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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

3.2 Discurso musical e condições de produção

3.2.2 Condições de produção estritas: miséria social e alegria carnavalesca

3.2.2.1 Uma Bahia onde nem tudo é motivo de alegria

E na Bahia, ia ia

Tudo é motivo de alegria É carnaval, é festa todo dia

(FESTA NA BAHIA, [1998]) Tudo, tudo na Bahia

Faz a gente querer bem A Bahia tem um jeito Que nenhuma terra tem

(VOCÊ JÁ FOI À BAHIA, [1941])

Embora o discurso da música carnavalesca baiana se filie a uma memória que frequentemente idealiza a Bahia como a terra da festa e da felicidade infinitas, nem tudo na Bahia é motivo de alegria, assim como nem tudo na Bahia faz a gente querer bem. Nosso objetivo aqui é olhar para as contradições socioeconômicas silenciadas pelo discurso musical ou nele presentes sintomaticamente, uma vez que o discurso da música baiana, em nosso gesto interpretativo, funciona como uma resposta, no plano da indústria do entretenimento de massas, às condições materiais de existência da população baiana e brasileira. Por isso, descrevemos brevemente alguns aspectos dessas condições de existência, a fim de compreender como elas determinam os sentidos do dizer musical.

A cidade de Salvador, capital da Bahia, apresenta contradições socioeconômicas e segregação territorial que permitem compreender o paradoxo que se insinua no discurso da música carnavalesca baiana sob a forma de uma felicidade na miséria. A capital baiana viveu, nas décadas de 1940 e 1950, um expressivo crescimento demográfico em função das migrações e da reestruturação do centro tradicional da cidade. Nesse período, as classes mais abastadas da cidade abandonaram as edificações centrais, que foram perdendo sua função residencial, ao mesmo tempo em que as construções mais antigas foram sendo apropriadas pela população de baixa renda. A demanda por novas áreas residenciais crescia, o que ocasionava o crescimento da periferia urbana, através da ocupação informal dos fundos de vales e encostas.

A partir das décadas de 1960 e 1970, Salvador passa por um processo de modernização que aprofunda e intensifica a segregação dos espaços urbanos da cidade. Carvalho e Pereira (2008, p. 85), em “As ‘cidades’ de Salvador”, descrevem esse processo de “modernização”

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como uma “modernização excludente”, conforme os interesses do capital imobiliário. Em 1968, a administração pública da cidade, como proprietária da maior parte das terras do município, transferiu sua propriedade para umas poucas mãos privadas através da Lei de Reforma Urbana. A abertura das “avenidas de vale”, ao mesmo tempo em que incorporou novos espaços ao tecido urbano, exigiu a eliminação de muitos assentamentos da população pobre, que ocupava tradicionalmente “os fundos até então inacessíveis dos numerosos vales de Salvador” (CARVALHO e PEREIRA, 2008, p. 85). Como acontece com todas as capitais brasileiras integradas à lógica do capitalismo, o processo de urbanização excludente, em Salvador, criou espaços urbanos bem equipados e reservados à elite baiana, ao mesmo tempo em que lançou as classes marginalizadas para as periferias desassistidas, sem serviços e equipamentos que lhes tragam as mínimas condições de habitabilidade.

Na década de 1980, já estava consolidado o novo centro urbano de Salvador com suas construções de grande porte, a exemplo da Avenida Paralela, o Centro Administrativo da Bahia, a nova Estação Rodoviária e o Shopping Iguatemi. Segundo Carvalho e Pereira (2008), a nova centralidade urbana direcionou a expansão da cidade no sentido da orla norte e produziu um forte impacto no centro tradicional, que passou por um progressivo processo de esvaziamento. A partir de então, três vetores de expansão da cidade estavam configurados: a Orla Marítima norte, o Miolo e o Subúrbio Ferroviário. Intensificada na década de 1960, a nova dinâmica econômica incrementou, no espaço urbano, uma ocupação da orla pelas classes média e alta, ao passo que empurrou as classes de baixa renda para as áreas distantes e desestruturadas do Miolo e do Subúrbio.

