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2. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

2.1 Histórico da degradação do meio ambiente do trabalho

2.1.6 Panorama brasileiro

Não é possível ignorar, olhando para o Brasil, tantos anos passados debaixo do regime de escravidão, marca essencial do trabalho realizado nos tempos coloniais e imperiais. Em terras tupiniquins, os escravos eram mantidos sob

condições adversas, o que lhes prejudicava sobremaneira a saúde, a ponto de a expectativa de vida ser de apenas dois terços, se comparada com a de um brasileiro branco98. Dificultadas, por tais razões, a reprodução dos escravos negros, a economia nacional sobrevivia praticamente do tráfico africano, como escreve Fausto: Mesmo com a destruição física prematura dos negros, os senhores de

escravos tiveram sempre a possibilidade de renovar o suprimento pela importação. A escravidão brasileira se tornou mesmo totalmente dependente dessa fonte99.

Naquele tempo a escravidão africana era mais lucrativa que a dos indígenas, isso porque estes eram mercadorias internas da Colônia, ao passo que os africanos representavam grandes cifras no mercado. É o que aponta Paulo Sérgio do Carmo:

A escravidão africana era duplamente lucrativa, tanto no que diz respeito à circulação da mercadoria humana, permitindo a acumulação por parte do comerciante, quanto no que se refere ao trabalho escravo na esfera da produção, que sustentava a classe dominante colonial.100

98

ROSSIT, op. cit., p. 76.

99

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, p. 54.

100

O trabalhador negro era apenas uma coisa e não um ser humano, a tratativa era extremamente opressora, como bem descreve Irany Ferrari:

A comida é a recompensa do escravo, é outra constatação plena de veracidade com essa paga, com a qual o escravo obtinha o necessário para sobreviver, e o seu dono, proprietário da terra, tinha a certeza de que subsistiria fisicamente. A remuneração que consistia basicamente na sobrevivência do escravo, mantinha, por outro lado, a rentabilidade da terra do seu dono.101

A repressão e violência faziam parte do cotidiano destes escravos, que quando não eram punidos em cativeiro pelos seus senhores, o eram pelas autoridades civis que implementavam as chibatadas e prisões com argola de ferro no pescoço. Nada comparado com a crueldade que sofriam quando se rebelavam nas fazendas, o que muito bem retrata Paulo Sérgio do Carmo:

Aqueles que se rebelavam eram colocados no tronco ou no grilhão de ferro que prendia os pés e mãos. Os açoites eram aplicados com chicote de couro cru e, em seguida, salgavam-se os ferimentos. A punição com amputação de seios, castração, queimadura com tição ardente ou quebra de dentes a martelo era aplicada nos casos considerados graves.102

Só que passou a ser considerada a possibilidade de acabar com o tráfico negreiro. Primeiro, com a pressão da Inglaterra – país tachado por seus próprios habitantes de guardiã moral do mundo –, cuja ação foi providencial para abolir esse comércio no Brasil. Antes mesmo da Lei Eusébio de Queirós, de 1850, era ferrenha a fiscalização dos navios negreiros que chegavam ao Brasil – tratados pela marinha inglesa como navios de piratas103. Após 1850, vários fatores – e determinações legais – contribuíram para que não só o tráfico como a própria escravidão fosse ganhando o desprestígio de amplas camadas da população.

Não se pode ignorar, nesse processo que culminou com a Lei Áurea, em 1888, a ação de vários movimentos de cunho moral e religioso. Denúncias particularmente importantes vinham de Roma – o Papa Gregório XVI condenava a atitude daqueles que tratavam os negros vindos da África como se não fossem seres

humanos, mas pura e simplesmente animais, sem nenhuma distinção, contra todos

101

FERRARI, Irany. História do trabalho, do direito do trabalho e da justiça do trabalho. São Paulo: LTr, 1998, p. 32.

102

CARMO, op. cit., p. 56.

103

os direitos de justiça e humanidade104 – e do Brasil – da pena de um escritor romântico, Castro Alves, saía um relato dramático, porém fiel, da condição dos escravos dentro dos navios negreiros: o poeta falava de um sonho dantesco, com

tinir de ferros, estalar de açoite e baques de corpos ao mar.105

Extinta a escravidão – sem dúvida, uma grande conquista no campo da dignidade humana –, outros problemas passaram a fazer parte do cenário nacional. Tratava-se da vinda de imigrantes da Europa para o trabalho nas lavouras de café brasileiras. Como seriam acolhidos esses trabalhadores, oriundos mormente da Itália?

Em primeiro lugar, é importante destacar em que condições os trabalhadores italianos saíam de suas pátrias para vir ao Brasil. Após a unificação do país, concluída em 1870, o desemprego estava em alta, por conta de problemas econômicos que afetaram especialmente a porção sul do território. Como incentivo para emigrar, os italianos recebiam subsídios do governo brasileiro, o que contou como fator determinante para a sua fixação em nosso território, principalmente em São Paulo, onde a lavoura do café demandava muita mão de obra.

O que acontecia, porém, era que os cafeicultores, até então também senhores de escravos, acostumados a tratar seus subordinados como suas propriedades, e não como trabalhadores autônomos, transformavam muitas vezes o vínculo empregatício em um sistema de escravidão disfarçado, no qual as famílias vindas da Europa tinham que suportar uma carga pesada de tarefas, quando não eram totalmente prejudicadas na hora de serem remuneradas, o que muito bem retrata Liliana Allodi Rossit:

No Brasil, (...) o governo cobria o preço da passagem da família e o custo real da imigração corria totalmente por conta do imigrante, que era a parte financeiramente mais fraca. Desse modo o Estado financiava a operação, o colono hipotecava o seu futuro e o de sua família e o fazendeiro ficava com todas as vantagens.106

No começo do século XX, o governo italiano, tomando consciência da forma como eram tratados os seus habitantes em solo brasileiro, publicou o Decreto Prinetti, proibindo a emigração de italianos subvencionada pelo governo tupiniquim.

