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2003: um ano divisor de águas

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 96-102)

Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto É realidade.

— Raul Seixas

Certamente 2003 foi um ano divisor de águas. Foi nesse ano que conhecemos o escritor Alessandro Buzo, bem no comecinho da carreira, e conheci também um cara superarticulado chamado Fábio ACM. DJ, mantinha trabalhos com rádios comunitárias, trabalhava na ONG Cemina e fazia um som com o grupo de rap Poetas de Ébano. Ele nos convidou para participar do projeto “Hip- hop na linha de frente contra o tabaco”.

Este projeto reunia artistas do hip-hop para uma dis- cussão sobre os riscos do tabaco. Alguns dos parti- cipantes acharam um pouco estranho, pois a maioria fumava, mas fi camos observando para ver aonde aquilo ia chegar. A gente assistia a vídeos e ouvia palestras com estatísticas informando a quantidade de pessoas que morrem vítimas do tabaco em todo o mundo. A ideia era refl etirmos sobre o assunto, entender como tudo isso funciona e depois escrever e gravar raps alertando sobre os perigos do tabaco.

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A metodologia deste projeto deu muito certo. Prova disso é que surgiram vários outros com propostas parecidas e nós do Movimento Enraizados éramos sempre convida- dos a participar. Eu participei de um que era sobre sexu- alidade, a Lisa de outro chamado “Mulheres do hip-hop pelo fi m da violência contra a mulher” e por último parti- cipei junto com o Léo da XIII do projeto “Homens do hip- hop pela não violência contra as mulheres”. Outro fato importante que aconteceu no ano de 2003 foi a visita do Clã Nordestino, Preto Ghóez, Lamartine e Nando, para nos apresentar o MHHOB (Movimento Hip-Hop Organi- zado Brasileiro).

Como eu já conhecia o Lamartine, troquei ideias com os caras. Reuni alguns participantes do Enraizados, e o Preto Ghóez começou a falar. Eu já conhecia alguma coisa do MHHOB, talvez por isso tenha sido o único a questionar, mas o Ghóez sempre tinha um argumento forte para cada questionamento meu. Ninguém do Enraizados falava, só balançavam a cabeça, o Lamartine às vezes tentava mediar a conversa, mas no fi m rolou, o Movimento Enraizados estava fi liado ao MHHOB. Enquanto o Movimento Enraizados era um grupo total- mente cultural que se espalhava pelo Brasil, o MHHOB era uma organização que discutia políticas públicas para a juventude. Todas as organizações que faziam parte de MHHOB estavam mais maduras do que nós. Eu não me sentia à vontade em ter que me reportar a outra pessoa – ou organização – sobre o que aconte- cia conosco no Rio de Janeiro. Mas o Preto Ghóez me tranquilizou dizendo que isso não seria necessário. O Enraizados não teria, de maneira alguma, que se mol- dar ao MHHOB, e sim o MHHOB se adaptar à realidade do Movimento Enraizados.

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As conversas com o MHHOB eram cada vez mais fre- quentes. Começaram então as viagens para congressos nacionais, mas por dois motivos eu nunca ia. Primeiro, eu trabalhava no supermercado Alto da Posse todos os dias da semana e não poderia faltar; depois, achava um saco essas reuniões, seminários e palestras. Eu rece- bia convites para ir para Porto Alegre, mas sempre me esquivava e repassava para outro artista do Movimento Enraizados. Por um lado era legal porque a galera come- çou a andar de avião e a conhecer diferentes estados e culturas, e andar de avião não passava nem em sonho na cabeça da molecada que morava na periferia.

Era interessante porque quando eles retornavam das viagens vinham com novas ideias e até mesmo outro vocabulário. Era um costume nos reunirmos sempre que alguém chegava de viagem, a gente não fazia relatórios, como nos dias de hoje. Naquela época os relatórios eram orais, e eu sempre dizia: “Mano, o que fi zeram contigo?” Mas era o processo, a galera ia de um jeito e voltava de outro. Conheciam gente nova, as ideias eram mais maduras e interessantes. Como eu costumava dizer, era papo de futuro. Conversava muito por telefone com o Preto Ghóez, pedia e dava conselhos. Ele começava a entender como funcionava o hip-hop no Rio de Janeiro, pelo menos nas partes em que estávamos envolvidos, e eu entendia a importância de se discutir políticas públi- cas para a juventude.

Trabalhava de segunda a sexta, e na própria sexta-feira fazia shows. Às vezes fi cava até três dias sem aparecer em casa. Minhas músicas começaram a tocar nas rádios e os convites para as apresentações eram aos montes, mas o dinheiro era sempre zero. Nos eventos eram pagos os técnicos de som, o palco, o som, o frete, mas nunca os artistas. Por causa da repercussão das minhas músicas

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nas rádios e por meu nome carregar o nome do bairro em que moro, os artistas de hip-hop do bairro Morro Agudo começaram a se interessar por mim. Foi nessa época que o Léo, hoje Léo da XIII, veio, por indicação do meu primo Júnior, até minha casa.

O Léo da XIII tentou pelo menos três vezes me encon- trar, mas nunca conseguia. Até que um dia ele madru- gou na porta da minha casa. Quando levantei para ir até a padaria tomei um susto com o garoto sentado na cal- çada, em frente ao portão. Eu tinha 22 anos e ele apenas uns 13, mas já estava convicto de que queria fazer rap. Quando a gente começou a conversar reparei que ele tinha algum problema, pois quase não falava. Passava boa parte do tempo lá em casa. Eu fazia umas produ- ções de beat e pedia pra ele escrever as letras. Ele che- gava à minha casa e fi cava sentado olhando eu produ- zir, fi cávamos horas em casa sem trocar uma palavra. De repente ele levantava e ia embora sem se despedir. Com o passar do tempo essas coisas foram mudando, eu dizia pra ele que não precisava falar comigo, mas tinha que ter educação. Na hora de ir embora ao menos deveria acenar quando estivesse no caminho da porta. Quando começou a se comunicar efetivamente comigo descobri que ele era depressivo porque com 10 anos de idade presenciou o irmão dele, de apenas 11, morrer atropelado na via Dutra. A mãe e a irmã diziam que ele não falava muito, era muito reservado, e que depois do hip-hop começou a fi car mais sociável.

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A experiência de

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