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O rap: como conheci e por que pratique

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 42-48)

Ser você mesmo em um mundo que está constantemente tentando fazer de você outra coisa

é a maior realização. — Ralph Waldo Emerson

Assim que acabamos o primeiro grau, o Luciano Gomes foi morar em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Nós já éramos muito amigos nessa época, todo fi m de semana eu ia pra casa dele, e num desses fi ns de semana ele me mostrou uma fi ta cassete com uma música que eu achei bem mais maneira do que o funk carioca, uma fi ta com o rap do Racionais MCs. Creio que esse foi meu primeiro contato com o rap, e gostei na hora.

Para mim era tudo muito novo, as músicas duravam mui- tos minutos, eram interessantes e inteligentes, e havia também histórias que falavam daquilo que eu vivia. Nessa época eu começava a refl etir a respeito da minha vida, a respeito da sociedade, começava a analisar o mundo por outro ângulo, e percebi que toda a angústia que eu já sentia era retratada naquelas músicas. A partir daí, eu e o Luciano começamos a escrever algu- mas letras de rap do hip-hop. Digo assim porque no Rio de Janeiro tínhamos que falar desta forma – rap do hip-hop – senão as pessoas achavam que era funk, e o funk já estava totalmente demonizado pela sociedade carioca.

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Nesse mesmo ano as músicas do Gabriel, o Pensador começaram a tocar nas rádios do Rio de Janeiro. Eu gos- tava da maneira que ele escrevia e comprei o primeiro vinil dele, em que havia as músicas “Tô feliz (matei o pre- sidente)” e “Indecência militar”, que eu gostava muito. Gabriel, o Pensador colaborou para a disseminação do rap e do hip-hop. Muita gente pode até não admitir, mas tem uma galera boa no rap do Rio de Janeiro que come- çou ouvindo o rap do Gabriel, que é um puta letrista. Com minha saída da Lubi Peças fi quei “quebrado”, tinha que arrumar outro emprego. Eu lembrei que meu primo Acácio, que tem o apelido de Junior Baiano, trabalhava num lava-jato, e fui ver se ele arrumava um trabalho pra mim. Ele disse que um camarada dele tinha um lava- jato no Carmari, um bairro que apesar de ser na cidade de Nova Iguaçu era muito distante de onde eu morava, e que eu poderia arrumar um trabalho por lá. Me passou o endereço e eu fui pedir emprego. Eu já sabia dirigir e isso facilitou na hora da contratação. Chegando ao lava- jato fi quei surpreso porque três caras que moravam na minha rua já trabalhavam lá, falei com o dono e comecei no mesmo dia.

O salário era R$15,00 por semana. Não tinha folga, não tinha dinheiro de passagem, não tinha dinheiro pra com- prar almoço, e o salário mínimo na época era R$64,79. Mas eu estava feliz de estar trabalhando lá, era o meu dinheiro, conseguido, literalmente, com o meu suor. Com o passar do tempo eu comecei a rezar pra chover, pois quando chovia a gente não trabalhava. Todos os funcionários do lava-jato se reuniam, pegávamos uns baldes pra batucar e começávamos a cantar samba, eu sempre infi ltrava umas rimas no meio. Mas no outro dia, se fi zesse sol, tinha trabalho em triplo.

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Eu passava muito tempo na rua, e não a achava perigosa. Frequentemente via corpos nas esquinas, muitas vezes de conhecidos e até mesmo de amigos.

Era costume os pais levarem as crianças para verem os mortos. Minha mãe nunca me levou, ela morria de medo. Quando as pessoas não morriam assassinadas, eram atropeladas na Dutra e a molecada ia ver, esperando o rabecão chegar pra recolher o corpo.

A morte estava banalizada na minha área, a vida não tinha valor, e creio que hoje, por conta de muitos fato- res, é ainda pior. Amigos de infância se mataram. Todo mundo sabe quem são os assassinos, mas ninguém fala nada. A polícia não investiga e fi ca tudo por isso mesmo. Eu fi cava pensando: “Por que a polícia não investiga as mortes que acontecem nas periferias?”

