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Trabalho: como conseguir grana?

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 36-42)

Sua profi ssão não é aquilo que traz para casa o seu salário. Sua profi ssão é aquilo que foi colocado

na Terra para você fazer com tal paixão e tal intensidade que se torna chamamento espiritual.

— Vincent Van Gogh

Enquanto estudava, já arrumava um trocado instalando som de carro, pois além de informática eu também gos- tava de eletrônica e usava os dois como um meio alter- nativo de conseguir grana. Para os meus pais era difícil pagar meus estudos. Minha mãe trabalhava muito para pagar minha escola e eu não podia exigir mais dela. Aprendi a consertar som de carro com o Mário, pai de um amigo da rua onde moro. Ele ganha a vida consertando aparelhos eletrônicos, e de tanto eu pedir me ensinou essa atividade que já me rendeu uns bons trocados. Mário dizia que som de carro quando para de funcionar quase sempre é problema da saída do próprio som, então eu tinha que trocar o CI (circuito interno). E isso era “batata”: quase sempre era mesmo esse o problema.

Ganhei uma grana maneira consertando o rádio dos outros, e a fama ia aumentando, e cada vez chegava mais gente. Meu portão vivia cheio de carros. Com apenas 14 anos já sabia dirigir, era um dos poucos garotos da rua que tinha essa habilidade. Até ensinei outros garotos,

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como o César, fi lho do cara que me ensinou a conser- tar aparelhos eletrônicos. Quem emprestava o carro era o Marcelo, um cara um pouco mais velho que eu, que morava no fi nal da rua. Meu pai nunca teve carro e até hoje não sabe dirigir, então tive que aprender olhando os outros na rua e pedindo para dar um rolé no carro deles. Para arrumar um dinheiro a mais eu aprendi também a recondicionar alto-falantes, isso também foi o Mário quem me ensinou. Quando as pessoas chegavam à minha casa para instalar um som já vendia o pacote de servi- ços completo. O tempo foi passando e a grana estava fi cando curta com esse esquema de recondicionamento de alto-falantes, então eu e o Netinho decidimos correr atrás de um trabalho de carteira assinada. Compramos o jornal no domingo e fomos atrás das vagas dos clas- sifi cados. Chegamos até uma agência de empregos em Duque de Caxias, que nos mandou fazer uma entrevista na Comercial Lubi Peças, em Nova Iguaçu.

Estávamos confi antes, nosso primeiro emprego estava por vir. Na manhã do dia marcado chegamos à loja, que era uma autopeças, fazia calor, mas eu sentia frio na barriga. Nunca tinha passado por aquela situação antes. Tinha muita gente querendo aquela vaga de estágio. Fizemos uma entrevista com uma senhora chamada Sandra, uma morena de cabelos longos e encaracola- dos, que estava grávida de uns sete ou oito meses. Ela era responsável pelo setor de recursos humanos. Fez a entrevista comigo e com o Netinho ao mesmo tempo. Eu fi quei desanimado porque ela conversou muito mais com ele, me fez três perguntas e duas dúzias para ele, que fi cou muito mais confi ante. Surpreendentemente, no outro dia, foi o meu telefone que tocou, quer dizer, o da minha vizinha, pois a gente não tinha telefone em casa. Eu estava contratado, era o meu primeiro emprego.

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Na verdade era um estágio em que eu deveria trabalhar na área de informática, mas me jogaram no setor fi nan- ceiro. Fiquei três meses por lá, até que tive uma discus- são com o dono da empresa.

Eu já estava puto da vida porque me tiraram do setor maravilhoso que eu estava trabalhando e me jogaram pra emitir nota fi scal. O rapaz que estava neste setor não dava conta do serviço e era sobrinho de um amigo do meu patrão. No novo setor, além de eu ter que lidar com a pressão dos vendedores, tinha que ir frequentemente trocar cheques por dinheiro na sala do todo-poderoso, que nem sempre estava de bom humor.

