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3. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO RURAL E LEGISLAÇÃO APLICÁVEL

3.4 Violações normativas mais comuns na atividade rural

3.4.3 Escravidão contemporânea

3.4.3.2 Os mecanismos de combate à escravidão contemporânea no Brasil

3.4.3.2.2 O cadastro de empregadores na lista suja

A criação da lista suja foi tratada pela Portaria 540/2004286 do MTE (substituta da Portaria 1.234/2003287), e criou o cadastro de empregadores que mantiveram trabalhadores em condições análogas à de escravo, estabelecendo que a inclusão do nome do infrator no cadastro deve ocorrer após decisão administrativa final relativa aos autos de infração lavrados em virtude de ação fiscal em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo, respeitada a ampla defesa, com posterior comunicação às mais diversas entidades estatais, para que tomem medidas administrativas cabíveis.

Nesse sentido, foi publicada a Portaria 1.150/2003288 do Ministério da Integração Nacional (MIN) que determinou a remessa semestral e atualizada do rol de inscritos aos bancos administradores dos Fundos Constitucionais de Financiamento, com a expressa recomendação da abstenção de concessão de créditos ou qualquer outro benefício, com recursos supervisionados pelo MIN, às pessoas físicas e jurídicas que integrem a mencionada lista suja.

O intuito é não apoiar as práticas de escravidão contemporânea com a utilização de recursos públicos, o que já ocorreu no país quando do desenvolvimento das regiões amazônica e nordestina, fato lembrado por Patrícia Audi:

Baseando-se nessa informação oficial, uma série de medidas repressivas de caráter financeiro, comercial e econômico foram tomadas. A primeira delas diz respeito à proibição de financiamento de Fundos Constitucionais públicos a esses empreendimentos. A antiga constatação feita pelos Fiscais do Trabalho que chegavam às fazendas e encontravam placas indicativas de empréstimos oficiais absolutamente não mais acontece. Antes da publicação e da existência da Lista Suja, esses empreendimentos econômicos eram financiados, por projetos que buscavam o desenvolvimento das Regiões Amazônica e Nordestina. O Estado, sem saber, concedia recursos para financiar aquilo que arduamente combatia.289

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BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Portaria n. 540, de 15 de outubro de 2004. Disponível em:

<http://portal.mte.gov.br/data/files/FF8080812BE914E6012BF2B6EE26648F/p_20041015_540.pdf>. Acesso em: 03.03.2015.

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BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Portaria n. 1.234, de 17 de novembro de 2003. Disponível em: <http://portal.mte.gov.br/legislacao/portaria-n-1-234-de-17-11-2003.htm>. Acesso em: 03.03.2015.

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BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Portaria n. 1.150, de 18 de novembro de 2003. Disponível em: <http://www.mi.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=b9f0a700-687a-47e3-9c1c-4d418f9e6cf8&groupId=407753>. Acesso em: 03.03.2015.

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Diante das portarias mencionadas, 540/2004 e 1.150/2003, vale registrar o descontentamento daqueles que foram incluídos na relação de autuados, que de forma desmerecida e sem qualquer fundamento legal e ou moral, alegam ofensa ao direito de propriedade já que os Ministros do Trabalho e da Integração Nacional feririam o princípio da reserva legal, não tendo legitimidade para editar as portarias. Registram também a inexistência de sentença penal condenatória transitada em julgado quanto o crime de escravidão contemporânea, devendo ser prestigiada a presunção de inocência.

