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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

2.4 O mito da omnipresença do sujeito ou as fantasias metafísicas

É importante não esquecer que Michel Pêcheux (2009) nos encaminha aos problemas da interpretação, da textualidade dos sentidos, das práticas de leitura, colocando sob suspeita a onipotência do sujeito do discurso em relação com os sentidos do seu dizer. Ele elaborou uma tese cara à AD: o sujeito não é senhor de seu dizer, pois há níveis opacos à sua ação estratégica, uma vez que a linguagem, não sendo transparente, é atravessada por questões que remetem à ideologia e ao inconsciente, como vimos, duas estruturas que têm em comum o fato de dissimularem sua existência no interior de seus funcionamentos.

A Análise de Discurso, no percurso de sua constituição como campo de conhecimento específico, traz sua contribuição para melhor compreender o modo pelo qual se constitui a subjetividade, na medida em que coloca o discurso no epicentro do processo de constituição dos sujeitos. Orlandi argumenta que “a subjetividade é assim estruturada no acontecimento discursivo” ou ainda que “o acontecimento significante que é o discurso tem como lugar fundamental a subjetividade” (2012, p. 99). Ao enfocar a relação entre subjetividade e acontecimento discursivo, a AD empreende um deslocamento da noção de homem para a de sujeito, a qual demanda uma reconfiguração no campo das ciências humanas e sociais, sobretudo a partir da mobilização de três continentes teóricos distintos que permitiram erigir o estatuto teórico do sujeito em AD: o marxismo traz para a reflexão o poder da ideologia e, assim, contribui para entender a não-transparência da história; com a psicanálise, a noção de inconsciente, no confronto com o conceito de sujeito psicológico, coloca a questão da não- transparência do sujeito e a linguística, se bem compreendida a natureza da linguagem, trabalha com a não-transparência da língua. Desse modo, a AD se define como “a forma de conhecimento que realiza em seu objeto – o discurso – a conjugação de três modo de “opacidade”: a do sujeito, a da língua e a da história” (ORLANDI, 2012, p. 99).

Sob a influência do pensamento de Louis Althusser, Pêcheux (2009) identifica uma aproximação entre a evidência do sentido e a evidência do sujeito. É “evidente” que as palavras possuem significados, com a mesma transparência cristalina pela qual ninguém duvida de que “eu” realmente sou “eu”, pois os sujeitos, como os sentidos, apresentam-se sob o efeito da evidência, constituindo o chamado “efeito ideológico elementar” (ALTHUSSER, 1985, p. 94). Dizendo isso de outra maneira: “sob a evidência de que “eu sou realmente eu” (...) há o processo da interpelação-identificação que produz o sujeito no lugar deixado vazio” (PÊCHEUX, 2009, p. 145), mas que se apresenta como uma evidência que se explica a si mesma, sem causalidade social e sem história. Entretanto, as evidências não caem dos céus como graças divinas, nem

são obras do acaso. Na verdade, elas apagam o processo histórico mediante o qual “a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos” (ALTHUSSER, 1985, p. 93). Ou seja:

O apagamento do fato de que o sujeito resulta de um processo, apagamento necessário no interior do sujeito como “causa de si”, tem como consequência, a nosso ver, a série do que se poderia chamar as fantasias metafísicas, que tocam, todas, na questão da causa (PÊCHEUX, 2009, pp. 143-144). A AD rompe com a concepção de sujeito como “causa de si”, a qual dominava a cena francesa dos anos 1960 devido à influência da psicologia social9 sobre as demais ciências

humanas. Tal ruptura exigiu um deslocamento teórico no tocante à concepção de sujeito psicológico, concebido como um estrategista consciente, racional e lógico operatório. Segundo Pêcheux (2011, p. 289), o “mito da omnipresença do sujeito psicológico” oculta a experiência viva do fracasso, do tropeço, da falha e encarna o “narcisismo universal do pensamento humano”. Esse mito está disseminado de tal forma no imaginário social que se constituiu como uma evidência incontestável de que são os sujeitos os verdadeiros responsáveis por seu sucesso ou fracasso, independentemente das condições concretas de sua existência real e das alternativas que lhes são efetivamente (im)postas10. Em parte, as representações do sujeito psicológico são uma construção de psicólogos, mas, doutra parte, elas vão se constituindo na mente dos sujeitos que, cotidianamente, criam e recriam “sua epistemologia espontânea da ação humana” (PÊCHEUX, 2011, p. 289).