Eu chegava em casa todo dia muito cansado porque trabalhava e estudava e no trabalho estava um saco. Então parei pra conversar com o meu “coroa”, que me deu um conselho um tanto quanto perigoso para um cara da minha idade. Ele disse: “Filho, não deixe nin- guém tirar onda com a tua cara, principalmente patrão, se tu sentir que ele tá abusando, tu manda logo ele se foder, porque tu não precisa dessa merda de trabalho, aqui em casa a gente dá um jeito, de fome tu não morre. Eu quero é que tu estude.”

Eu fi quei com aquilo martelando na cabeça. Ninguém vai tirar onda comigo, se o meu patrão meter uma bronca eu meto duas. Até que um dia subi para trocar um cheque e ele estava de mau humor, eu também não estava em um dos meus melhores dias, e o nosso encontro foi fatal. A vontade dele prevalecia porque era dono da empresa e gostava de pisar nas pessoas, então quando ele ten- tou me humilhar a gente se enfrentou, um garoto de 15 anos batendo boca com um homem de quase 50. Pare- cíamos gladiadores divertindo os funcionários que fi cavam ouvindo através da porta.

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Rolaram uns “puta que o pariu” pra cá, uns “fi lho da puta” pra lá, e quando eu já estava cansado de xingar, fui embora. Era quinta-feira de manhã quando aconteceu o bate-boca, e voltei ao trabalho somente no sábado, só pra pegar minhas coisas, mas o patrão já estava calmo e queria que eu continuasse na empresa. Ele ainda elo- giou meu gênio forte, mas eu não quis fi car. Sabia que ali tinha acabado meu respeito por ele e não via como cres- cer profi ssionalmente naquele lugar.

Apesar das alternativas que eu tive para ganhar dinheiro, e de ter conseguido emprego logo na primeira tentativa, essa não é a realidade da juventude das periferias do Rio de Janeiro, e quem sabe de todo o Brasil. Paula Martins Salles comenta em sua monografi a “Caminhos de Visi- bilidade para a Juventude da Periferia da Metrópole do Rio de Janeiro”:

Os jovens das camadas populares têm oportunidades bastante limitadas de usufruir dessas características juvenis, não só porque precisam começar a trabalhar e construir família mais cedo, mas porque não têm como usufruir um período longo de despreocupação. [p. 9] Tempos depois, quando o Movimento Enraizados produ- ziu o documentário “E o meu direito ao emprego”, perce- bemos que existem diversas juventudes no Brasil, e com- parando a juventude pobre, que vive nas periferias das grande metrópoles, com a de classe média, concluímos que os jovens da periferia não têm as mesmas oportuni- dades de trabalho porque não tiveram a mesma qualidade no ensino. Ainda de acordo com Paula Martins Salles:

A juventude é uma construção social historicamente determinada, daí que não se pode pensá-la sem espe- cifi car de qual juventude se está falando. As condições sociais, culturais, políticas e econômicas em que se encontram esses jovens são determinantes para se

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entender e defi nir as experiências juvenis. A situação de desigualdade da sociedade brasileira torna esse recorte ainda mais fundamental. (...)

É importante ressaltar que a concepção moderna de juventude (adotada pelo senso comum até os dias de hoje) foi calcada principalmente na experiência dos jovens das classes médias. A esses, foi aberta a pos- sibilidade de se alongar na fase de transição ao mundo do trabalho, visando um maior investimento na sua for- mação profi ssional. Isso signifi cou uma ampliação con- siderável no número de estudantes na sociedade (Corti, 2004). Esse alongamento permitiu a esses jovens um adiamento de todas as marcas de entrada na vida adulta: trabalho, matrimônio e fi lhos. Como essa experiência de postergamento da vida adulta não foi e não é igual para todos os jovens torna-se necessário, ao se falar de juventude, defi nir de que juventude se está falando. [Paula Martins Salles, pags 5 e 9]

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O rap: como conheci

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