Pois bem. Constatando-se que os Ministros de Estado têm competência administrativa para produção de atos administrativos que lhes são próprios, com o propósito de direcionar suas atividades, entre elas, a erradicação do trabalho escravo no Brasil, não há então, qualquer ofensa ao princípio da reserva legal. É o que também entende João Humberto Cesário:

Assim observando o embate, é iniludível que a produção de uma cadastro administrativo, onde são inseridos os empregadores que reduzem trabalhadores a condição análoga à de escravo, usado como critério de financiamento público da atividade produtiva privada, não está a ferir de modo algum, o princípio da reserva legal, estando antes a implementar, concretamente, tanto no plano prático quanto no ético, os mais sagrados valores constitucionais. Ademais, ainda que as portarias discutidas não tratassem de mero critério administrativo de financiamento público da atividade produtiva privada, estando assim editadas dentro nos limites do poder discricionário da administração pública, tenho que a conduta dos Ministros do Trabalho e da Integração Nacional evidentemente não desborda dos limites das suas atribuições legais.290

No que se refere à argumentação da presunção de inocência, esta deve ser descartada na medida em que também há presunção constitucional de legalidade e acerto dos atos administrativos, principalmente levando-se em consideração que aos empregadores autuados foi garantida a ampla defesa, sendo que só depois do esgotamento da instância recursal administrativa, que seu nome é lançado na lista suja, de modo a se destacar a autonomia da via administrativa em relação à criminal.

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CESÁRIO, João Humberto. O cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de escravo como instrumento de afirmação da cidadania: questões constitucionais e processuais. In: NOCCHI, Andrea Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel Napoleão; FAVA, Marcos Neves (Coord.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2011, p. 160.

Com efeito, a não concessão de créditos públicos subsidiados e de incentivos fiscais aos fazendeiros que ostentam práticas de trabalho escravo é totalmente justificada diante dos ditames constitucionais, uma vez que a ordem econômica fundamenta-se na valorização do trabalho humano, tendo por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, possuindo como princípios, dentre outros, a função social da propriedade, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego.

Portanto, é compreensível a diferença na tratativa dada aos fazendeiros que cumprem a legislação e aqueles que insistem em ignorá-la, com anseio voltado exclusivamente para lucros desmedidos, nem que para isso subjugue os trabalhadores a situações degradantes, o que mais uma vez é bem retratado por João Humberto Cesário:

Aliás, decididamente, não parece razoável que fazendeiros sérios, que observam rigorosamente a legislação trabalhista, devam disputar créditos públicos em pé de igualdade com aqueles que maltratam a dignidade do ser humano, sendo inquebrantável obrigação do Poder Executivo tratá-los de modo desigual, já que, como é curial, o princípio da isonomia, direito e garantida fundamental da sociedade (art. 5º, caput, da CRFB), consiste em tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de modo desigual, na exata medida de suas desigualdades.291

A partir da inclusão na lista suja, uma outra situação foi deflagrada, a adesão de empresas nacionais e multinacionais ao Pacto Nacional contra o Trabalho Escravo, com a finalidade de articulação entre os pactuantes, de não mais adquirirem produtos oriundos de empresas cadastradas na lista suja, com inclusive o estabelecimento de parâmetros para a formalização de relações de emprego pelos produtores e fornecedores, no cumprimento de todas as obrigações trabalhistas e previdenciárias e em ações preventivas referentes à saúde e à segurança dos trabalhadores.

Ressalta Carina Rodrigues Bicalho sobre a iniciativa:

A inclusão de empregadores na chamada lista suja oferece uma resposta positiva à sociedade na luta pela erradicação do trabalho escravo. Conta-se, ainda, com o compromisso firmado por cerca de 200 empresas e associações com faturamento total de 20% do PIB,

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na esteira do que se chama Responsabilidade Social, de não manterem relações comerciais com empresas que exploram trabalho escravo em sua cadeia produtiva no chamado Pacto Nacional pela erradicação do trabalho escravo. Esse compromisso, aliado aos efeitos da lista suja, tem o condão de acarretar prejuízos consideráveis aos empregadores que assumirem o risco de manter, diretamente ou em sua cadeia produtiva, a exploração de trabalho escravo.292

A iniciativa é um importante instrumento repressivo, de modo a afetar de forma direta o âmbito comercial e econômico dos responsáveis pelo trabalho escravo, enfraquecendo de modo gradual a exploração desumana.