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Movimento Enraizados

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 58-68)

Dou um destino para minha mente

e o inconsciente trabalha em cima do caminho que devo seguir!

— Israel Ziller

Era tímido, não gostava de conversar com muita gente, nem de ser o centro das atenções, e se eu pudesse até preferiria passar despercebido, mas sempre gostei de fi car por dentro das coisas, saber de tudo o que acon- tece, como acontece e por que acontece.

Assim que recebi minha carta de alforria do Exército, meu amigo Netinho informou que precisavam de uma pessoa no supermercado em que ele trabalhava. Neguei na hora. Não fazia sentido eu sair da Petrobras Distribui- dora e entrar no supermercado Alto da Posse, um super- mercado de que até então nunca tinha ouvido falar. Porém a necessidade falou mais alto, e eu aceitei. Comecei a trabalhar no mercado no dia 25 de novembro de 1997. Lembro que pensei em fi car somente uns três meses, até eu me estabilizar, por isso aceitei qualquer setor, e caí no de contas a pagar. Meu sonho sempre foi a área de informática e eu havia prometido para mim mesmo que só trabalharia se fosse nesta área, jamais aceitaria outra proposta. Na verdade, eu queria adquirir experiên- cia na carteira e depois voltar para a universidade.

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Quando me dei conta já estava há um ano no supermer- cado, não era mais tão ligado aos camaradas do meu bairro e fi cava muito na casa do meu irmão, que nessa época morava na Abolição, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi nesse ano que conheci minha primeira namorada, a Shirley, com quem namorei sete meses, o namoro mais longo da minha vida até eu conhecer a Fer- nanda Rocha, minha atual namorada, com quem estou há mais de dois anos.

Nesta época eu só ouvia rap, já tinha muitas fi tas cas- sete, então eu e meu irmão, o Luciano Gomes, conhe- cemos o Arariboia, um camarada que sabia tudo de rap, pelo menos bem mais do que a gente. Depois de algumas conversas surgiu o Humildes Pensativos, nosso primeiro grupo de rap. Escrevi muitas letras nessa época, inclu- sive a música “Sacolinha”, que gravei no meu primeiro disco solo, “Rolo compressor”, dez anos depois.

O Humildes Pensativos nunca saiu do papel, simples- mente pelo fato de eu não conseguir cantar em público e o meu irmão não conseguir cantar no ritmo. O Arariboia foi preso pouco tempo depois da criação do grupo, o que desandou tudo de vez. Terminei o namoro com a Shirley, me afastei da Abolição e voltei para Morro Agudo. Em 1998, já estava muito envolvido com o rap. Escre- via muitas letras, tinha ido algumas vezes ao show do Racionais MCs (grupo de maior projeção no hip-hop bra- sileiro, chegaram a vender mais de um milhão de cópias do disco “Sobrevivendo no Inferno”), e também conhe- cia a música de alguns grupos de rap que não eram tão populares no meio do hip-hop. Sentia a necessidade de aprender mais sobre essa cultura.

Algum tempo depois passei um mês em Barra do Piraí, cidade do interior do Rio de Janeiro, porque minha namorada estava grávida. Lá os dias pareciam mais

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longos, eu tive tempo de refl etir sobre a minha vida e o que aconteceria dali para frente. A minha responsa- bilidade aumentaria, e muito, com a chegada da minha primeira fi lha, a Bia.

Lembro que meu cunhado também gostava muito de rap. A gente fi cou amigo logo na primeira conversa, ele é um cara gente boa, molecão, leva a vida “na vaselina”. Ele disse que me apresentaria a um outro camarada que também gostava muito de rap, e que inclusive tinha um grupo chamado 2ª Via, o Wilson Neném, um cara negro, magro, que usava dreadlocks e que media mais ou menos 1,75m.

Conheci o Neném, como o chamam em Barra do Piraí, numa manhã ensolarada. Ele nos atendeu com cara de quem tinha acabado de acordar. Nesta época ainda não existia o Dudu de Morro Agudo, eu era o Flávio Eduardo ou o Cabeça, apelido que me colocaram na infância. O Neném tinha uma visão ideológica, fi losofava o tempo inteiro, às vezes muito sonhador, mas eu precisava dessa carga de positividade para ter a ideia de criar o que mais pra frente seria o Movimento Enraizados. Eu já estava de saco cheio de fi car em Barra do Piraí, não tinha o que fazer na cidade. Passava um tempo na casa do Neném conversando sobre rap, ele me mostrando CDs de rap gringo. Lembro que ele me deu um disco do grupo Fugges, e a partir daí eu virei fã da Lauryn Hill. Ele também gostava muito de Thaíde e DJ Hum. Até hoje aprendo muito com ele, nos damos superbem, apesar de nossas personalidades serem bem diferentes.

