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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

3.1 Discurso musical e memória do dizer

3.1.2 Traços de uma memória discursiva hedonista

3.1.2.1 Dos batuques africanos às “danças de umbigadas”

Em “Os sons negros no Brasil”, Tinhorão (2012) situa historicamente o legado das tradições culturais africanas sobre a nossa cultura popular urbana, especialmente no tocante às danças e músicas. Segundo esse autor, “batuques” era a denominação genérica e preconceituosa com a qual os europeus se referiam aos diversos estilos de dança dos negros africanos (TINHORÃO, 2001), mas que, originariamente, não se restringiam a bailes e folguedos, na medida em que abrangiam “uma diversidade de práticas religiosas, danças rituais e formas de lazer” (TINHORÃO, 2012, p. 55). Aos poucos, as autoridades foram distinguindo, nas reuniões de negros e negras, as formas de culto religioso das formas de diversão dos escravos, de tal maneira que a delimitação desses campos tornou a prática religiosa clandestina, escondida em espaços abertos pelas matas e, ao mesmo tempo, procurou administrar os sentidos dos batuques, restringindo-os à diversão profana.

No entanto, para melhor se compreender o conjunto heterogêneo das criações populares relacionadas a danças e cantos, é necessário considerar as múltiplas influências crioulo- africanas e branco-europeias. Pelas cidades e vilas, brancos e mulatos das camadas mais baixas passaram a cultivar os batuques de negros a eles acrescentando elementos novos, através do “casamento da percussão, da coreografia e do canto responsorial africano-crioulo com estilos de danças, formas melódicas e novo instrumental (principalmente a viola), introduzidos pelos herdeiros nativos da cultura europeia” (TINHORÃO, 2012, pp. 55-56).

Os cantos e danças brasileiras cujas origens se ligam aos batuques africanos têm em comum, segundo o gesto interpretativo do antropólogo Édison Carneiro, citado por Tinhorão (2012, p. 56), um elemento muito presente também nas músicas de massa da atualidade: a umbigada, cuja sobrevivência atual mantém tênues laços com a memória dos rituais de casamento praticados em território africano, onde esse gesto sexualmente sugestivo tinha outros sentidos. A umbigada das danças africanas desempenhava uma função simbólica nos chamados “rituais de lembamento”, tendo em vista que ela representava os atos sexuais aos quais se entregariam os sujeitos unidos através desses rituais. Em outras palavras,

De fato, como todas as danças rituais constituem, na realidade, representações alegóricas, as que compunham, na África, a espécie de suíte de cenas das vidas dos casados, dançadas durante a cerimônia culminante do casamento (...) teriam que incluir, necessariamente, referências explícitas aos jogos amorosos e atos sexuais” (TINHORÃO, 2012, pp. 56-57).

“Cantigas obscenas” e “danças desonestas”, nas quais figurava a umbigada, faziam parte do ritual do lembamento, pelo qual se apresentava à moça e ao rapaz nubentes o que os aguardava, em termos de vivência sexual, sob a condição de homem e mulher casados. Um dos batuques africanos consistia na formação de uma roda de dançadores, para o meio da qual uma mulher ou um homem se dirigia e, após realizar diversos passos, escolhia de quem se aproximar dançando para dar uma umbigada, chamada de semba, mediante a qual a pessoa escolhida substituía a anterior no centro da roda, recomeçando uma nova rodada do batuque. É possível que a música mais tarde transformada num dos símbolos do carnaval brasileiro, sobretudo do carnaval carioca, tenha recebido o nome de samba por conservar o rebolado e as umbigadas dos batuques de outrora. Assim, a paganização dos batuques africanos, transformados em simples diversão de negros escravos, mulatos e demais pessoas das classes baixas, deixou-nos o legado de um de seus momentos coreográficos, de tal forma que o batuque virou samba, quando invadido pela umbigada angolana.

Há quem considere o lundu a “mãe de tantas outras danças que causariam muito mais polêmica na nossa história musical” (FAOUR, 2006, p. 253). Registra Del Priore (2011), em suas “Histórias íntimas...”, que a princesa desposada por Dom Pedro I em 1817, Leopoldina Carolina, recusava-se a assistir às apresentações da dança lundu, visto por esta como imoral e indecente, por isso inconveniente às famílias nobres. Entretanto, como os primeiros duzentos anos de história do Brasil são marcados por um lacunoso silêncio a respeito das músicas e das danças aqui praticadas, o registro histórico mais antigo que se tem a respeito do lundu encontra- se nos versos de Domingos Caldas Barbosa22 (1740-1800), publicados em dois tomos intitulados “Viola de Lereno”, visto que, como membro da “Arcádia de Roma”, ele adotou o pseudônimo de “Lereno Silinuntino”, conforme a tradição da época.

