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2 ANÁLISE DE DISCURSO: UM DISPOSITIVO TEÓRICO PARA

2.3 A constituição dos sentidos em Análise de Discurso

Se os sentidos não devem ser pensados como uma propriedade da palavra em si, como uma relação de literalidade, convém estabelecer teoricamente como eles se constituem na perspectiva da Análise de Discurso. Pensemos juntamente com Michel Pêcheux: “as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas (2009, p. 147). Dessa primeira citação, desponta a noção de formação discursiva (FD) como um conceito central para compreender a constituição dos sentidos em AD. Esse conceito desloca a problemática do sentido da esfera estrita da língua para as condições de produção do discurso com os conflitos ideológicos que lhes são inerentes, na medida em que uma FD se define como

aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.). (PÊCHEUX, 2009, p. 147).

O sentido se constitui sob a pressão de determinadas condições do dizer, já que nem tudo pode ser dito em conjunturas sociais crivadas por conflitos ideológicos de classe, aos quais acrescentamos os de gênero, étnicos etc. Desse modo, a noção de formação discursiva pode ser pensada como um domínio de saberes constituídos por discursos que representam, na linguagem, determinadas formações ideológicas (INDURSKY, 2000; PÊCHEUX, 2009). Discurso, em AD, não equivale a ideologia, como termos que se recobrem mutuamente, mas eles mantêm uma relação de imbricação. Entendemos essa relação pensando que a materialidade do discurso é a língua situada na história, assim como uma das formas de realização material da ideologia é o discurso situado numa formação discursiva. Se o que pode e deve ou não ser dito, determinado por uma FD (um domínio de saberes), articula-se como uma arenga, um panfleto ou um programa etc., é porque uma mesma FD engloba possibilidades de produção de sentidos conflituosos entre si e divergentes em relação à ideologia dominante. Logo, posições-sujeito em conflito.

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Pensar as formações discursivas articuladas às formações ideológicas ajuda a compreender o processo pelo qual os sentidos e os sujeitos se constituem. Tal articulação tem a eficácia de flagrar o referido processo em sua materialidade constitutiva da subjetividade e da significação. Em Análise de Discurso, a ideologia não paira no ar, como o espírito ou a mentalidade de uma época (Zeitgeist), mas adquire concretude no interior das formações discursivas. Desse ponto de vista, em que o dito se articula ao ideológico ou vice-versa, podemos dizer que “os indivíduos são “interpelados” em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam na linguagem as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 2009, p. 147). Habilmente, Michel Pêcheux se filia a Althusser, mas deslocando a tese segundo a qual a ideologia interpela os indivíduos em sujeito para o campo discursivo e acrescentando a ela o papel desempenhado pelas formações discursivas nesse processo de interpelação ideológica. Tal deslocamento afirma que as formações discursivas são um dos lugares privilegiados de concretização ou de materialização das formações ideológicas.

Tendo em vista a imbricação entre as formações discursivas e ideológicas, inevitavelmente, faz-se necessário admitir que uma palavra, uma expressão ou uma proposição adquirem seus sentidos no processo histórico em que as posições ideológicas em jogo disputam quais significações se institucionalizam como sentidos legítimos, ao lado de outras possibilidades semânticas consideradas indesejadas ou perigosas pela ideologia dominante. Se entendermos que, apesar de dominante, nenhuma ideologia é homogênea, tendo em vista que os rituais de interpelação ideológica são sujeitos a falhas (INDURSKY, 2000; PÊCHEUX, 2009), há sempre uma margem considerável para o sujeito do discurso se inscrever em formações ideológicas dominadas, o que equivale a dizer que

as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas” (PÊCHEUX, 2009, pp. 146-147 – grifo do autor). Portanto, em Análise de Discurso, não há dúvida quanto ao vínculo indissolúvel entre os sentidos das palavras e as formações ideológicas materializadas em determinada formação discursiva. Não tendo um sentido que lhe seja literal, uma mesma palavra, expressão ou proposição pode adquirir sentidos diferentes e “evidentes”, conforme se inscrevam numa formação discursiva ou noutra. É no interior de uma formação discursiva dada – na relação que estabelece com outras palavras, expressões e proposições – que elas recebem seus sentidos. Da mesma forma, as palavras, expressões e proposições estabilizadas com sentidos literalmente

diferentes podem vir a receber o mesmo sentido no interior de uma mesma formação discursiva. O que temos pensado, filiando-nos a Orlandi (2011b), como produção histórica do sentido literal é, na verdade, um efeito discursivo da inscrição de uma palavra, expressão ou proposição no interior de uma formação discursiva, na qual seu sentido se apresenta como evidente. Mas é preciso ir além, interrogando que mecanismos entram em funcionamento no interior de uma FD produzindo efeitos de evidência. Eis o que nos diz a esse respeito o autor de Semântica e discurso:

o próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso, que determina essa formação discursiva como tal, objetividade material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre “antes, em outro lugar e independentemente”, isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, 2009, p. 149).

Nesse ponto, Pêcheux convoca o conceito de interdiscurso, outro conceito central em Análise de Discurso, a fim de elucidar o mecanismo constitutivo da evidência dos sentidos numa FD. Há uma “objetividade material contraditória” que, embora seja dissimulada, determina as formações discursivas. Que objetividade é essa? O interdiscurso, compreendido como aquilo que, sob a dominância do complexo das ideologias, já foi dito antes, noutro lugar e independentemente, mas que determina a condição do dizer no interior de uma formação discursiva. Orlandi (2007, p. 31) esclarece que “o sujeito toma como suas as palavras da voz anônima produzida pelo interdiscurso”. Assim, os já-ditos adquirem a forma de pré-construídos que retornam, ainda que inconscientemente, sempre que um domínio de saberes recebe novas formulações, fazendo sua rede de filiação de sentidos se movimentar. Eles formam uma memória discursiva, uma memória socialmente constituída que atravessa os discursos.

Convém finalmente caracterizar o interdiscurso, essa memória do dizer que se articula como um “‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação que, como dissemos, caracteriza o complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 2009, p. 149). Se pensarmos o interdiscurso como o “conjunto das formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2010, p. 31), precisamos entender também que entre elas há relações de “desigualdade-contradição-subordinação”, de maneira que possamos compreender a heterogeneidade dos sentidos em sua constituição política nos jogos de poder, já que o interdiscurso é atravessado por formações ideológicas contraditórias e desiguais. Consequentemente, o indivíduo assim interpelado ideologicamente se torna um sujeito contraditório, dividido, múltiplo e incompleto.

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