• Nenhum resultado encontrado

2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

3.2 Discurso musical e condições de produção

3.2.2 Condições de produção estritas: miséria social e alegria carnavalesca

3.2.2.2 Os carnavais brasileiro e baiano: os (des)encantos da festa

Miguez (2014) assinala a impropriedade da generalização contida na expressão “carnaval brasileiro”, a qual silencia a diversidade de nossos carnavais com suas peculiaridades locais e com seu colorido próprio. Mesmo as três maiores tradições carnavalescas de nosso país – os carnavais da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro – apresentam uma pluralidade de manifestações que esses rótulos não conseguem contemplar. Imprecisão dos rótulos à parte, fato é que os nossos carnavais têm uma ancestralidade comum, cuja origem remete a tradições herdadas dos jogos e brincadeiras africanas denominados “entrudo”. Importa saber como, aos poucos, esses elementos da tradição do entrudo foram se transformando ao longo da história até adquirir a configuração atual, caracterizada por sua subsunção à lógica do capitalismo.

Segundo Tinhorão (2013), não havia carnaval propriamente dito no Brasil dos primeiros séculos. Comemorações oficiais como aniversário do rei ou da rainha, bem como casamento ou nascimento de príncipes e princesas eram as festas que mais se aproximavam do que chamamos hoje de carnaval, já que nesses eventos sempre havia desfiles de fantasiados, carros alegóricos e músicas de fanfarra. No entanto, havia o entrudo, nome pelo qual se chamavam as folias de negros escravos, que

saíam às correrias pelas ruas, sujando-se uns aos outros com farinha de trigo e polvilho, ao passo que as famílias brancas, refugiadas em suas casas, divertiam-se derramando pela janela tinas de água suja sobre os passantes, enquanto comiam e bebiam como os antigos37 num clima de quebra consentida da extrema rigidez da família patriarcal (TINHORÃO, 2013, p. 130).

Em tais brincadeiras, ainda não havia surgido nenhuma demanda social por organização, de tal forma que elas se realizavam caoticamente sem a necessidade de música. Porém, a partir da metade do século XIX, o Rio de Janeiro, na condição de capital do Brasil na qual morava a família real, já era uma cidade portadora de uma diversificação social cujas classes médias reivindicavam diversões à moda europeia. Dessa maneira, as elites brancas passaram a ter seus carnavais à europeia nos bailes à fantasia realizados em teatros, distantes da “gente baixa” que se sujava pelas ruas segundo a tradição do entrudo. A gente branca do Rio de Janeiro encontrava nos bailes carnavalescos o reduto de suas diversões: bailes públicos explorados por particulares. Para sustentar o clima de alegria, muita comilança e muita bebida, as classes médias cariocas

37 Os antigos a quem se refere Tinhorão são os gregos e romanos, que costumavam comemorar a abundância das

colheitas através de festas pagãs conhecidas como saturnais e lupercais, durantes as quais os escravos se sentiam livres para comer e beber desbragadamente.

importaram da Europa a dança que animaria seus carnavais nos referidos bailes: a polca, que “imperou sobre a valsa, schottishes e mazurcas, reafirmando sua condição histórica de primeiro gênero de música carnavalesca de salão do Brasil” (TINHORÃO, 2013, p. 131).

Ao lado dos bailes à europeia, a classe média nascente procurava também criar a sua alternativa de carnaval de rua, que fora encontrada numa nova importação de modelos carnavalescos europeus mediante a realização de desfiles com carros alegóricos, cujo pioneirismo se deve ao romancista José de Alencar, preocupado com o desenvolvimento de uma alternativa de carnaval para as famílias de sua classe social. Portanto, a passagem do entrudo ao carnaval moderno foi marcada por escolhas alternativas da classe média brasileira do século XIX, a qual, não tendo uma tradição própria, utilizou-se da imitação de costumes das classes médias dos países mais desenvolvidos. Por isso, não se podia esperar que o sujeito histórico que imprimiria ao carnaval brasileiro uma fisionomia autêntica fosse as elites brancas.

