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5 O RECRUDESCIMENTO DO DISCURSO MISÓGINO NA ESCALADA DA

5.5 Intolerância discursiva ao “mercenarismo feminino”

5.5.1 Conflitos ideológicos no discurso sobre ostentação e mercenarismo

61“a presença de comportamentos idênticos é socialmente avaliada de forma diferente se quem executa o

comportamento é um homem ou uma mulher: enquanto um comportamento é considerado tipicamente feminino, ele pode ser pouco valorizado; quando se converte em característica do gênero masculino, aumenta a sua valorização” (Tradução nossa)

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A nossa análise pode se iniciar com algumas sequências discursivas extraídas de uma canção da Banda Luxúria, intitulada “Só pega quem tem”, na qual a figura da mulher “novinha” reaparece como objeto de desejo masculino, cuja posse segue a mesma lógica das leis de mercado, a mulher descrita/interpretada como uma mercadoria animada que decide a qual homem/proprietário vende seus serviços sexuais, de acordo com a lucratividade da transação, comercial e sexual:

SD (55)

Só pega quem tem, só pega quem tem

Essa novinha gosta de luxo e não dá mole pra ninguém Só pega quem tem, só pega quem tem

Dinheiro, carro importado, pode chamar que ela vem (SÓ PEGA QUEM TEM, [2014?])

Esses versos constituem uma materialidade discursiva exemplar para a análise dos sentidos dominantes nas letras da música carnavalesca baiana chamada de pagofunk. Eles introduzem uma interpretação muito presente no cancioneiro brasileiro atual: “a mulher é um ser mercenário” (“Essa novinha gosta de luxo”). Entretanto, não devemos olvidar que, “como os sujeitos estão condenados a significar, a interpretação é sempre regida por condições de produção específicas que, no entanto, aparecem como universais e eternas” (ORLANDI, 2007, p. 165). Para problematizar essa aparente eternidade e naturalidade do “mercenarismo feminino”, enunciada numa linguagem que se quer transparente, precisamos procurar ver sua opacidade constitutiva.

A leitura do feminino sob o signo do mercenarismo parte de pressupostos altamente questionáveis que se apresentam como um corolário inevitável: só seduzem facilmente as mulheres, homens de posses, homens ricos: “Só pega quem tem”. Tal gesto de leitura e sua ideologia misógina subjacente permitem aos homens elaborar um discurso e um acordo entre si, por meio dos quais eles colocam a seguinte alternativa para o fim de conquistar as mulheres: “Joga a nota de cem que ela vem” (KIT DO PATRÃO, [2013?]). Dessa forma, a ostentação masculina parece ser um expediente necessário para satisfazer o mercenarismo feminino nos jogos de sedução e conquista. Eis o argumento pressuposto no discurso sobre o mercenarismo feminino: homens ostentam para seduzir as mulheres porque elas são mercenárias.

Produzida numa formação social profundamente crivada por conflitos de classe e de gênero, a ideologia hedonista-misógina materializada no discurso do pagofunk põe em circulação sentidos referentes às práticas sexuais que envolvem homens e mulheres na sociedade capitalista. Como canções compostas por sujeitos que se filiam à formação ideológica

do machismo, as letras realizam gestos interpretativos segundo os quais as mulheres são facilmente seduzidas por homens socioeconomicamente poderosos. À clássica pergunta “O que quer a mulher?”, esse discurso musical responde categoricamente que a “novinha” da atualidade “Quer poder”, título de outra canção da Banda Luxúria62:

SD (56)

Ô tira foto do Iphone Montada na sua Biz Tattoo no antebraço Tem um piercing no nariz Festinha, tá em todas Balada e azaração Pra pegar essa novinha Tem que ter aquisição Ela não quer romance Ela quer ostentação Não quer ser a princesa Mas a mulher do patrão Quer, quer, quer, quer poder Novinha quer poder

Com o patrão até amanhecer

(QUER PODER, [2014?])

Segundo tal gesto interpretativo – que reproduz o estereótipo da jovem liberal de classe média devotada à vida hedonista da curtição (“Ô tira foto do Iphone / Montada na sua Biz / Tattoo no antebraço / Tem um piercing no nariz / Festinha, tá em todas / Balada e azaração”) – não é qualquer homem que pode estabelecer com as “novinhas” interesseiras alguma aproximação com finalidade sexual hedonista. É preciso ser “patrão”, isto é, ocupar a posição de classe dominante em nossa estrutura social, a fim de levar adiante o comércio sexual legitimado pela sociedade capitalista, na qual o homem economicamente poderoso pode “pegar” (possuir sexualmente) a mulher “novinha”, que, em troca, adquire “poder”, segundo a ideologia cantada pelo grupo Luxúria: “Pra pegar essa novinha / Tem que ter aquisição / Ela não quer romance / Ela quer ostentação / Não quer ser a princesa / Mas a mulher do patrão”.