No entanto, os sujeitos não são a causa de si mesmos, mas uma forma de existência histórica dos indivíduos em determinada realidade social. A Análise de Discurso, ao desenvolver a tese segundo a qual a “Ideologia interpela os indivíduos em sujeito”, procura explicitar os mecanismos ou o modo de funcionamento dessa interpelação. Ela acontece através do trabalho das formações ideológicas, das formações discursivas que as materializam e do interdiscurso nelas imbricado, os quais fornecem “‘a cada sujeito’ sua ‘realidade’, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas – aceitas – experimentadas”. (PÊCHEUX, 2009, p. 149). Por aceitar ou se identificar com o sistema de evidências oferecidos pela ideologia, o sujeito não se dá conta de que tanto ele, com sua “identidade própria”, quanto a realidade em que ele vive, com sua “ordem natural”, resultam de um processo histórico

9 O caráter experimental, tão valorizado no âmbito da psicologia, alcança as interações verbais, transformadas em

“cena experimental” e constituídas como uma cena fechada em si mesma, por isso a-histórica, na qual a linguagem é identificada a sequências “observáveis” de ações da interação. A Análise de Discurso rompe com essa problemática psicossocial, que recalca o triplo registro da história, da língua e do inconsciente.

10Lukács (2013) teoriza a noção de sujeito como uma consciência constituída historicamente que toma decisões

alternativas orientadas a um pôr teleológico. Mas suas ações decorrem de finalidades e alternativas concretas, determinadas pelas condições materiais de existência dos sujeitos. Sua liberdade de escolha não é ilimitada, pois depende dos horizontes sociais que se apresentam como possibilidade para escolhas e decisões concretas.

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específico. No campo da AD, sob o efeito da evidência dos sentidos igualmente oferecida pela ideologia, o sujeito do discurso se julga a fonte de seu dizer, imaginando ser o senhor dos sentidos do que diz.

Pêcheux (2009, p. 150) aprofunda essa questão ao considerar que “o sujeito se constitui pelo ‘esquecimento’ daquilo que o determina”. O que se entende por esquecimento aqui não está relacionado com falta de memória em relação a algo que era lembrado ou sabido antes. Essa categoria, em AD, diz respeito ao “acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito” (Idem, Ibidem). Orlandi (2010) apresenta as duas modalidades de esquecimento teorizadas por Pêcheux: o esquecimento nº 1 e o esquecimento nº 2. Este se relaciona com a enunciação, o modo como se diz algo que, aceito como evidente, limita a possibilidade de o sujeito do discurso imaginar que poderia ser dito de outra maneira. Tem-se, então, a chamada ilusão referencial, que cria “a impressão da realidade do pensamento” e “que nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras” (ORLANDI, 2010, p. 35). Mas, segundo essa autora, a modalidade de esquecimento nº 2, também chamado de esquecimento enunciativo, ainda deixa ao sujeito uma margem de semi-consciência, uma vez que, ao dizer algo, ele pode recorrer a outras formas de dizer o mesmo (paráfrases), a fim de corrigir ou especificar os sentidos do que disse numa situação determinada de interação discursiva.

A outra modalidade de esquecimento – o nº 1 – é o chamado esquecimento ideológico, que se relaciona com o inconsciente e com o modo pelo qual o sujeito é afetado pela ideologia. Por efeito desse esquecimento, o sujeito do discurso se filia a redes de sentidos que já existem e circulam em determinadas formações discursivas e ideológicas, porém alimenta a ilusão de ser a origem do que diz. Em outras palavras, sujeito nenhum está na origem da linguagem, dizendo pela primeira vez palavras e sentidos nunca ditos, ainda que nosso dizer se nos apresente como “original”. Se o esquecimento nº 1 é a ilusão da originalidade no sujeito do discurso, isso se deve ao fato de que tal “esquecimento reflete o sonho adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significam apenas e exatamente o que queremos” (ORLANDI, 2010, p. 35). Portanto, em AD, o esquecimento também é estruturante da subjetividade e do sentido. As ilusões às quais nos referimos – a referencial e a adâmica – constituem uma necessidade do acontecimento discursivo, já que, sem elas, não poderia existir nem sentido nem sujeito.

