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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

3.1 Discurso musical e memória do dizer

3.1.1 Origens da música popular urbana no Brasil

Os dois primeiros séculos de nossa história são lacônicos em relação à vida das camadas populares, de cuja vivência cultural cotidiana a história oficial, na perspectiva da história dos dominadores, não deixou registros que ajudassem a compreender mais profundamente como os desejos e os prazeres sexuais se apresentam na música desse período. Não se tem informações precisas sobre a presença da música na vida cotidiana das classes trabalhadoras, inicialmente constituídas por índios que cortavam e depositavam o pau-brasil nas feitorias em troca de bugigangas e, posteriormente, pela população de africanos e africanas aprisionados e para cá transplantados como escravos.

Ao longo desse período, ainda não haviam sido alcançadas as condições materiais necessárias para o desenvolvimento de uma cultura popular urbana, porque as cidades ainda funcionavam como meros complementos burocráticos do campo, onde os engenhos se constituíam como unidades de produção autônomas e autossuficientes, com escravos e outros funcionários a prover os meios necessários para a reprodução biológica e social. Desse modo, o meio urbano, desprovido de mercado interno e formado por uma população diminuta e pobre, manteve-se, durante os dois primeiros séculos, subordinado ao modo de vida rural. Integrada ao mercantilismo da ordem social capitalista nascente, a metrópole portuguesa, que fez da colônia brasileira mero campo de exploração e lucro, impedia que as riquezas aqui produzidas fossem usadas para promover o desenvolvimento das terras colonizadas.

No entanto, a partir de indicações extraídas da Carta de Caminha, um historiador da música brasileira informa que dois gêneros musicais prevaleceram “no primeiro século da descoberta: o rural-português na área dos sons profano-populares, e o erudito da Igreja nas das minorias responsáveis pelo poder civil e religioso” (TINHORÃO, 2010, p. 38). No caso específico da catequese dos índios, havia cantos e hinos eruditos para rituais solenes e para a devoção religiosa, bem como havia cantos e danças populares e coletivos para o entretenimento. No Brasil, os mais remotos registros históricos sobre música possivelmente profana remontam ao Natal de 1583, quando o irmão Barnabé Telló, tocando berimbau, animou o presépio montado pelos jesuítas na povoação da Bahia, e ao ano de 1584, quando José de Anchieta viu, numa das casas de ensino também da Bahia, crianças indígenas dançarem à portuguesa ao som de tamboris e violas.

Apesar da escassez de informações, é provável que, nos dois primeiros séculos de nossa história, negros e negras escravizados também tenham tido alguma concessão das classes senhoriais para as diversões típicas das tradições culturais africanas transplantadas para cá junto com seu povo. No início do século XVII, a população negra girava em torno de vinte mil africanos e seus descendentes, de modo que é improvável que esse contingente populacional fosse condenado ao silêncio absoluto. Os rudimentos de vida urbana em Salvador, Recife e Rio de Janeiro permitiram a entrada dos negros na vida cultural brasileira através de seus cantos e danças rotulados pelo branco português como batuques.

Tinhorão (2010), a partir da obra de Gregório de Matos20, dos relatos de viajantes e escritos de moralistas do final do século XVII para o início do século XVIII, descobriu que as composições musicais até hoje denominadas “chulas” (normalmente com quatro versos) receberam esse nome por serem produzidas pelas classes mais baixas da sociedade baiana (os “chulos”), que compunham “chularias”. A se considerar Gregório de Matos um poeta-músico, as ‘modas profanas’, como se chamavam as composições de seu tempo não investidas do sagrado, despertaram a preocupação da igreja católica, dos educadores e dos moralistas, que passaram a ter mais atenção com a nascente música urbana do século XVII. Essa preocupação reacendia o princípio medieval da pureza da doutrina religiosa, que proibia os ‘cantares vãos’ compreendidos como ‘pecados das orelhas’, bem como justificava tal proibição pela crescente atração de populares por músicas profanas, as quais, além de ousar tematizar o sagrado, função do corpo eclesiástico, “valiam por verdadeiros convites às aproximações amorosas consideradas lascivas” (TINHORÃO, 2010, p. 69).