Nesse processo de segregação socioeconômica e territorial, a Orla Marítima se constituiu como “área nobre” da cidade, região de interesse do mercado imobiliário na qual estão concentradas as riquezas, os investimentos públicos e os equipamentos urbanos. Já a ocupação do Miolo, situado na parte central do município, ocorreu inicialmente mediante a construção de conjuntos residenciais para a classe média baixa aos quais, posteriormente, sobrevieram sucessivas invasões bem como loteamentos populares sem controle urbanístico e com uma precária disponibilidade de equipamentos e serviços. O terceiro vetor, o Subúrbio Ferroviário, vem sendo ocupado desde 1860, quando ali se implantou a linha férrea. A partir de 1940, lá foram construídos inúmeros loteamentos populares também sem controle urbanístico e sem planejamento. Segundo Carvalho e Pereira, o Subúrbio Ferroviário transformou-se em “uma das áreas mais carentes e problemáticas da cidade, concentrando uma população extremamente pobre e sendo marcada pela precariedade habitacional, pelas deficiências de

infraestrutura e serviços básicos e, mais recentemente, por altos índices de violência” (2008, p. 86).

Em “Condições de vida, violências e extermínio”, Paim (2008) analisou a distribuição dos homicídios no espaço urbano da cidade de Salvador, pensando o significado social desse tipo de violência. O autor partiu do pressuposto de que o capitalismo produz “iniquidades sociais que se expressam nos diferenciais intra-urbanos de mortalidade por homicídio” (PAIM, 2008, p. 58). Em sua análise, identificou uma expressiva participação de policiais nas ocorrências de homicídio em Salvador, as quais responderam por sete por cento do conjunto da mortalidade por causas externas no início da década de 1990. Dado de grande relevância no tocante à denúncia das iniquidades sociais gestadas pelo capitalismo, as vítimas de homicídio praticado por policiais foram, em sua grande maioria, negros e mulatos, ao passo em que as pessoas brancas constituíram apenas um por cento das vítimas desse tipo de homicídio.

Em geral, as vítimas de homicídios praticados por policiais apresentam baixo nível de escolaridade e residem nas zonas de Salvador com os piores índices de condições de vida. Em 1997, Engomadeira, Liberdade, Valéria e Nordeste de Amaralina apresentaram os maiores coeficientes de homicídios praticados por policiais. Segundo Paim (2008), quem reside nessas áreas corre risco de morte por homicídio duas vezes maior do que quem mora nas áreas da cidade com as melhores condições de vida. Para esse autor, os coeficientes mais elevados de mortalidade por homicídio nas zonas com as piores condições de vida revelam e reforçam as desigualdades sociais como um dos fatores que respondem pela magnitude da violência nas cidades brasileiras.

Essa configuração social segregada faz da capital baiana uma cidade que comporta em si outras cidades: a “cidade tradicional”, a “cidade moderna” e a “cidade precária” (CARVALHO e PEREIRA, 2008, p. 101). A cena carnavalesca baiana engloba essas várias “cidades” através de outros processos de segregação que se efetivam através da divisão dos espaços de blocos de trio, da construção de camarotes e dos limites ocupados pela chamada pipoca, elementos das festividades carnavalescas que reproduzem as desigualdades socioeconômicas e territoriais da cidade de Salvador. Por ser Salvador essa cidade dividida noutras “cidades”, que revelam as contradições de uma formação social crivada por antagonismos de classe, o discurso da música carnavalesca baiana, ainda que cantando uma felicidade filiada à ideologia do hedonismo, não escapa às determinações socioeconômicas dessa realidade, que desponta no discurso musical sob a forma da lamentação, do conformismo, do silenciamento, da indignação, da fuga ascética e da contestação possível à ordem estabelecida.

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