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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

3.1 Discurso musical e memória do dizer

3.1.2 Traços de uma memória discursiva hedonista

3.1.2.2 Canções memoráveis: puxando alguns fios de sentidos

Em parceria com Francisco Manuel da Silva, que é autor do Hino Nacional Brasileiro, Paula Brito25 compôs, em 1853, um dos mais conhecidos lundus do século XIX: “A marrequinha de Iaiá”, também conhecido como o “Lundu da marrequinha”. O próprio título do lundu, no qual a palavra “marrequinha” pode significar tanto o laço do vestido preso às costas, um pouco acima das nádegas da Iaiá, quanto sua genitália, ambos os sentidos coexistindo numa conjuntura ideológica patriarcal, faz-nos entender que, nesse lundu, os efeitos de sentido ambíguos constituem um lugar de memória (INDURSKY, 2011) muito requisitado nas canções atuais. Tomar nomes no amplo reino animal para significar a genitália (marreca/ave/genitália feminina) constitui um modo de dizer memorial que sustenta outros dizeres de nossa atualidade26. Como já-ditos que se atualizam em letras de canções atuais, os efeitos de sentido ambíguos que produzem evidências para os desejos e prazeres sexuais funcionam como uma maneira ideológica de administrar a abertura polissêmica da linguagem e traduzem gestos interpretativos que instauram o jogo político do dizer27.

Verdadeiras contribuições das danças de origem africana, os requebros, os rebolados, aos quais estão ligadas as umbigadas já revelavam, numa época em que o discurso musical ainda não havia se tornado mera mercadoria para o consumo das massas, os potenciais da sensualidade e do erotismo do corpo nos movimentos de danças nacionais que sugerem os desejos e prazeres sexuais: “Se dançando à brasileira / Quebra o corpo a Iaiazinha / Com ela brinca pulando / Sua bela marrequinha”. Tendo em vista que a “Iaiazinha” pertence às classes dominantes do Brasil colonial e imperial, esse lundu amplia seu alcance ao sugerir que a cultura popular de inspiração afro-brasileira passava a ser cultivada também entre as classes mais abastadas. Mas, como condição para que o lundu pudesse frequentar o espaço de famílias melhor situadas economicamente, os diminutivos “marrequinha” e “Iaiazinha” suavizam os

25Levando o lundu às classes médias cariocas do século XIX, Paula Brito foi um tipógrafo cuja livraria, localizada

ao lado do atual Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, virou o primeiro ponto de encontro de escritores e artistas da época, entregues a bate-papos descontraídos, em tom prosaico, dos quais participavam Gonçalves Magalhães, Laurindo Rabelo, Joaquim Manuel de Macedo, Araújo Porto Alegre, Machado de Assis etc.

26Perereca, pinto, cobra, periquita, aranha, pomba, ganso, peru etc. são alguns dos inúmeros termos usados em

canções populares para representar os genitais masculinos e femininos, produzindo efeitos de sentido diversos relacionados com o jogo de poder que perpassa as práticas sexuais.

27Os efeitos de sentido dúbios, uma estratégia relacionada com o que temos chamado de jogo político do dizer, são

o objeto de nossa reflexão na quarta seção, intitulada “A dominância da ideologia hedonista no discurso da música carnavalesca baiana”.

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sentidos que deslizam para a formação discursiva da obscenidade, evitando a construção de uma imagem deliberadamente obscena da jovem “bem-nascida”.