A fofa, o lundu23 e o fado24 foram, respectivamente, as três primeiras danças criadas a partir dos batuques, cujas coreografias e ritmos funcionaram como matéria-prima da qual se

22 “O poeta e violeiro Caldas Barbosa era filho de pai branco com uma negra de Angola, chegada ao Rio de Janeiro

já grávida. Reconhecido pelo pai, o mulatinho chegou a estudar no Colégio dos Jesuítas, mas, por volta de 1760, certas queixas contra seus epigramas e versos satíricos provocaram seu envio como soldado para a Colônia do Sacramento, no extremo Sul do Brasil” (TINHORÃO, 2013, p. 19)

23 Tinhorão (2012; 2010) descobriu fontes históricas que permitem situar a existência da dança denominada fofa

no Brasil desde 1730 e a do lundu desde 1768-69, desconstruindo o equívoco segundo o qual a fofa seria uma dança portuguesa, devido ao sucesso dessa dança entre as camadas populares de Portugal, as quais a concebiam como uma dança nacional.

24O fado, uma dança brasileira, foi levado a Portugal, onde deu origem à música portuguesa que leva esse nome.

O tipo de canção chamada fado surge da interpolação do pensamento poético na dança assim denominada. Portanto, o fado também não é uma música de origem portuguesa, como se tem pensado, que teria sido transplantada para o Brasil. (TINHORÃO, 2010, p. 109).

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apropriaram brancos e mestiços das camadas inferiores do Brasil. Em comum, fofa e lundu traziam contribuições africanas: os meneios de corpo na primeira e as umbigadas ostensivas na segunda, mas ambas receberam também influência europeia, a exemplo do castanholar de dedos típico do fandango ibérico. Apesar das semelhanças, a fofa permaneceu como dança, ao passo que o lundu, ao acrescentar os estribilhos e as estrofes acompanhadas de viola, evoluiu para o lundu-canção. A fofa foi moralmente condenada pelas camadas detentoras de poder, passando a ser considerada uma criação cujo público apreciador se encontrava nas classes rebaixadas das grandes cidades, pois, tanto no Brasil quanto em Portugal, ela era cultivada por escravos negros, mestiços e brancos das camadas depauperadas.

A fofa e o lundu, danças e cantos da Bahia do século XVIII originárias dos batuques dos terreiros africanos, são expressões da cultura popular produzida pelas classes dominadas de Salvador e do Recôncavo baiano. Essas danças e cantos foram se estruturando pelas praças, pelos terreiros e pelas ruas da capital baiana e dos centros populacionais do Recôncavo. Neles se misturavam ritmos, melodias e coreografias de origem africana e europeia, para atender à nova realidade da Colônia, adentrando primeiro as casas das famílias mais modestas e, posteriormente, passando por algumas suavizações estilísticas, chegava às salas das famílias abastadas. Como criação da gente das camadas inferiores, essas músicas foram alvo da censura de religiosos, moralistas e viajantes europeus que assistiram às suas encenações por pessoas das camadas populares de vilas e distritos baianos. Os movimentos corporais que chocavam religiosos, moralistas e viajantes

só podiam ser os das umbigadas características da coreografia das danças de roda ao ar livre introduzidas pelos escravos africanos e adotadas por seus descendentes crioulos, e às quais já expressamente se referia o poeta Gregório de Matos em fins do século XVII (TINHORÃO, 2010, p.94)

A partir da segunda metade do século XVIII, o lundu rouba a cena da fofa entre as camadas populares, atraídas pelas umbigadas ostensivas e pelo recurso ao canto através de respostas improvisadas aos estribilhos fixos. Tanto no Brasil quanto em Portugal, as altas camadas procuravam se distanciar das diversões populares, nas quais o lundu era uma atração significativa. É esse distanciamento que explica a sensação de escândalo provocada pela introdução do lundu em Lisboa pelo carioca Domingos Caldas Barbosa na segunda metade do século XVIII. Enfim, por sua carga de sentidos sexualmente ostensivos, o lundu nunca foi aceito nos salões das classes abastadas. Sua ascensão ao teatro, como objeto da cultura popular consumido também pelo branco das camadas médias, exigiu sua estilização mais amena, suavizando suas referências mais diretas ao amor carnal.

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