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3. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO RURAL E LEGISLAÇÃO APLICÁVEL

3.4 Violações normativas mais comuns na atividade rural

3.4.3 Escravidão contemporânea

3.4.3.2 Os mecanismos de combate à escravidão contemporânea no Brasil

3.4.3.2.5 A atuação do Ministério Público do Trabalho

O Ministério Público, a partir da inovação constitucional trazida pelo artigo 127, deixou de ser submisso ao Poder Executivo, para se transformar em instituição permanente, independente, autônoma e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, decorrentes das relações de trabalho, fato que possibilitou sua atuação na luta contra o trabalho análogo ao de escravo, se fazendo representar pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONAETE), que, de maneira efetiva e eficiente, organiza a atuação dos membros do Ministério Público do Trabalho em todo o território nacional, em parceria com outras instituições governamentais que executam trabalhos no combate ao trabalho análogo ao de escravo.

Conforme Erlan José Peixoto do Prado, a presente coordenadoria tem na prática, grande papel na repressão ao crime de escravidão contemporânea, principalmente porque atua em conjunto com o Grupo Móvel de Fiscalização do MTE:

Em 1995, com a criação do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego, a presença do MPT passa a ser mais exigida, dando-se início a operações conjuntas. Em 2002, é instituída a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, composta por aproximadamente 50 (cinqüenta) Procuradores do Trabalho - quase dez por cento do quadro em atividade -, os quais compõem escala destinada a acompanhar as operações de erradicação do trabalho escravo promovidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Tal acompanhamento tem por finalidade estabelecer contato mais próximo com os trabalhadores e viabilizar melhor coleta de provas que embasem a atuação judicial e extrajudicial.305

Dentre os outros instrumentos utilizados pelo Ministério Público do Trabalho no combate das práticas de escravidão contemporânea, hão de ser registrados os atos administrativos, entre eles, o inquérito civil e o termo de ajuste de conduta e, na esfera judicial, interposição de ações cíveis, ação civil pública e da ação civil coletiva.

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PRADO, Erlan José Peixoto do. A ação civil pública e sua eficácia no combate ao trabalho em condições análogas à de escravo: o dano moral coletivo. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel Napoleão; FAVA, Marcos Neves (Coord.). Trabalho escravo contemporâneo: o

O inquérito civil é o procedimento pelo qual se busca reunir provas necessárias ao real convencimento do órgão ministerial, para que o mesmo possa ajuizar a ação civil pública, sendo, entretanto, dispensável, a partir do momento em que aquele já tenha em mãos provas suficientes para a propositura da ação. É regulado pela Lei 7.347/1985, que disciplina a ação civil pública, bem como está disposto na Constituição Federal, artigo 129, inciso III, e ainda no artigo 84, inciso II, da LC 75/1993306, in verbis:

Art. 84. Incumbe ao Ministério Público do Trabalho, no âmbito de suas atribuições, exercer as funções institucionais previstas nos Capítulos I, II, III e IV do Título I, especialmente:

[...]

II - instaurar inquérito civil e outros procedimentos administrativos, sempre que cabíveis, para assegurar a observância dos direitos sociais dos trabalhadores.

A investigação de fatos através de inquérito civil recai sobre as ofensas aos interesses transindividuais decorrentes das relações de trabalho, caso em que o trabalho em condições análogas à de escravo está incluído, tendo o Ministério Público do Trabalho em relação a estas ocorrências plena liberdade, nos termos artigo 84, caput, e inciso V, c/c artigo 8º da LC 75/1993, para ingressar livremente nas fazendas onde ocorre o crime, entrevistar trabalhadores, gatos, pistoleiros e fazendeiros, colher elementos de provas, através de fotografias e filmagens, bem como examinar documentos, expedir notificações e intimações e até requisitar o auxílio de força policial.

