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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

2.5 O trabalho e as práticas discursivas

2.5.2 A teleologia secundária e o complexo dos valores

Com as posições teleológicas secundárias, as relações sociais desenvolvidas fazem da autotransformação do sujeito um novo objeto de pores teleológicos, com o caráter de um dever-

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ser, o qual está intimamente relacionado ao complexo dos valores. Ao determinar que seus atos devem ser orientados para a realização de um fim, o ser social se constitui ao passo que faz emergir o complexo do dever-ser. Diferentemente dos seres governados por determinações biológicas hereditárias, nos quais o passado determina o presente, o ser social orienta seus passos para o futuro tendo em vista a adequação de suas ações à concretização adequada de fins postos.

Certamente, as razões pelas quais os desejos e prazeres sexuais (bem como os discursos a respeito deles) se tornam mais ou menos reprimidos ou liberados têm a ver com as tradições, com a moral, com o complexo da cultura em que eles se manifestam. No entanto, esses complexos sofrem os impactos e os efeitos das forças derivadas da ordem econômica capitalista, com seu poder diluidor de valores e costumes. Por isso entendemos que, sem levar em conta as bases materiais da sociedade capitalista e os antagonismos que lhe são inerentes, os nexos entre a nossa forma específica de sociabilidade e a nossa vivência dos desejos e prazeres ficam soltos, quando não são completamente desvirtuados ou ignorados.

Na reflexão sobre as mudanças de sentidos na ideologia hedonista que impregna o discurso da música carnavalesca baiana, os costumes e as tradições não são complexos absolutamente autônomos, infensos às determinações da totalidade social, no interior da qual a economia, em última instância, constitui o momento predominante de nossa sociedade capitalista. O primado do econômico sobre os demais momentos do ser social tem seu fundamento ontológico na própria centralidade do trabalho, como categoria fundante do ser social (LUKÁCS, 2013). Tal primazia não desconsidera a dialética constitutiva dos diferentes complexos sociais, os quais, com muita frequência, exercem influência mútua entre si. A ideologia e a linguagem, com sua relativa autonomia, produzem efeitos retroativos sobre a base econômica contribuindo para a reprodução/transformação de uma ordem social. A totalidade social se constitui nesse movimento desigual e contraditório de forças entre complexos singulares, por isso

[...] devemos ter presente antes de tudo que, sempre que tenha a ver com as autênticas transformações do ser, o contexto total do complexo em questão é primário em relação a seus elementos. Estes só podem ser compreendidos a partir da sua interação no interior daquele complexo do ser, ao passo que seria um esforço inútil querer reconstituir intelectualmente o próprio complexo do ser a partir de seus elementos (LUKÁCS, 2013, p. 84).

É pertinente lembrar a centralidade do trabalho na vida do ser social, a fim de que não sejam esquecidos os nexos dos valores morais, das tradições e dos costumes com a produção material de nossa existência. O domínio de si, uma exigência do trabalho simples, influencia

decisivamente nas representações que o homem faz de si mesmo, as quais, por sua vez, exigem comportamentos qualitativamente diferentes em relação aos animais. Essas exigências se estendem a todo tipo de ato humano. Segundo Lukács (2013), o domínio consciente do corpo, dos instintos e dos afetos já se encontra embrionariamente no trabalho simples e se estende a todos os atos humanos.

A gênese ontológica do complexo dos valores também já se encontra implicada no ato de trabalho simples, cujo pôr teleológico visa transformar a natureza para atender a necessidades humanas. No entanto, não podemos deduzir o complexo dos valores morais a partir dos valores implicados no dever-ser do pôr teleológico inerente ao trabalho primitivo, porque o desenvolvimento das forças produtivas e a progressiva divisão social do trabalho, levando à formação das complexas sociedades modernas, alteraram quantitativa e qualitativamente o caráter dos pores teleológicos. Fazer essa dedução direta seria incorrer no mesmo erro da relação mecânica entre estrutura e superestrutura difundida pelo marxismo vulgar e pelos adversários de Marx. Nunca é demais lembrar que, ao longo do amplo processo histórico pelo qual o ser social foi se afastando das barreiras naturais, surgiram os pores teleológicos secundários, aqueles cuja finalidade consiste não mais em transformar a natureza, mas em influenciar outros homens a realizar determinados fins postos. As novas finalidades, mediadas por outros complexos como o direito, a linguagem e a ideologia, embora não tenham perdido o caráter de um dever-ser, tornaram a relação entre as finalidades postas e as escolhas alternativas ainda mais mediadas pelo complexo dos valores em disputa nas sociedades de classes.

