prá acabar”. O sujeito do discurso, através da expressão coletiva “a gente”, identifica-se como alguém que fala do lugar ocupado pela classe trabalhadora no modo de produção capitalista. Nesse sentido, sua voz funciona como uma caixa de ressonância dos dizeres dos trabalhadores que chegam à sexta-feira esgotados após jornadas de trabalho extenuantes. “Enrolar” é o exercício do que Foucault (1979) chama de micropoder, mediante o qual a classe trabalhadora pratica a resistência possível à lógica exploradora do capital, mas, é preciso acrescentar, trata-se de uma resistência que não altera sua condição de explorado.

Só é possível significar tão positivamente o fugaz “Fim de semana” porque a submissão às exaustivas jornadas de trabalho ao longo da semana pesa muito negativamente sobre os ombros de quem sequer pode usufruir do que produz. Para escapar ao que Freud (2010) caracteriza como mal-estar na civilização, a fuga da realidade opressiva encontra mais uma saída pela tangente: “Fim de Semana / E se Deus for brasileiro / Cinco dias foi pedreiro / Sexta- feira foi pro bar / Bababá! Barababá”! A onipresença divina, agora sem superpoderes porque imaginariamente humanizada na forma de um deus trabalhador brasileiro carnavalizado, teria ensinado o caminho do bar como o lugar do alívio, do refrigério alegre e festivo (“Bababá! Barababá”!): o avesso da fábrica, da indústria, do automatismo da linha de montagem, do comércio, da construção civil, dos canaviais etc. O discurso de sabor hedonista/eudemonista

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prossegue: “Mas não tem nada não / Só tá começando / O Fim de Semana / O meu descanso / E a curtição...” Até que a ordem não carnavalesca do mundo retorna numa segunda-feira de trabalho opressivo contra o qual nem Deus, nem a dança, nem o canto, nem a bebida alcoólica podem fazer nada. Limites do hedonismo/eudemonismo contra a realidade das condições materiais de existência.

Também no discurso do pagode baiano e de sua variedade próxima, o pagofunk, algumas letras tematizam as precárias condições materiais de existência do público ao qual essa música se destina. Esses discursos nascem e se desenvolvem como música do “povão”, como uma voz que vem da “favela” ou como um estilo musical do qual os moradores do “gueto” devem se orgulhar. A banda Psirico se identifica como a “banda do povão” e canta essa identidade com as camadas mais periféricas da sociedade baiana:

SD (33)

Não tem stress e nem fantasia Sou periferia

[...]

Sou da palafita, da favela Do alto do morro

Sou a voz do brasileiro

Pedindo socorro encarando a vida Eu bato na panela

Faço carnaval Apesar dos tropeços Tô em alto astral Sou um cara guerreiro De becos e guetos Não desisto nunca Sou brasileiro

Não tem stress e nem fantasia Sou periferia

[...]

(SOU PERIFERIA, [2010?])

Essa letra está atravessada pelo discurso da resignação, da aceitação da ordem social desigual e excludente como uma realidade evidente e inalterável, razão pela qual ninguém deve se estressar nem fantasiar outro mundo possível (“Não tem stress nem fantasia”). Ao contrário, o discurso de Psirico canta o orgulho de viver no espaços periféricos das grandes cidades: “Sou periferia”. O sujeito do discurso não se rebela contra as injustiças da ordem estabelecida, apesar de viver numa realidade específica das classes exploradas (“Sou da palafita, da favela /Do alto do morro”); ao contrário, mantém o alto astral e encara a vida com natural alegria: “Não tem stress e nem fantasia/Sou periferia”. Sua identidade periférica, projetada de forma

homogeneizadora como a “voz do brasileiro”, silencia a realidade heterogênea que inclui as identidades de outros brasileiros que habitam os espaços urbanos enobrecidos, mas que significam nesse dizer por efeito das condições de produção desse discurso: uma realidade urbana crivada em classes sociais distribuídas em espaços geográficos periféricos e centrais, empobrecidos e enobrecidos, assistidos e desassistidos. Outro exemplo dessa posição ideológica resignada frente à realidade urbana excludente é a canção “Firme e forte”, do mesmo grupo de pagode baiano:

SD (34)

Na encosta da favela tá difícil de viver E além de ter o drama de não ter o que comer Com a força da natureza a gente não pode brigar O que resta pra esse povo é somente ajoelhar E na volta do trabalho a gente pode assistir Em minutos fracionados a nossa casa sumir

Tantos anos de batalha, junto com o barro descendo E ali quase morrer é continuar vivendo

Êee chuá chuá, ê chuá chuá

Temporal que leva tudo, mas minha fé não vai levar Êee chuá chuá, ê chuá chuá

Oh, meu Deus, dai-me força pra outra casa levantar Eu tô firme, forte

Nessa batalha Eu tô firme, forte Não fujo da raia [...]

(FIRME E FORTE, [2010?])

Na SD (34), Psirico encarna o discurso das classes oprimidas que lamentam as condições

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