O termo de ajuste de conduta é previsto no artigo 5º, § 6º, da Lei 7.347/1985, tendo cabimento na hipótese de comprovação de atos lesivos aos interesses transindividuais, no curso do inquérito civil, quando então, o Ministério Público do Trabalho, em vez de propor a ação civil pública, realiza com o investigado um termo de ajuste de conduta, com estipulação de obrigações de fazer e/ou não fazer, onde aquele se comprometerá em adequar suas condutas ilícitas, seja, o emprego do trabalho análogo ao de escravo, às normas legais pertinentes, a fim de que aquela lesão a princípio fique estagnada. No termo de ajuste também é fixada uma multa para o caso de descumprimento, bem como terá eficácia de título executivo

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BRASIL. Presidência da República. Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp75.htm>. Acesso em: 05.03.2015.

extrajudicial, ao passo que se o investigado não cumpri-lo, basta interpor uma ação de execução, procedimento judicial mais célere.

Todavia, o termo de ajuste é uma opção desejável na medida em que haja o seu total cumprimento, evitando assim mais um processo judicial, o que é defendido por Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé:

Não cansamos de repetir, este é o objetivo primordial da Justiça dos Necessitados: a conclusão do conflito pela via mais célere possível. Lógico que esta há que ser a solução consensual pela via administrativa. Ora, com a quantidade exagerada de processos judiciais já em tramitação nos nossos foros laborais, a possibilidade de se resolver conflitos extremamente abrangentes por intermédio dos ditos termos de compromissos – ou mesmo através da interposição de ações civis públicas – implica uma grandiosa economia processual, reduzindo, consideravelmente, o número de reclamações trabalhistas ajuizadas e obtendo decisões que beneficiem, ao mesmo tempo, todos os lesados pela prática ilegal apontada.307

A ação civil pública tem como objetivo, segundo o que prescreve os artigos 1º da Lei 7.347/1985; 110 da Lei 8.078/1990308 e 129, inciso III, da CF, reprimir ou impedir danos ao meio ambiente; ao consumidor; à ordem urbanística; aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; por infrações da ordem econômica e da economia popular; assim como a outros interesses difusos ou coletivos. Esta última previsão de cabimento da ação civil pública justifica sua inserção na Justiça do Trabalho, mesmo porque nas relações trabalhistas há a possibilidade de ocorrência de ações por parte dos empregadores que prejudiquem interesses metaindividuais (transindividuais).

Além do mais, o próprio artigo 83, inciso III, da LC 75/1993, diz competir ao Ministério Público do Trabalho o exercício da ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para a defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos. É claro que a norma aqui presente, apesar de restringir a interesses coletivos, diz menos do que queria dizer, mesmo porque não poderia ser contrária à disposição constitucional, que, aliás, é de 1988, quando no artigo 129, inciso III, confere ao Ministério Público a legitimidade para a

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SENTO-SÉ, op. cit., p. 126.

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BRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm>. Acesso em: 05.03.2015.

tutela de outros interesses difusos e coletivos, não podendo neste caso, a lei complementar restringir o alcance da norma constitucional.

Esse também é o entendimento de Sandra Lia Simón:

A redação do art. 83, III de tal lei foi extremamente infeliz e, até mesmo, contraditória. Primeiro, porque os direitos sociais dos cidadãos, incluindo-se os trabalhadores, encontram-se elencados no art. 6º, CF e podem assumir a forma difusa. Segundo, porque em última instância, todo direito difuso poderá sempre ser visto como uma 'pequena causa', mas o que se busca, na verdade, é um provimento jurisdicional efetivo, que alcance de uma só vez todas as 'pequenas causas', garantindo-se o acesso à justiça e a efetividade do provimento jurisdicional. Referido dispositivo legal, entretanto, não é inconstitucional, porque deve ser interpretado sem perder-se de vista os arts. 127 e 129, CF e considerando-se os demais dispositivos do diploma legal onde encontra-se inserido, pois o art. 6º, VII, da mesma lei complementar reza que - também sem diferenciar os diversos ramos - compete ao Ministério Público da União promover o inquérito civil público e a ação civil pública para a proteção dos direitos constitucionais, do meio ambiente e de outros individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos.309

Portanto, o artigo 83, inciso III, da LC 75/1993 deve ser interpretado extensivamente, no sentido de ser plenamente cabível a ação civil pública no âmbito da justiça do trabalho, quando há nas relações trabalhistas descumprimento de normas que ferem os interesses metaindividuais (transindividuais), sejam eles, coletivos, difusos ou individuais homogêneos.