Teve um momento, na minha rua, em que todos anda- vam armados, inclusive eu. Um dia minha mãe tomou um susto. Ela achou que eu estava meio estranho, entrava e saía muitas vezes do quarto. Ela esperou eu sair e abriu a porta do meu guarda-roupas, foi mexer nos meus livros e caiu um revólver calibre 38 no seu pé.

Nunca vi minha coroa chorar tanto. A arma era do meu tio, disse que ele tinha dado pra eu guardar. Ela acredi- tou na minha versão, porém fi cou com um ódio mortal do meu tio.

Como eu tinha o costume de andar com os caras mais velhos, às vezes ouvia o que não devia. Sabia das pes- soas que iriam morrer, dos assaltos que os caras iriam fazer, mas eu estava ali no meio e eles não se importa- vam em falar desses asssuntos perto de mim, fi cavam tranquilos porque sabiam que eu era confi ável. Acho que na época eu tinha ainda 15 anos. E de uma maneira ou

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de outra eles eram minha referência, eu achava maneiro o que eles faziam, apesar de não fazer igual. E isso é o que acontece com os moleques da minha área até hoje, eles acham que vão ter mais respeito dos outros se eles andarem armados, se roubarem ou praticarem outro delito qualquer. Minha sorte era que a palavra da minha mãe era sobreposta a qualquer outra, então valiam sem- pre os valores que ela me passava.

Hoje em dia os valores estão perdidos, e se ninguém intervir para mudar essa realidade, muito garoto ainda vai morrer, porque em Morro Agudo não tem tráfi co de drogas igual ao centro do Rio de Janeiro, onde os bandi- dos passeiam de fuzil na rua. Em Morro Agudo é grupo de extermíno, se as pessoas fumam maconha, cheiram, brigam em baile e roubam, não tem perdão, é morte. Um dia estava saindo de casa, acho que ia pra escola, e dezenas de carros de polícia estavam parados na minha rua, procurando uma galera da área que dias antes tinha roubado um carro-forte. O pessoal do bairro fazia piada dizendo que se alguém chegasse na 56ªdelegacia, Morro Agudo, e dissesse que morava na minha rua, a Turíbio da Silva, fi cava preso. Os policiais diziam que toda a bandi- dagem do bairro morava nessa rua. E tem gente que não entende de onde vinham as inspirações para o rap que eu escrevia. Toda essa história contraditória que eu vivia e testemunhava se transformava em arte através do rap. Ao mesmo tempo que eu estava tão próximo, me afas- tava cada vez mais.

Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque estava pleiteando fazer um estágio na Petrobras Dis- tribuidora. O meu tio Humberto trabalha lá e estava me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época ouvia muito rap, GOG, Thaide, DJ Hum e não posso esquecer do Consciência X Atual. Tudo era na base da fi ta cassete.

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Lembro que fui numa excursão pra Lambari, em Minas Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá, me emprestou uma fi ta do CXA (Consciência X Atual). Eu trouxe pro Rio e mostrei pro Luciano, que na época já era o meu irmão, e a partir de então começamos a ouvir somente CXA.

Desde 1992 já existia a organização ATCON no Rio de Janeiro, e Gabriel, o Pensador, Def Yuri, TR, Big Richard, entre outros, já estavam no cenário, pensando e discu- tindo o rap carioca. Mas eu e meu irmão estávamos ini- ciando no processo sem ter noção da importância que tinha o movimento hip-hop pra essa galera. Hoje tenho orgulho de dizer que todos esses que citei, com exceção do Gabriel e do DJ Hum, são meus amigos, e que isso é uma honra pra mim.

O meu irmão conhecia e gostava de rap bem mais do que eu, e ele sempre tinha as novidades. Mas é importante deixar claro que a gente não tinha noção do que real- mente era o hip-hop, nem mesmo sabíamos que exis- tiam os famosos quatro elementos: rap, break, DJ e gra- fi te. A gente gostava mesmo de rap, de ouvir e escrever algumas coisas, sempre protestos, seguindo a linha dos grupos que já conhecíamos.

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Cabeça vazia:

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