Laurindo Rabelo é outro mulato que, sujeito aos preconceitos da elite branca, escreveu lundus nos quais expressava seu “desprezo pessoal à respeitabilidade oficial”, sendo o mais sugestivo, em termos de expressão dos desejos e prazeres sexuais, o lundu intitulado “As rosas do cume” (TINHORÃO, 2010, p. 150). Desde o título até a última estrofe, é recorrente a modalidade de pré-construído que Indursky (2011), na esteira teórica de Michel Pêcheux (2009), classificou como encaixe sintático, isto é, um já dito noutro lugar é encaixado no discurso de um sujeito, que se imagina senhor de seu dizer. O acento tônico na primeira sílaba da palavra “CUme”, na qual a segunda sílaba pode ser tomada como um pronome oblíquo átono, abre possibilidades de sentidos outros relacionados com o baixo corporal e seu potencial hedonista. Tendo sido as duas sílabas desmembradas na sequência da cadeia sonora da fala, o que aparece primeiro é a já dita e estigmatizada palavra “cu”, que se refere ao baixo corporal na estética grotesca (BAKHTIN, 2010), encaixada ou em combinação sintática com o pronome pessoal “me”, que, por sua vez, liga-se aos diversos verbos que, nesse lundu, reforçam as possibilidades do sentido sexual: “No tempo das invernadas, / Que as plantas do CUme lavão, / Quanto mais molhadas erão / Tanto mais no CUme davão” (Destaque nosso).

Certamente o efeito obsceno que tal arranjo sintático (núcleo do sujeito gramatical+cu+me+verbo) produz não resulta do que se tem chamado tradicionalmente de cacofonia nem de uma incerteza sobre onde se separa a cadeia de fonemas demarcando suas respectivas unidades vocabulares. Se a palavra “cu”, encaixada nesse discurso, não tivesse recebido antes e noutro lugar uma forte carga de estigmatização que tem a ver com o modo como as práticas sexuais e suas representações ideológicas – inclusive a anal – são controladas numa formação social como a nossa, aquela combinação passaria despercebida, não produziria os efeitos específicos de sentido sexual e moralmente transgressivos. Qualquer palavra que tenha em seu interior a sílaba “cu” se presta à produção de sentidos libidinosos (como no discurso do humor, por exemplo28) exatamente porque seus sentidos socialmente estigmatizados podem ser explorados. Os pré-construídos em seus encaixes sintáticos, com efeitos de sentido que revelam como os desejos e prazeres sexuais são socialmente constituídos,

28Diversos humoristas tomam a culinária do Amazonas como objeto para o discurso da piada. Muitos nomes de

peixes consumidos pela população amazonense incluem a sílaba CU: pacu, pirarucu, tambacu, tucunaré etc. Após citar uma vasta lista com nomes similares, os humoristas concluem com uma sugestão de sentidos sexuais que deslizam convenientemente para outro lugar: “Ô povinho pra gostar de um... peixe!”.

abundam no discurso da música popular brasileira atual, o que nos permite tomar também “As rosas do cume” como mais um lugar de memória para o cancioneiro popular brasileiro atual.

A modinha29 é outro gênero musical popular que, nascido em meados do século XVIII, atende às expectativas da moderna sociedade urbana nascente no Brasil. No contexto europeu do século XVI, a canção a solo, a música cantada pela voz de um sujeito singular, surge das novas sociabilidades que criam novas necessidades em função do processo de urbanização crescente na passagem do feudalismo ao capitalismo. Aos poucos, a música – que antes expressava as grandes questões da vida coletiva no campo, cultivada em momentos significativos da vida das comunidades, a exemplo das colheitas – vai cedendo a outra tendência, que passa a cantar o individualismo e a solidão típicos das cidades nas sociedades modernas. A viola passa a ter o acompanhamento de uma voz solitária, que coloca o individualismo como um valor acima dos valores da coletividade. A modinha brasileira se relaciona com a emergência desse mundo urbano na segunda metade do século XVIII e traz sentidos de uma individualidade cada vez mais em conflito com o coletivo que outrora regia as condutas individuais.

A urbanização aproxima os sexos e a modinha canta os laços sentimentais mais íntimos entre homens e mulheres, como um dizer a serviço das novas necessidades colocadas pelas mudanças decorrentes do processo de urbanização. Uma das ousadias da modinha brasileira consistia na colocação da mulher como alvo de seu dizer, versejando para ela em nome da liberdade de amar, o que despertou a reação dos moralistas preocupados com seus efeitos sedutores sobre as fantasias das moças e sobre os corações das damas. A partir da aparição da modinha, “os moralistas e conservadores viram recrudescer o velho ‘pecado das orelhas’, e desta vez não mais como atentado às doutrinas da Igreja, mas como ameaça à boa ordem moral da sociedade” (TINHORÃO, 2010, p. 123).