Os interesses coletivos, conforme estabelece o artigo 81, § único, inciso II da Lei 8.078/1990, são aqueles transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. Então, quando da discussão dos interesses coletivos, apesar do bem jurídico ser indivisível, ou seja, analisado em sua dimensão global, será possível a determinação dos indivíduos interessados, que integram um grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica, como, por exemplo, a degradação do meio ambiente do trabalho, ao passo que o ambiente considerado em sua indivisibilidade deverá ser, não para um ou para outro, mas para todos, um ambiente hígido, seguro e saudável,

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SIMÓN, Sandra Lia. A legitimidade do ministério público do trabalho para a propositura de ação civil pública. Disponível em: <http://www.amdjus.com.br/doutrina/trabalhista/70.htm>. Acesso em: 05.03.2015.

enquanto que o grupo de trabalhadores atingidos pela lesão é facilmente identificado.

Já os interesses difusos, como já visto neste trabalho, apesar de coincidirem com os interesses coletivos quanto à transindividualidade, de natureza indivisível, diferem no sentido de que seus titulares são pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (artigo 81, § único, inciso I, da Lei 8.078/1990), podendo aqui inserir como exemplo prático a proteção do meio ambiente, que se violado acarreta consequências à toda a coletividade, daí sua característica de transindividualidade, sendo seus titulares indivíduos indeterminados e indetermináveis, ligadas por apenas uma causa, podendo citar, o fato de morarem num bairro industrial, e lá ocorrer a contaminação do ar por um poluente expelido por uma determinada indústria.

Feitas as considerações a respeito dos interesses coletivos e difusos, insta destacar que há previsão legal da atuação do Ministério Público do Trabalho, mediante ação civil pública quando caracterizados na relação de trabalho o desrespeito àqueles interesses, como na situação em que o trabalhador é reduzido à condição análoga à de escravo, qual seja, a escravidão contemporânea, ao passo que este crime atinge bem transindividual, de natureza indivisível, o respeito à dignidade da pessoa humana.

Nos dizeres de Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé:

Com efeito, a prática do trabalho escravo contemporâneo materializa patente desrespeito aos mais comezinhos princípios de justiça, uma vez que, de uma banda, viola regramentos legais que regulam as condições de trabalho e, de outro, se constitui em inquestionável desobediência à dignidade da pessoa humana.310

O fato é que a erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo é de interesse transindividual, já que compreende os reclamos de toda a sociedade, em sua dimensão global, formada por indivíduos indeterminados e indetermináveis, ligados entre si apenas por questões fáticas, isto é, pelo fato de serem cidadãos livres e autônomos, libertos de qualquer forma de escravidão.

Mas ainda, por outro lado, visualizando-se unicamente a reparação dos danos individualmente sofridos pelos trabalhadores reduzidos a condição análoga de escravo, é possível, com base nas disposições do artigo 82, inciso I da Lei

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8.078/1990; artigo 25, inciso IV, a, da Lei 8.625/1993311 e artigo 6º, inciso VII, d, da LC 75/1993, a interposição pelo Ministério Público do Trabalho, da ação civil pública visando os interesses individuais homogêneos, com o propósito daqueles receberem seus direitos trabalhistas na íntegra, já que sonegados quando da relação de trabalho, inclusive a indenização pelos danos morais individuais.

A inserção do Ministério Público do Trabalho para o pleito envolvendo interesses individuais homogêneos está essencialmente no seu caráter social, o que, aliás, favorece a sua atuação, já que a preocupação com o cumprimento das normas trabalhistas e mesmo com o respeito às normas constitucionais, entre elas, a dignidade da pessoa humana, é de certa forma de todos.