Alguns dias depois o Neném me apresentou o Juninho, que também tinha dreadlocks. Eles pareciam artistas concei- tuados, falavam bem e conheciam muito de música, os dois já eram integrantes de bandas, o Neném como DJ e o Juninho cantando. Eu me sentia feliz em estar com esses

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novos amigos, então os convidei para o aniversário da minha namorada. Ela, por sua vez, convidou seus amigos e amigas, mas a galera do rap fi cava no lado B (entre eles) da festa, bebendo cerveja e fazendo rimas.

Nesse dia, talvez por causa do álcool, eu improvisei muito bem, e improvisar nunca foi meu forte, minha parada era escrever letras de rap. Mas nesse dia o Neném se conven- ceu de que eu era um bom rimador, e, por causa da minha performance, ele me convidou para integrar o grupo de rap 2ª Via. Quando o convite aconteceu, dentro de um ôni- bus que seguia do bairro de Vila Helena para o centro de Barra do Piraí, eu não acreditei, principalmente porque o Neném me disse que tinha uns contatos na Sony e estava quase tudo certo para gravarmos um disco.

Estava cada vez mais eufórico com o rap e o hip-hop, sons que eu começava a entender o fundamento. Andando pelas ruas do centro de Barra do Piraí passei por uma banca de jornal e comprei uma revista de hip-hop cha- mada “Som na Caixa”. Comprei também canetas, lápis, borracha e um caderno pra escrever letras de rap, por- que a inspiração vinha a toda hora. Quando cheguei em casa comecei a folhear a revista e vi algo interessante: o CD que vinha junto, além dos endereços de militantes do hip-hop. Eu pensei em escrever para todos aqueles endereços, mas não sabia o que dizer.

Talvez dizer que eu era um cara gente boa, morador de Morro Agudo, no Rio de Janeiro, e que não entendia de rap, mas que gostaria de receber alguns materiais para estudar sobre essa cultura. Isso seria o mais correto, mas achei que as pessoas não dariam atenção a um cara tão sem história dentro do hip-hop como eu. Então decidi escrever outra história, contando que fazia parte de uma organização de hip-hop. Eu precisava arrumar rápido um nome para a tal organização que estava aca- bando de criar.

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Pesquisando na internet encontrei uma frase do Tupac: “Quanto mais escura é a pele, mais profundas são as raí- zes.” Achei a frase muito boa, forte. Lembrei também do Juninho, que sempre falava a palavra enraizado. Era uma espécie de gíria que somente ele usava, não sei bem se isso vem do reggae, mas ele falava essa frase com fre- quência. Eu não tinha mais dúvidas. Fazia parte do Movi- mento Enraizados, uma organização com o objetivo de interligar pessoas que praticam hip-hop em todo o Brasil. Lembro que enviei apenas três cartas, uma para o Dime- nor (Rodrigo de Oliveira), de São Paulo, outra para o Cas- siano Pedra, de João Pessoa, na Paraíba, e por último para o Gil BV, de Teresina, no Piauí. Recebi o retorno do Dimenor e do Cassiano Pedra, que me informaram que enviaram meu endereço para alguns militantes de outros estados do Brasil, e que também gostariam de fazer parte do Movimento Enraizados.

Os dois foram os primeiros integrantes da organização que acabava de nascer.

Quando recebi as duas primeiras cartas senti uma feli- cidade impossível de descrever. Foi algo que nunca mais senti na vida. Ser valorizado por um trabalho não tem a ver com ego, mas com autoestima. Passaram-se alguns dias e chegaram dezenas de cartas na minha casa. Eu tentava responder a todas, mas com a falta de tempo era inviável retribuir a enorme quantidade de cartas que chegavam. O custo dos correios estava fi cando alto e minha mãe começava a fi car preocupada porque eu não saía mais de casa. Era o tempo todo dedicado ao Movi- mento Enraizados, lendo e respondendo cartas.

As histórias que os militantes relatavam eram impres- sionantes, as pessoas queriam falar, se mostrar para mundo, mostrar o seu mundo, suas músicas, suas ideias e pinturas, mas não havia um canal para escoar toda

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essa arte, essa gana de comunicação. A propagação de endereços, poesias e desenhos foi devida aos fanzi- nes, que eram febre na época. Existiam diversos títulos, em toda carta que eu recebia via um fanzine, às vezes o mesmo em cartas diferentes.

Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais pro- priamente da aglutinação da última sílaba da palavra magazine (revista) com a sílaba inicial de fanatic. Trata- se de uma publicação despretensiosa. Engloba todo o tipo de temas, com especial incidência em histórias em quadrinhos, fi cção científi ca, poesia, música, femi- nismo, em padrões experimentais. No Brasil o termo fanzine é genérico para toda produção independente. Houve uma distinção entre fanzines (feitos por fãs) e produção independente (produção artística inédita), mas a disseminação do termo fanzine fez com que toda a produção independente no Brasil, antes denominada boletim, fosse denominada fanzine.

Fonte: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/fanzine) Atualmente vários estudos tentam conceituar o Movi- mento Enraizados, e pode ser que estejam certos por alguns momentos, mas somos um organismo vivo, mutante, assim qualquer defi nição expira rapidamente.

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