A criação autêntica do carnaval brasileiro só podia surgir entre as camadas populares, que, cansadas das perseguições policiais às brincadeiras do entrudo, paganizaram os desfiles das procissões, cuja forma de avançar pelas ruas serviu de modelo ao nascimento dos cordões carnavalescos. Segundo Tinhorão (2013, p. 132), “os cordões (...) foram os primeiros núcleos de criadores da autêntica música de carnaval”. Constituídos por negros, mestiços e brancos das camadas humildes do Rio de Janeiro, os cordões viviam ainda sob certa anarquia, no sentido de que cada folião criava seus passos livremente conforme as sugestões das músicas. Esse caótico carnaval de rua adquire sua primeira forma de canção com finalidades carnavalescas a partir de 1870, mas ainda não como uma criação autêntica brasileira. Trata-se da tradição portuguesa dos tocadores de grandes bumbos denominados zé-pereiras, os quais, na região do Minho, acompanhavam as procissões juntamente com tocadores de gaitas de fole.

Entretanto, até antes do século XX, o carnaval ainda se apresentava caoticamente em termos de identidade musical. Ouviam-se modas sertanejas, valsas e polcas de brancos, estribilhos africanos etc. Foi nesse cenário musicalmente diverso que a marcha e o samba surgiram para dotar o carnaval de um ritmo e uma organização, que não existia anteriormente ao início do século XX (TINHORÃO, 2013). As valsas e polcas revelaram-se anacrônicas por não atender à necessidade de evolução pelas ruas, ao passo que os novos ritmos, em compassos binários, marcavam a cadência evolutiva dos foliões. No gênero das marchas, destaca-se o protagonismo de uma compositora feminina num domínio monoliticamente masculino: Chiquinha Gonzaga com sua marchinha “Ó abre alas”, de 1899. No tocante especificamente ao samba, o primeiro grande sucesso carnavalesco, registrado na Biblioteca Nacional por Ernesto dos Santos, o Donga, com o título “Pelo telefone”, marca o lançamento de um novo produto

89

musical, que explodiu no carnaval de 1917, agora com disputa por reconhecimento de autoria38,

dentro de um novo cenário de início da profissionalização dos músicos e quebra com o caráter folclórico das criações populares.

Na conjuntura baiana anterior à década de 1950, aconteciam também os carnavais da aristocracia local, com seus desfiles de préstito e com seus bailes privados em clubes fechados. Mas, tal como apresenta Miguez (2014), alguns acontecimentos bastante significativos alteraram profundamente a dinâmica do carnaval baiano. A invenção do trio-elétrico em 1950, obra efetivada por Osmar Macedo e Adolfo Nascimento (Dodô), redefiniu o espaço das ruas como locus festivo comum a todos, sem divisões nem separatismos de qualquer natureza. Ainda não havia se instituído os limites espaciais que definem a participação dos foliões conforme sua posição na estrutura socioeconômica da sociedade. Os foliões, com o advento do trio-elétrico, passaram a pular como pipoca, com liberdade para executar os movimentos de sua dança pelas ruas de Salvador. Como um novo palco móvel que eliminava a dualidade palco/plateia, o trio contou ainda com a inovação tecnológica das guitarras elétricas, que viriam a contribuir para a emergência de um novo gênero musical anos mais tarde. Mas o trio-elétrico revelou-se também um veículo estratégico de propagandas, tornando-se alvo dos patrocinadores da festa, que vai se convertendo numa organização essencialmente mercantil.

Já em meados da década de 1970, acontece um processo de “reafricanização do caranaval” baiano, através do ressurgimento dos afoxés39 e dos blocos afros (MIGUEZ, 2014,

p. 84). Os blocos afros reabilitaram os afoxés, que quase desapareceram da cena carnavalesca baiana no final dos anos sessenta. O tradicional Filhos de Ghandi chega a desfilar com cerca de oito mil foliões. O aparecimento de blocos de trio foi outro acontecimento que, nos anos oitenta, estreitou os laços do carnaval baiano com a lógica do capitalismo. O espaço público da festa passa por um processo de privatização consentida e fomentada pelo Estado. Se a invenção do trio-elétrico havia destruído a antiga hierarquização aristocrática do carnaval, a emergência dos blocos de trio, nos anos oitenta, reintroduziu a segregação dos espaços festivos.