Assim, merece destaque as palavras de Carlos Henrique Bezerra Leite:

Vale dizer, em se tratando de direitos ou interesses individuais homogêneos trabalhistas, que são autênticos direitos sociais dos trabalhadores, haverá sempre interesse social em função da própria natureza desses direitos, razão pela qual o Ministério Público do Trabalho estará sempre legitimado a defendê-los, ante a sua função permanente de tutelar os “interesses sociais”, ex vi do art. 127 da CF.312

Diante das diversas situações anunciadas para a propositura da ação civil pública, por intermédio do Ministério Público do Trabalho, sejam as de interesse coletivo, difuso ou individual homogêneo, o que ao fim as individualizam é a pretensão que almejam na esfera judicial, fato inclusive confirmado por Nelson Nery Junior quando relata que o que qualifica os interesses ou direitos como difusos, coletivos ou individuais homogêneos é:

O tipo de pretensão de direito material e de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação judicial. Um mesmo fato (acidente nuclear, por exemplo), pode dar ensejo à ação coletiva para a defesa de direitos difusos (interdição da usina nuclear), coletivos (ação dos trabalhadores para impedir o fechamento da usina, para garantia do emprego da categoria) e individuais homogêneos (pedido de indenização feito por vários proprietários da região que tiveram prejuízos em suas lavouras pelo acidente nuclear.313

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BRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8625.htm>. Acesso em: 05.03.2015.

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LEITE, Carlos Henrique Bezerra. A ação civil pública e a tutela dos interesses individuais homogêneos dos trabalhadores em condições análogas à de escravo. In. Revista do Tribunal

Superior do Trabalho. Porto Alegre, v. 71, n. 2, maio/ago 2005, p. 153-154. Disponível em:

<http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/3761>. Acesso em 06.03.2015.

313

NERY JÚNIOR, Nelson. O processo do trabalho e os direitos individuais homogêneos - um estudo

Enfim, a ação civil pública é um importante mecanismo judicial de atuação do Ministério Público do Trabalho, visando de forma efetiva impedir e mesmo reprimir as práticas de trabalho análogo de escravo, principalmente no meio rural.

A ação civil coletiva está disciplinada na Lei 8.078/1990 (CDC), podendo segundo o que determina seus artigos 81 e 91, ser interposta para a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas, de forma individual ou coletiva, sendo que neste último caso o Ministério Público é legitimado para em nome próprio ou no interesse das vítimas ou de seus sucessores, propor a ação civil coletiva de responsabilidade por danos individualmente sofridos (artigo 82, inciso I, Lei 8.078/1990).

Limitando-se o estudo na atuação do Ministério Público do Trabalho em face do crime de escravidão contemporânea, já foi visto anteriormente, que contra a prática do trabalho em condições análogas à de escravo, os interesses a proteger seriam os coletivos, difusos e também os individuais homogêneos, cabendo para todos a ação civil pública. Todavia, como se observa na legislação, especificamente para a proteção dos interesses individuais homogêneos, o Ministério Público do Trabalho, possui a ação civil coletiva, que da mesma forma que a ação civil pública, tem um cunho social, ou seja, em última análise, o que se quer proteger é o interesse de toda a sociedade contra as formas de escravidão contemporânea, a favor da liberdade e mesmo da dignidade da pessoa humana.

Portanto, independentemente do instrumento processual a ser utilizado, seja, ação civil pública, seja ação civil coletiva, o Ministério Público do Trabalho, havendo um interesse maior, o social, deverá defender os interesses individuais homogêneos dos trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo.

Diante da disponibilidade dos mecanismos para enfrentamento da escravidão contemporânea, os resultados vêm aparecendo na medida em que o Ministério Público do Trabalho, em parceria com outras instituições, age efetivamente no socorro àqueles que sequer têm esperança. Tal fato é confirmado pelos dados apresentados por Sandra Lia Simón e Luis Antônio Camargo de Melo:

Nos últimos anos, o Ministério Público do Trabalho ajuizou 159 ações civis públicas tendo por objetivo punir os escravocratas por meio de imposição de multas e de pagamento de indenizações aos trabalhadores envolvidos pelos danos morais coletivos. Foram propostas, ainda, 33 ações civis coletivas e 11 ações cautelares e, também, firmados 218 TAC‟s (termos de ajuste de conduta), bem

como aforadas 28 ações executórias. As ações trabalhistas (ou reclamações, na forma da CLT) somam 19 (dados atualizados até abril de 2006).314

Assim, é de se esperar que a atuação do Ministério Público do Trabalho seja cada dia mais revevante na promoção dos direitos fundamentais dos trabalhadores escravizados, especialmente no âmbito rural, onde historicamente há os maiores níveis de degradação do meio ambiente do trabalho, incluída aí a escravidão contemporânea.