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Primeiro contato com a arte

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 30-36)

Não tocamos para agradar os críticos. Tocamos o que queremos, quando queremos e o quanto quisermos.

E temos motivos para tocar.

— Bob Marley

Em 1993 o funk carioca fi cou muito forte e presente na minha vida, e comecei a arriscar algumas composições. Justamente quando ele deixa de aparecer nas páginas culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a produção de arte: fazer letras de música. O processo de criação me fascinou, e depois que vi minha letra de rap pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia muita vergonha.

Eu ouvia música desde pequeno, infl uenciado por meu pai, que gostava de Tim Maia, Jorge Ben, Elis Regina, Car- los Alberto, Roberta Miranda. Ele era – e acho que ainda é – apaixonado pela música da Roberta Miranda, mas não sabe cantar nenhuma, só os refrões e alguns pequenos trechos. Fazia questão de “zoar o plantão” fazendo uns sons esquisitos nas partes em que não sabia cantar. Meu pai colocava o som no último volume pros vizinhos ouvirem também. Hoje ainda é assim, e se bobear é ainda pior. No quartinho que ele tem no terraço de casa,

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construído para guardar as ferramentas, e que hoje é o local em que ele faz alguns trabalhos de artesanato, foi montada uma espécie de rádio comunitária. São alto- falantes pendurados no telhado do terraço, ligados a um rádio velho – porém barulhento –, em que ele põe as músicas antigas pra tocar e agora também o rap da minha rapaziada. O maneiro disso tudo é que ele gosta de rap. Ele e minha avó foram as pessoas que sempre me deram força pra eu fazer rap, mesmo sem saberem exatamente o que era.

Com essa idade eu já curtia os bailes funk no clube Vas- quinho de Morro Agudo. Uma época que tinha muita briga, quando quem morava no bairro da Tenda não podia ir pro outro lado da estação de trem porque era o bonde inimigo. Dentro do baile, que supostamente era um local neutro, a porrada era generalizada. Eu era novo, mas estava lá, com os caras mais velhos da minha rua. Era uma maluquice de garotos, a gente ia pro baile pegando carona na porta dos ônibus. Lembro de um camarada chamado Ripe, que apesar de ser novo era o mais alto do grupo. Ele sofreu um acidente quando estava pegando carona na porta do ônibus. O motorista, por pura mal- dade, jogou a lateral do ônibus num caminhão, e um parafuso entrou no braço dele. Era sangue pra todos os lados. Levamos ele em casa, entregamos pra mãe, e depois fomos pro baile.

Também lembro de uma vez que fi quei com medo por- que o motorista estava correndo muito e eu pulei do ôni- bus em movimento. Ele estava descendo uma ladeira, a rua era de paralelepípedo, mas tinha muita areia, e quando o ônibus passava subia poeira como naqueles fi lmes antigos de faroeste. Eu ainda não tinha a malícia de pegar carona, então pulei e fi quei parado. Meu corpo foi jogado para a frente e só lembro de descer rolando o morro atrás do ônibus. O mundo ia girando cada vez mais

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rápido, eu colocava a mão na frente para não machucar o rosto, e no fi nal deu tudo certo. Não machuquei o rosto, mas em compensação minha mão fi cou em carne viva, minha roupa toda rasgada, joelhos e cotovelos ralados, e mesmo assim fui curtir o baile. Quando cheguei dentro do Vasquinho fui no banheiro lavar as pernas, os braços e corri para o “trenzinho” dar meus gritos de guerra. Nas brigas dos bailes e do bairro eu sempre me desta- cava porque era bom de porrada. Além disso, os garo- tos da minha idade sentiam certo medo de mim porque eu andava com os caras mais velhos, mais infl uentes. Quando algum moleque da minha idade vacilava era por- rada nele. Eu não costumava praticar as mesmas ati- vidades que os garotos da minha idade, não sabia sol- tar pipa, até jogava bola direitinho, mas não gostava, e só jogava bola de gude porque a molecada toda estava jogando. Eu gostava mesmo era de trocar ideia, escre- ver, desenhar e fazer programas de computador. Ao mesmo tempo em que eu deveria ser educado, res- peitar os mais velhos, eu também tinha que ser respei- tado na rua, senão eu virava “comédia”. Nessa época eu pegava um teclado e um gravador do Marcelo Granja, um microfone com outro camarada, fazia bases de funk e gravava minhas músicas em casa. Foram minhas primei- ras gravações de funk. Eu envolvi até o próprio Marcelo nas gravações, a gente fez uns sons zoando uma mina que era ex-namorada dele. Mostramos a fi ta pra ela, que mostrou pra mãe, e então deu uma confusão danada. Eu tenho certeza que elas gostaram do som, porque fi cou maneiro de verdade, mas a gente falava várias besteiras, e a mãe da menina tinha que impor respeito.

No fi nal de 1993 terminei o primeiro grau, e no próximo ano eu daria um passo importante: sairia do colégio onde estudei por toda a minha vida e iria estudar à noite, no

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centro de Nova Iguaçu. Pra mim isso signifi cava a minha independência. Minha mãe queria que eu estudasse no colégio Iguaçuano, que pertencia à mesma família da minha antiga escola. Eu não concordava porque no Igua- çuano estudavam uns playboys de Nova Iguaçu e nessa época eu já sentia o preconceito e a discriminação que esse pessoal tinha por mim.

Nós conversamos e eu convenci minha mãe a me matri- cular num colégio chamado Ceni, pois somente lá tinha o curso que eu queria fazer: tecnologia em processa- mento de dados. Depois que comecei a estudar percebi que o ensino não era muito bom, mas foi a partir dali que dei um rumo na minha vida e comecei a me tornar o cara que sou hoje.

Já no primeiro ano conheci o Netinho, que hoje também é policial militar. Ele sempre morou perto da minha casa, mas a gente nunca tinha trocado ideia antes do Ceni. Começamos a vir de ônibus juntos pra casa, até que nos falamos a primeira vez e fi camos logo camaradas. A gente tocava o maior terror no colégio. Ele já era bem funkeiro e me levava pra curtir os bailes em outros lugares da cidade. E eu levava ele para gravar umas músicas comigo.

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Trabalho: como

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