Nesse processo de progressiva mercantilização da festa, a identificação da Bahia com o carnaval – “Bahia é carnaval / É festa o ano inteiro” – funciona como uma estratégia discursiva

38“Pelo telefone” é uma criação coletiva de foliões baianos e gente da baixa classe média carioca que frequentavam

a casa da baiana Tia Ciata no Rio de Janeiro. A “esperteza” de Donga ao registrar a música que inaugurava um novo gênero musical revela que “o novo gênero de música urbana não nascia mais anonimamente, mas entre pessoas que tinham consciência de fazer de sua criação uma coisa registrável” (TINHORÃO, 2013, p. 144)

39Uma tipologia das organizações carnavalescas baianas é apresentada por Miguez (2014), que relaciona os afoxés

às manifestações religiosas de escravos africanos do período colonial de nossa história. Os afoxés musicalmente se caracterizam pelo uso de orquestras com percussões leves, incluindo atabaques, agogôs e xequerês, bem como pela entoação de cantos da liturgia do candomblé.

para promover, política e comercialmente, a empresa carnavalesca baiana que, no cenário nacional brasileiro, concorre com as outras duas grandes festividades carnavalescas nacionais mais enaltecidas, realizadas em Pernambuco e no Rio de Janeiro. O carnaval de Salvador, o carnaval do Rio de Janeiro bem como o Carnaval de Recife e Olinda se transformaram em megaeventos que, embora apresentem características peculiares, atraem os interesses de capitais nacionais e internacionais que patrocinam esses momentos festivos com o intuito de realizar grandes negócios e maximizar lucros.

Desse modo, os festejos carnavalescos da atualidade foram cooptados pela lógica do capitalismo, que transforma todas as relações sociais em relações mercantis. Miguez (2014, p. 77) considera que a emergência de práticas mercantis transformou os festejos carnavalescos em grandes negócios que movimentam uma “portentosa e complexa economia”. Esse autor apresenta fontes que informam a movimentação de mais de setecentos milhões de reais no carnaval carioca de 2006, em cuja produção atuaram cerca de quinhentos mil trabalhadores. Contanto com a força de trabalho de mais de cento e sessenta mil trabalhadores, a movimentação financeira do carnaval de Pernambuco ficou em torno de duzentos milhões de reais no ano de 2005. Embora não saibamos como essa contabilidade é feita, a questão não respondida e de grande relevância socioeconômica consiste em querer saber como vultosos investimentos são realizados e, mais importante ainda, como os lucros são distribuídos.

Para Miguez (2014), os blocos de trio, ao privilegiar a dimensão de mercado, teriam promovido “um importante salto de escala”, na medida em que transformou o carnaval baiano em produto consumido para além do carnaval de salvador, através dos carnavais fora de época realizados em várias capitais brasileiras. Mas, como as soluções capitalistas sempre se processam por meio de exclusões e injustiças sociais, o autor de “O carnaval da Bahia: do entrudo lusitano aos desafios contemporâneos”40 lamenta que a “vocação pós-industrial de salavador” ainda não tenha sido acompanhada de desenvolvimento para uma grande parcela da populacional da cidade. Sua conclusão desencantada não poderia ser outra, visto que o carnaval baiano gera uma riqueza que se concentra “quase que exclusivamente nas mãos de poucas empresas que atuam nos segmentos dominados pelos grandes capitais responsáveis pelos múltiplos negócios dos grandes blocos e pelo parque hoteleiro” (MIGUEZ, 2014, p. 91).

Essa avaliação objetiva permite pensar os efeitos da mercantilização do carnaval baiano no tocante ao que se passou a produzir musicalmente. Embora artistas criativos tenham contribuído para a riqueza da cultura musical baiana e brasileira, a partir dos anos oitenta,

40O entrudo, tal como analisou Tinhorão (2013) é uma tradição de origem africana desdenhada pelas aristocracias

91

quando são estabelecidas as condições para o nascimento da axé music, os imperativos da lógica capitalista levam até as últimas consequências a finalidade mercantil, cujos desdobramentos mais recentes revelam uma queda na qualidade da produção musical e um regresso político e ideológico no plano da discursividade musical, cujos sentidos dominantes fazem apologia ao sexismo e incitam preconceitos contra a mulher, além de fazer da ostentação uma virtude, apesar das condições precárias em que vive um contingente expressivo da população baiana.

Documentos relacionados