Em termos discursivos, a interpelação do indivíduo em sujeito pode ser pensada como um processo pelo qual o sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva na qual ele

se constitui. É essa identificação que produz a identidade imaginária do sujeito, em cujo discurso se inscrevem elementos do interdiscurso tomados por ele como se fossem seus. Como não há prática sem sujeito, Pêcheux (2009, p. 198) se dedica a compreender o “efeito do complexo das formações discursivas na forma-sujeito”. Mas ele nos adverte que pensar toda e qualquer prática (discursiva ou não) como práticas nas quais está implicada a figura do sujeito não significa reduzi-las a “práticas de sujeitos”, como se estes fossem a origem de suas ações ou atividades. Não há atos de um sujeito autônomo, pensado como a origem e a causa de si. Na verdade, ele é “constitutivamente colocado como autor de e responsável por seus atos (por suas “condutas” e por suas “palavras”)” em suas práticas cotidianas.

Ancorado em Paul Henry, Pêcheux pensa a interpelação ideológica como um processo que desdobra o sujeito em “locutor” ou “sujeito da enunciação”, (aquele que deve se responsabilizar pelo que diz, assumindo posições com conhecimento de causa e com total liberdade) e em “sujeito universal” (que domina uma formação discursiva e se apresenta com a pretensão de ser o “sujeito da ciência”). Ao revisitar o pensamento de Pêcheux, identificamos três modalidades de posição-sujeito: uma dessas modalidades realiza uma superposição/recobrimento entre o sujeito do discurso e o sujeito universal, que corresponde à forma-sujeito dominante numa formação discursiva. Por essa superposição, as posições assumidas pelo sujeito do discurso realizam o seu assujeitamento como uma escolha livre ou sob a forma do livremente consentido. Tal é o modo de se posicionar do “bom sujeito”, aquele cujo discurso se identifica com uma formação discursiva determinada pelo interdiscurso. O “bom sujeito”, como diz Pêcheux, “sofre cegamente essa determinação, isto é, ele realiza seus efeitos ‘em plena liberdade’” (2009, p. 199).

A segunda modalidade de posição-sujeito sinaliza para a contra-identificação do sujeito discursivo com aquela forma-sujeito dominante no interior de uma mesma formação discursiva (sujeito universal). Ela caracteriza o discurso do “mau sujeito”, cujas posições são contrárias ao sujeito universal. O discurso do “mau sujeito” – assumindo a forma da desconfiança, da dúvida, do questionamento, da revolta etc. – produz uma separação em relação ao que o sujeito universal lhe apresenta como a verdade do pensamento sobre a realidade. Contraria a maneira de pensar dada pronta e evidentemente pelo sujeito universal. Em outras palavras, ele “se contra-identifica com a formação discursiva que lhe é imposta pelo ‘interdiscurso’ como determinação exterior de sua interioridade subjetiva” (PÊCHEUX, 2009, pp. 199-200).

Já a terceira modalidade de posição-sujeito se dá pela desidentificação do sujeito do discurso com a formação discursiva e com a forma-sujeito que a domina. Essa terceira modalidade compreende os efeitos tanto da prática política quanto da reflexão científica do

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proletariado sobre a forma-sujeito, efeito esse que conduz à desidentificação. Entretanto, a desidentificação, resultante da produção de conhecimento e das práticas políticas de “tipo novo”, a exemplo do marxismo-leninismo, não opera um trabalho de anulação da forma-sujeito, como se um determinado saber e um determinado agir sobre o real levassem a uma dessubjetivação do sujeito ou a um desassujeitamento. Ela, na verdade, produz um deslocamento e transformação da forma-sujeito, uma vez que o processo de interpelação ideológica não cessa, apenas passa a funcionar às avessas, contra si mesmo.

Pensar o estatuto do sujeito mediado pela AD consiste, portanto, em evitar um posicionamento teórico que se mantenha preso ao que Pêcheux chama de Efeito Münchhausen, lembrando as fantasias do barão que, para escapar ao atoleiro à sua frente, saltava-o puxando a si mesmo pelos próprios cabelos, flutuando cada vez mais alto pelo ar sem jamais tocar o chão. Com essa imagem fantasiosa, Pêcheux ironiza a concepção de sujeito como origem ou causa de si, ou seja, a ideia de um sujeito que é a causa de sua própria existência, como se, de uma forma ou de outra, a subjetividade não sofresse nenhuma determinação externa. A necessidade de superar esse idealismo fantasioso levou o autor de Les Vérités de La Palice a uma alternativa teórica que, mediante a compreensão dos mecanismos ideológicos, facultasse a penetração e o desvendamento da opacidade da história, a fim de compreender as determinações históricas dos sentidos e da subjetividade.

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