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Não há mais que dois tipos de pessoas: as determinadas e as indeterminadas. As primeiras sabem aonde vão chegar; as outras nem sabem onde estão.

— Marina Pechlivanis

Depois daquela primeira reunião no Ciep, o Dumontt foi o único que me procurou. Sem contar, claro, os que já estavam enraizados, como o Léo da XIII, o Kall, a Lisa e o Átomo. Eu sabia que não poderia dar muito espaço entre uma reunião e outra. Os garotos não compareceriam. Era união para não evasão. A partir dessa ideia surgiu o evento Encontrão, em que lançaríamos o nosso zine, o “Voz Periférica”. Além disso, era um evento para trocar ideia, conhecer gente nova, trocar CDs e fazer tudo que desse vontade. O objetivo era compartilhar.

O Léo da XIII era, como ele mesmo se intitulou, o aproxi- mador. Chamou artistas e militantes para participarem do Encontrão. O primeiro evento aconteceu no dia 28 de julho de 2005, e compareceram aproximadamente 20 pessoas. Pegamos emprestada uma tenda de plástico com o meu tio Humberto, uma caixa de som muito antiga com o Moisés, fi lho do dono da pizzaria Cyntia, fi zemos uma parceria com a Webnetwork (a empresa de um amigo que estudou comigo na faculdade, que disponibilizava

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internet a cabo em Morro Agudo), ligamos a internet e a caixa de som no meu computador, um Pentium 100 com o monitor quase queimado, e fi zemos a festa.

Cantamos e distribuímos a primeira edição do zine “Voz Periférica”. Disponibilizamos muitas revistas “Rap Bra- sil”. O Alexandre de Maio enviava às vezes alguns exem- plares pra nós, era difícil encontrar revistas de hip-hop nas bancas de jornal de Nova Iguaçu. O evento come- çou às 14h e terminou depois das 21h. No dia seguinte o Dumontt havia marcado uma reunião com o secretário de Cultura de Nova Iguaçu, que na época era o Roberto Lara. A maioria dos garotos que estava no Encontrão compare- ceu à reunião, que ainda contava com a presença do coor- denador de Igualdade Racial, Geraldo Magela.

O secretário perguntou o que nós precisávamos e que- ríamos. Sempre que acontecia uma reunião desse tipo com a galera do hip-hop, era unânime o pedido de apoio para a realização de eventos de rap, ou dinheiro para gravação de discos. Mas nós queríamos levantar uma discussão a respeito de um fundo para a cultura em Nova Iguaçu, e que essa grana fosse liberada por meio de editais para os grupos culturais da cidade.

O Dumontt ainda complementou e disse que o mais importante era uma formação para os grupos cultu- rais aprenderem a fazer projetos. Se os editais um dia saíssem, a maioria dos grupos não saberia como pre- encher os formulários. Todos, inclusive nós, precisáva- mos aprender a fazer projetos, captar recursos e pres- tar contas. O Roberto Lara disse que batalharia por nós, mas logo foi exonerado do cargo.

Tudo que acontecia com o Movimento Enraizados, em Morro Agudo, era disponibilizado no Portal Enraizados, e por isso o Encontrão, mesmo sendo um evento pequeno

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e sem qualquer estrutura ou recurso fi nanceiro, come- çava a ganhar projeção nacional. As discussões com o poder público também chamavam a atenção dos Enrai- zados de outros estados. Rapidamente o Dumontt inseria o Enraizados em algumas atividades em Morro Agudo, enquanto eu o levava para conhecer os eventos e os meus camaradas do hip-hop carioca.

No mês seguinte fi zemos a segunda edição do Encon- trão, desta vez com mais de 50 participantes. Além da galera de Morro Agudo, compareceram pessoas da Ilha do Governador e de Duque de Caxias. Nessa época conhecemos o cordelista Jota Rodrigues, que mora em Morro Agudo há mais de trinta anos. O Kall foi até a sua casa para fazer uma matéria para o “Voz Periférica”. Enquanto isso o Léo da XIII se envolvia num encontro de Pontos de Cultura, na Leopoldina, centro do Rio de Janeiro, e eu acompanhava reuniões que a prefeitura fazia nas comunidades. Eles traziam arquitetos para conversar com as lideranças do bairro e nos prometeram construir uma casa do hip-hop em Morro Agudo. Também participei, junto com o Dumontt, de mais uma reunião com a diretora do Ciep 117, para tentar resolver de uma vez por todas a questão da ocupação da quadra. Neste dia ela levou um deputado que deu a entender que tinha o poder de liberar a quadra para nós ocupar- mos. Tudo me pareceu um jogo político-partidário, em que a conversa mansa dele insinuava que não teríamos liberdade de trabalhar do nosso jeito. Meu lado radical falou mais alto e fomos embora sem fechar qualquer acordo, continuando nas ruas do bairro. Foi quando entendi o que o Antônio Carlos Magalhães queria dizer com a frase “A ocasião faz o aliado”. Mas com a gente não funcionava dessa forma.