Essas sequências discursivas produzem efeitos de sentido que banem da esfera das relações interpessoais de homens e mulheres todo romantismo e toda afetividade, mediante um álibi discursivo que atribui à feminilidade a falta de interesse pelo afeto ou pelo “romance”. É como se a lógica usurária da sociedade capitalista em que vivemos tivesse sido plasmada pelo

62O nome desse grupo musical baiano condensa os sentidos da ideologia misógina que suas canções difundem:

Luxúria como uma deriva de sentidos que associa a insaciável procura masculina por prazeres sexuais ao luxo (a ostentação de bens materiais valorizados na sociedade capitalista), concebido como o meio mais apropriado para a finalidade de seduzir e conquistar mulheres.

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comportamento mercenário feminino, aqui acusado de não querer mais esperar pelo amor do “príncipe” encantado, preterido pelas aquisições do poderoso “patrão”. É como se o comportamento da mulher estivesse na origem das ambições capitalistas.

Na verdade, porém, “príncipe” e “patrão” constituem um binômio que significa nesse dizer pela inscrição da língua na história (ORLANDI, 2007), cuja memória discursiva resgata e põe em confronto ideologias do mundo medieval e ideologias do mundo moderno capitalista. Como o capitalismo suplantou o mundo medieval, seu representante da classe burguesa, o “patrão”, apresenta-se no discurso musical como o substituto do “príncipe” derrotado. O mais significativo, no entanto, é que, como “príncipe” ou “patrão”, a posição de classe dominante continua a exercer fascínio não apenas no imaginário feminino, mas no imaginário social moderno, seguramente porque a passagem do medievo ao capitalismo não eliminou a desigualdade de classes sociais, que foram mantidas apesar de os sujeitos opressores e oprimidos serem outros.

Assim, significativamente, no discurso da banda Luxúria, a “novinha” não espera uma relação afetiva com o “príncipe”, porém ela “Quer, quer, quer, quer poder / Novinha quer poder / Com o patrão até amanhecer”. O efeito de sentidos ambíguos produzido por essas sequências discursivas remete ao que temos chamado de erotização da palavra cidadã, uma deriva que faz os sentidos mais estabilizados e aceitos de palavras que habitam legitimamente a urbi, a cidade (por isso cidadãs) deslizarem para outras significações menos toleradas ou mesmo proibidas devido a seu teor erótico, obsceno ou pornográfico. A repetição da forma verbal “quer” associada ao verbo “poder” produz um efeito sonoro que sugere outra coisa: “quer poder” deriva para “quer foder”, sugestão que se confirma com o acréscimo da circunstância de tempo, na qual se revela com quem e até quando o intercurso sexual deve acontecer: “Com o patrão até amanhecer”.

Portanto, assim como o nome Luxúria sintetiza um complexo de desejos libidinosos e mercenários, esse grupo musical produz uma discursividade cujos sentidos misóginos tendem a interpretar as mulheres sob o signo do mercenarismo e da lubricidade. Taradas e ambiciosas, ninfomaníacas e interesseiras, desbragadas sexualmente e insaciáveis economicamente, essa a imagem que o discurso da banda Luxúria constrói para a feminilidade juvenil e esse o imaginário que tal discurso resgata e alimenta simultaneamente, pondo em circulação maneiras de interpretar e compreender o feminino mediante a estereotipia e a humilhação das mulheres. Não é por acaso que a figura do “patrão” ocupa lugar central no discurso musical brasileiro atual, visto que a posição de classe dominante é acionada para facilitar o assédio

sexual às mulheres. Os símbolos desse lugar privilegiado na estrutura social brasileira aparecem abundantemente no discurso do Pagofunk, a exemplo de Black Style em “Nóis é patrão”:

SD (57)

Corrente de ouro, relógio importado no braço Com a grana na mão, lá vem o patrão (bis) Uma barca pra dar um rolé, abre o teto solar êêêê Só vai dar eu e ela(bis)

Ela quer blusa da armani e blusa da louis vuitton

Ela dar pra nois que nois é patrao, ela da pra nois que nois é patrão ,ela da pra nois que nois é patrão olha a contravenção (bis)

Não, pro secretario não Não, ela só da pro patrão (bis)

Ela quer blusa da armani e blusa da louis vuitton

Ela dar pra nois que nois é patrao, ela da pra nois que nois é patrão ,ela da pra nois que nois é patrão olha a contravenção (bis)

[...]