Na passagem do século XVII ao XVIII, a sociedade brasileira começava a adquirir uma fisionomia mais complexa e passava a comportar novos conflitos. O contingente populacional em torno da atividade canavieira e seu escoamento do Recôncavo Baiano à capital Salvador havia se tornado bastante intenso e numeroso. Tanta gente não podia estar toda envolvida com o comércio da cana, uma vez que a subsistência exigia o atendimento de novas necessidades através de atividades paralelas à grande economia da monocultura, tais como a pesca de sardinha e camarão; a purificação de tabaco e aguardente; a criação de gado; a produção de louça, farinha, telha, lenha etc. Ainda segundo Tinhorão, “muitos desses trabalhadores de lavouras de beira mar (...) viriam a constituir, em Salvador, pelo correr de Setecentos, o exemplo

20 O autor da “História social da música popular brasileira” sugere que se considere a maior parte da obra de

Gregório de Matos composições musicais, uma vez que, das mais de seiscentas composições atribuídas ao Boca

do inferno, apenas duzentas e sete têm a forma fixa de soneto, as demais constituindo glosas, coplas e romances

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inicial do que se poderia chamar de camadas populares urbanas do Brasil” (2010, p. 85). Nessa nova realidade socioeconômica, surgem as camadas sociais carentes de vivência em termos de uma cultura popular urbana, na qual têm lugar significativo os cantos e danças. Portanto, a crescente divisão social do trabalho e os intensos intercâmbios entre o rural e o urbano iriam permitir

o aparecimento de uma série de novas formas de diversão entre as baixas camadas, que estava destinada a transformar não apenas Salvador no primeiro centro produtor de cultura popular urbana do Brasil, mas a garantir para a própria Bahia o título de pioneira na exportação de criações para o lazer de massa citadina no exterior (TINHORÃO, 2010, p. 86).

Nesse processo de desenvolvimento das forças produtivas, cantares e dançares foram surgindo como uma manifestação da cultura popular, vista pelas elites senhoriais com preconceito e desprezo. Se tomarmos a palavra como índice sensível que capta as transformações históricas em curso, devido à sua ubiquidade social (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010), o discurso literário ajuda a perceber como os sentidos sexuais eram sugeridos em danças da época colonial e causavam reações por parte das classes dominantes, fato que pode ser observado a partir de versos de Gregório de Matos, o Boca do Inferno:

Pasmei eu da habilidade Tão nova, tão elegante

Porque o cu é sempre dançante Nos bailes desta cidade.

Esses versos, que constam na “História social da música popular brasileira”, de José Ramos Tinhorão (2010, p.74), descrevem a surpresa do poeta Gregório de Matos com a novidade de uma dança introduzida na cidade de Salvador, provavelmente na segunda metade do século XVII. Conhecida pelo nome de Arromba, essa nova dança, uma exceção à regra das danças sensuais, não reproduzia os rebolados de origem africana predominantes nos festejos da época na capital baiana. O poeta, então, teria ficado pasmo por ver uma dança, da qual não se tem mais detalhes, cujos movimentos corporais não colocavam no centro da coreografia as nádegas, a bunda ou o “cu”, este termo mais em conformidade com o lugar ideológico transgressivo frequentemente ocupado pelo Boca do Inferno. Por essa indicação tão longínqua, tem-se um primeiro indício memorial do lugar de destaque ocupado pelo baixo corporal, compreendido como lugar de expressão e objeto dos desejos e prazeres sexuais, na história da música e da dança brasileiras, bem como da existência de resistências a sua expressão através

da crítica censora21 por parte da ideologia moral dominante. Tais conflitos se intensificaram à

medida que as danças e músicas originadas dos batuques africanos passaram a ser amplamente cultivadas pelas camadas mais baixas da sociedade colonial em desenvolvimento, as quais criaram diferentes ritmos com cantos e danças que, sugerindo sentidos relacionados aos desejos e prazeres sexuais, chocavam determinados setores da sociedade.

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