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O Encontrão não parava de crescer, a terceira edição foi bem maior do que a segunda. Conversando durante o evento, decidimos que nos encontraríamos uma vez por semana. Como não tínhamos sede, nossos encon- tros seriam na praça, no centro de Morro Agudo. Nossas reuniões semanais eram engraçadas, o Dumontt trazia dinâmicas de grupo para fazermos durante o encontro. Cerca de 20 pessoas participavam da reunião. Durante as dinâmicas a gente se abraçava, e as pessoas que pas- savam na rua não entendiam o que estávamos fazendo ali. Acho que só o Dumontt sabia, ele trazia os ensina- mentos do teatro e aplicava no Enraizados. Em uma de nossas reuniões, o Átomo, que é evangélico, disse:

— O pessoal da minha rua vai passar e me ver aqui na praça e vão dizer que depois que eu virei crente fi quei maluco. Com o sucesso do Encontrão e a publicação das fotogra- fi as no Portal Enraizados, recebíamos muitos e-mails e telefonemas de grupos de rap que queriam se apre- sentar no evento. Mas eu não permitiria que as pes- soas viessem de outros estados para participar de um evento que nem microfone tinha. O Dumontt disse que era quase impossível conseguir um palco a uma semana do evento, mas tentaria uma articulação com algumas pessoas da prefeitura que talvez desse certo.

Os Enraizados de outros estados estavam decididos que viriam para Morro Agudo, mas mesmo assim eu não divulguei. Na sexta-feira, um dia antes do evento, ainda não tínhamos confi rmação do palco. A calma do Dumontt me incomodava. Às 22h ele recebeu uma liga- ção, era o pessoal da prefeitura confi rmando o palco do nosso evento, mas eles não tinham o som. Tínhamos outro problema nas mãos.

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Na madrugada de sexta para sábado o palco foi mon- tado, e quando os moradores acordaram se depararam com uma verdadeira espaçonave na porta de suas casas. Como não havíamos divulgado o evento, os moradores não sabiam para que era aquele palco gigantesco, e as crian- ças na mesma hora o usaram como parque de diversões. Começamos a fazer uns contatos para arrumar o som. Eu sabia que o Chico, pai do Dinho, DJ do grupo Fator Bai- xada, tinha uma aparelhagem, então fomos até a casa dele para conversar. O Chico é muito gente fi na e topou na hora, cobrou bem baratinho pra nós. Os moradores do bairro de fato não conheciam a cultura hip-hop, então tentamos trazer os quatro elementos. Convidamos os grafi teiros Tihkin (Penha) e Kajaman (Duque de Caxias) para participarem do evento conosco.

A ideia inicial era grafi tar o muro de algumas casas da rua, mas os moradores não aceitavam de jeito nenhum. A solu- ção foi comprar um tapume para grafi tar. No dia, o César, fi lho do cara que me ensinou a consertar rádio, cedeu a parede do bar dele para o Kajaman grafi tar. Quando os outros moradores viram o resultado quiseram liberar os muros para o grafi te, mas não dava mais tempo.

O Alessandro Buzo veio de São Paulo para apresentar o evento. Para cantar, além do casting do Movimento Enraizados (Dudu de Morro Agudo, Fator Baixada, Ulti- mato à Salvação e Léo da XIII), vieram Os Guerreiros e Hórus, ambos de São Paulo, além de alguns grupos do Rio de Janeiro. Mesmo sem entender o que era o hip- hop, os moradores da minha rua queriam se vestir e fi car iguais a nós. Toda hora aparecia uma touca ou um boné de lado, em crianças, jovens, adultos e idosos. A força do Enraizados estava ali, materializada.

Cap.03

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A arte de criar o

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