Já na segunda metade do século XIX, surge um novo ritmo musical que provocou mais escândalo do que o lundu e as modinhas do final do século XVIII e início do XIX: o maxixe. Essa nova dança é uma criação das camadas mais depauperadas, constituídas predominantemente por negros e pobres em geral que viviam no populoso bairro Cidade Nova, próximo ao centro do Rio de Janeiro. Como aconteceu com o lundu, com a fofa, com a modinha e com o maxixe, tem sido uma constante, ao longo da história do Brasil, o protagonismo das

29Tinhorão (2010) aponta o equívoco de Mário de Andrade, que concebe a modinha como música de fundo e forma

erudita, que posteriormente se popularizara. Ao contrário, a modinha já surge como música popular urbana no Brasil, sendo levada às camadas baixas de Portugal e lá, sob a influência das óperas italianas, ocorre sua eruditização.

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classes oprimidas – que, em função do nosso passado escravista, correspondem majoritariamente à etnia negra – quanto à ruptura do silêncio e à expressão mais ou menos aberta dos desejos e prazeres sexuais em suas criações culturais populares, especialmente na música. Segundo Faour (2006, pp.254-255), o maxixe supera as demais danças de nossa história pregressa em sensualidade e erotismo, uma vez que essa dança “embolou homem com mulher, um enfiando a perna por dentro das pernas do outro” (FAOUR, 2006, pp. 254-255).

“Corta-jaca”, por exemplo, é o nome do mais famoso dos maxixes do final do século XIX, de autoria da pioneira Chiquinha Gonzaga, lançado em 1895: “Sou gostosa / Que dá gosto de talhar / Sou a jaca saborosa / Que amorosa! Faca está a reclamar / Para a cortar / Ai, que bom cortar a jaca / Sim, meu bem, ataca!” Essas sequências discursivas funcionam como a memória de um dizer que reverbera na atual música popular brasileira, através do processo metafórico que consiste em substituir a genitália por uma fruta a fim de produzir determinados efeitos de sentido30. A memória antropofágica de nosso canibalismo amoroso (SANT’ANNA, 1993) sustenta os sentidos que invadem tal dizer. É da tradição da cultura brasileira os sentidos do devorar o outro, entre os quais se destacam as inúmeras metáforas alimentícias.

Como discurso musical cantado pela voz de uma mulher, ao abrir as portas do século XX, o “Corta-jaca” é também esse lugar de memória que, inconsciente e transversalmente, relaciona-se com as imagens das mulheres-fruta da atualidade: “Mulher melancia”, “Mulher Pera”, “Mulher Melão”, “Mulher Moranguinho” etc. A diferença significativa entre esses dizeres separados por um século de história está na função ideológica que eles desempenharam e desempenham no conjunto complexo das relações sociais. No início do século XX, o que se apresentava no discurso do maxixe era a novidade de uma voz feminina contra séculos de exclusão da mulher do espaço da vida social e contra o silenciamento dos desejos femininos. Um sujeito discursivo que assume posição libertária. No início do século XXI, as mulheres- frutas não passam de mercadoria sexual comercializada em discursos da música de massa, através de uma reação ofensiva às bandeiras feministas promovida na esteira da lógica do capitalismo. A sugestão de sentidos libidinosos numa voz feminina – antes uma conquista necessária para o reconhecimento da mulher como sujeito de desejo – converte-se em mecanismo de controle sobre o corpo e a sexualidade feminina coisificada. Um sujeito do discurso reacionário reforça a exploração do outro como um valor útil à lógica do capitalismo.

30 Maçã, melancia, melões, uva, morango, banana funcionam como substitutos metafóricos em outros dizeres de

nosso cancioneiro, cuja ideologia hedonista resgata a memória antropofágica de nosso canibalismo amoroso (SANT’ANNA, 1993).

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