(NÓIS É PATRÃO, [2012?])

No contexto de nascimento do capitalismo, Thomas Morus (2011), em sua obra “A utopia”, idealizou relações sociais nas quais os utopianos atribuíam ao ouro os sentidos de um metal tão desprezível que era usado para fabricar recipientes de imundície, como corrente para aprisionar escravos e como insígnia nas orelhas de malfeitores. Dessa forma, seu “socialismo utópico” realizou um gesto interpretativo que desnaturalizou a valoração do ouro, mostrando que a natureza não dota o metal de nenhuma propriedade especial, sua valorização decorrendo muito mais da tolice humana, que valoriza o que é raro e supérfluo. Sabemos, porém, que o ouro ainda figura como símbolo de poder econômico e social nas culturas ocidentais modernas, sendo uma mercadoria à qual o capitalismo presta uma devoção quase divina.

Diferentemente da filiação ideológica dos utopianos, através da “corrente de ouro” que o sujeito do discurso ostenta, em “Nóis é patrão”, ele se filia e filia seu dizer à ideologia elitista típica das sociedades de classe e, especificamente, da sociedade capitalista, na qual a distinção entre humanos é demarcada pela posse de mercadorias valorizadas socialmente. O fetiche da propriedade privada e a demarcação das diferenças de classe permitem que a letra da referida canção faça circular os sentidos que ostentam o “relógio importado”, mercadoria cuja valoração revela o quanto as consciências permanecem colonizadas.

Mas, na referida canção, a imagem espetacularmente ostensiva do homem economicamente poderoso se amplia com a exibição do automóvel de luxo, concebido como o

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mais forte argumento para persuadir mulheres: “Uma barca pra dar um rolé, abre o teto solar êêêê / Só vai dar eu e ela”. Outros argumentos eficientes, segundo a alternativa da ostentação masculina para seduzir mulheres mercenárias, consiste em presenteá-las com as marcas e as etiquetas da moda, sobretudo as socialmente mais supervalorizadas: “Ela quer blusa da armani e blusa da louis vuitton”.

A práxis social capitalista e o discurso musical que ela produz contribuem para hierarquizar as relações entre o masculino e o feminino, com um prejuízo enorme para a vida e para a imagem social da mulher. A consequência ideológica e prática dessa construção social e discursiva da inferioridade feminina é a naturalização da convicção de que as relações interpessoais que envolvem sexualmente homens e mulheres devem ser mediadas pelo exercício do poder econômico masculino, ao qual as mulheres se sujeitam devido à sua propensão naturalmente mercenária: “Ela dá pra nóis que nóis é patrão”. Como um subalterno que obedece às ordens do patrão nas relações de trabalho da sociedade capitalista, a mulher deve se submeter ao poder econômico do patronato nas relações interpessoais de sedução e conquista. Eis o efeito de sentido dominante no discurso da música carnavalesca baiana chamada de pagofunk.

A ideologia do capital faz do automóvel de luxo o argumento mais forte para seduzir e conquistar mulheres mercenárias. A banda O Troco canta uma canção intitulada “Teto do meu carrão”, apresentada como uma “novidade” que faria sucesso pelos postos de combustíveis, onde a juventude atual costuma se encontrar para beber, paquerar etc. Os sentidos que dominam o dizer dessa música estão sintetizados em seu refrão:

SD (58)

[...]

Sobe no teto do meu carrão E mostra o pacotão

Mostra o pacotão Mostra o pacotão

(TETO DO MEU CARRÃO, [2010?])

À parte a rima fácil carrão/pacotão, adquire relevância significativa o recurso ao grau aumentativo de tais substantivos, seja para enfatizar a riqueza do homem economicamente poderoso, possuidor de carro de luxo (carrão) e não de carrinho, seja para dar hiperbólica visibilidade à genitália feminina, através de um gesto interpretativo que associa tamanho dos genitais à voracidade sexual. Assim, o discurso sobre o mercenarismo feminino, materializando a ideologia hedonista-misógina, ao mesmo tempo em que coisifica as relações humanas, faz

crer no poder das coisas, como se elas fossem valiosas por si mesmas, como se elas se impusessem autonomamente, dizendo-nos eloquentemente que devemos nos submeter a elas. Mas precisamos duvidar do discurso sobre o mercenarismo feminino, interrogando-o e procurando ir além de seus efeitos de evidência, atrelados à superfície fenomênica da eloquência das coisas.

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