Numa perspectiva ontológica, o valor não se reduz a uma mera atitude valorativa dos sujeitos. Lukács (2013) demonstra isso mediante análise do complexo da economia, ao qual cabe “a função ontologicamente primária, fundante” do ser social, (p. 117). Para o filósofo húngaro, o surgimento do homo aeconomicus não é obra do acaso, mas um desdobramento necessário de um mundo cuja produção se tornou social. A constituição ontológica da economia revela que não há ato econômico “em cuja base não se encontre uma intencionalidade ontologicamente imanente para o devir homem do homem”. Eis por que considerar a economia a atividade fundante do ser social não consiste numa atitude meramente valorativa desse complexo. Nessa prioridade ontológica “não há nenhuma hierarquia de valor”, apenas a constatação de uma situação segundo a qual “uma determinada forma do ser é a insuprimível base ontológica de outra, a relação não pode ser nem inversa nem recíproca” (Idem, Ibidem).

A primazia ontológica da economia não pode ser compreendida como uma determinação mecânica, tal como o concebeu o marxismo vulgar, que viu nas categorias mais

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complexas do ser social meros produtos mecânicos de suas categorias mais elementares e fundantes. É preciso considerar que o entrecruzamento de pores teleológicos primários e secundários originou uma complexificação dos valores e dos pores de valor. Tudo fica ainda mais complexo com o desenvolvimento de âmbitos não diretamente econômicos16, como é o caso dos discursos musicais nos quais estão implicados os valores em conflitos inerentes à realidade social em que esses discursos são produzidos. Nesse sentido, há uma legalidade causal que preside o desenvolvimento econômico, ao passo que, no espaço do posicionamento moral, parece dominar o conflito de valores:

E podemos observar de imediato que, enquanto a tomada de posição alternativa perante o desenvolvimento econômico como tal, baseada mais ou menos no modelo do trabalho simples, é largamente unívoca, nas tomadas de posição morais perante certas consequências da economia sobre a vida parece dominar um antagonismo de valores. (LUKÁCS, 2013, p. 120)

Frente à manifestação fenomênica da multiplicidade das posições morais e dos conflitos que as envolvem, a tendência imediata é aceitar o valor como uma questão subjetiva, dependente exclusivamente da perspectiva valorativa de cada sujeito, da maneira como cada um se relaciona com o complexo moral em jogo, a exemplo da ideologia hedonista disseminada no discurso da música carnavalesca baiana. Entretanto, essa tendência leva à trágica e fatalista perspectiva do relativismo cultural, que não descreve a essência da realidade porque se mantém preso à “imediaticidade com a qual se mostram os fenômenos” (LUKÁCS, 2013, p. 121). O essencial é deixado de lado pelo relativismo que, sob o pretexto de uma suposta neutralidade, de uma imparcialidade que se exime de assumir posições, posiciona-se contra o fato concreto de que é possível tomar “decisões socialmente corretas entre alternativas importantes” (LUKÁCS, 2013, p. 122).

Por isso, quanto às transformações no plano da sexualidade e da ideologia hedonista do discurso musical, não concordamos com Bozon (2004), para quem o importante é perceber que os cenários dos desejos mudaram e que, por isso, o correto seria não tomar as mudanças como transgressões ou subversões. Não adianta também ficar na evidência histórica de que, no Brasil e talvez em todo o mundo ocidental, os padrões de moralidade anteriores aos anos sessenta não sejam os mesmos da atualidade, tendo ocorrido uma erosão dos pudores (SOHN, 2011) devido a mudanças na ordem dos valores. Essa perspectiva, que se prende à imediaticidade dos

16Os complexos não econômicos adquirem autonomia relativa no curso da história e exercem funções concretas

de reguladores da práxis social, tendo em vista as mediações necessárias para a reprodução da ordem social. O direito, para o materialismo vulgar, derivaria mecanicamente da estrutura econômica, mas ele funciona como complexo que regula a práxis social e procura garantir a reprodução da ordem estabelecida.

fenômenos e não sinaliza para as causalidades sociais das mudanças históricas, conduz a uma percepção da moral como um complexo autônomo e desconsidera a dinâmica da totalidade social em que esse complexo está inserido.

A questão ontologicamente importante não é a contemplação do processo histórico em seu contínuo transformar-se, mas compreender a que caminhos têm nos conduzido as escolhas alternativas concretas sobre os complexos dos desejos e prazeres cantados/ditos hedonisticamente: do modo como vivemos, desfrutamos, aproveitamos ou negamos, coisificamos, desumanizamos os desejos e as práticas sexuais e amorosas na sociedade capitalista. Atualmente, no Brasil, o dever-ser dos pores teleológicos concernentes à práxis social do amor e do sexo contribuem para a plena realização do gênero humano, para a sua emancipação e para a humanização? Ou trabalham no sentido da desumanização dos sujeitos, cada vez mais reificados, no trabalho e nas suas relações íntimas? Esses questionamentos estão intimamente relacionados com o complexo das ideologias, cuja teoria se constitui no interior do materialismo histórico.

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