104

GREGÓRIO XVI, Papa. Documentos de Gregório XVI e de Pio IX. São Paulo: Paulus, 1999, p. 52.

105

ALVES, Castro. Navio negreiro. [S.l.]: Virtual Books, 2000. Disponível em: <http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/?idioma=Portugues&id=00065>. Acesso em: 24.03.2014.

106

Com o ato de Estado, os números da imigração italiana no país realmente diminuíram. O problema, no entanto, persistia, e era urgente a tomada de medidas para melhorar a situação dos trabalhadores braçais nas lavouras de café, tanto mais quanto mais cresciam as denúncias sociais a essa realidade.

É interessante pontuar como, até mesmo nas críticas ao meio ambiente do trabalho da época – as culturas de café –, predominava uma visão ainda deficiente de dignidade humana. Se, por um lado, não se preocupava em conceder benesses ou incentivos aos negros recém-libertados da escravidão, por outro, aos imigrantes europeus, era exigido um tratamento respeitoso, como se aqueles, mesmo com a carta de alforria, fossem cidadãos de segunda categoria. As mudanças efetivadas pelo governo brasileiro para proteger os trabalhadores atingiram muito pouco a população negra que labutava no interior de São Paulo, posto que as medidas adotadas pelo Estado visavam tão somente os imigrantes, cujos gastos com transportes passariam a ser cobertos pelo governo imperial, de modo que o colono

não era obrigado a indenizar os gastos de viagem, permitindo, ainda, o não comprometimento de sua liberdade futura107.

Enquanto os imigrantes trabalhavam no campo e até mesmo nas cidades, aos poucos ocupando os espaços reservados ao trabalhador brasileiro, este advindo de uma sociedade escravista, passou a ser relegado a segundo plano, faltando-lhe oportunidades para superar toda a carga do seu passado histórico, empurrado para as ocupações subalternas e menos qualificadas.

Nesse sentido, ressalta Paulo Sérgio do Carmo:

Com o fim da escravatura, o problema que se colocava, então, era como fazer com que o liberto, dono de sua força de trabalho, se dispusesse a vender seu potencial produtivo ao capitalista empreendedor. O liberto deveria compreender que, para se tornar bom cidadão, teria de, acima de tudo, amar o trabalho em si, sem levar em conta apenas as vantagens materiais que dele pudesse obter. Difícil era convencer o liberto a ser trabalhador, pois, desde a Colônia até o Império, toda uma cultura se produzira no sentido de estigmatizar o trabalho braçal como atividade inferior, desprezível, de escravo. Em razão desse processo histórico, tornava-se difícil impor medidas disciplinares visando garantir a organização do trabalho.108

Somente na primeira República (1889-1930) iniciou-se um processo de construção de identidade do trabalhador brasileiro, propondo a transformação do

107

ROSSIT, op. cit., p. 81.

108

homem livre ou ex-escravo em trabalhador assalariado, o que é claro não foi aceito por todos, já que muitos preferiram ocupações onde não havia a figura do patrão.

Para aqueles que aceitaram, o período foi de grandes oposições, resistências e greves no sentido de fazer com que os empregadores aceitassem as normas legais que regulamentaram a sindicalização, a concessão de férias e até mesmo a conquistas alcançadas no âmbito internacional, no que dizia respeito às leis relativas à jornada de trabalho, acidente de trabalho e proteção ao trabalho da mulher.

Dando continuidade ao processo histórico do desenvolvimento das relações de trabalho no Brasil, a era Vargas (1930-1945) foi marcada por compromissos firmados entre o Estado e a classe operária. Propositalmente, algumas reivindicações básicas dos trabalhadores eram atendidas com único intuito de conter a luta operária e a atuação dos sindicatos, todavia, ainda permanecia o descaso em relação à proteção do meio ambiente do trabalho.

A afirmação de Paulo Sérgio do Carmo confirma o propósito daquele tempo, pois para ele o Estado exercia um papel desmobilizador sobre a consciência e a

organização operárias. Em outros termos, seu objetivo, declarado era limitar a ação e a organização dos trabalhadores, comandando-as com rédeas curtas.109

Também aquele período foi marcado pela política do empreguismo dado o excesso de mão de obra, ainda mais quando do declínio da imigração européia, fato que acelerou a migração no território brasileiro, principalmente para os grandes centros onde existiam as indústrias, o que é claro culminou inclusive no êxodo rural, já que os trabalhadores procuravam uma vida melhor. Aos que ficaram no campo, as mudanças não foram significativas, já que traziam a marca do período colonial, da escravidão e coronelismo.

Ao fim do governo Vargas, com restauração da democracia, já no período de 1950 a 1960, os trabalhadores passaram a ter um papel de maior importância na política, representados pelos sindicatos agora mais ativos e, a partir daí, até o golpe militar de 1964, intensificou-se as reivindicações e mesmo as greves face o subemprego, o crescimento da mão-de-obra excedente e sem ocupação, o que aumentou consideravelmente a pobreza nas cidades. Enquanto isso no campo, apesar da população rural ser composta de lavradores sem terra, submetidos aos mandos de proprietários concentradores de terras, iniciou-se uma reação, com a

109

organização de ligas camponesas*, formadas basicamente por aqueles que trabalhavam a terra, tendo como único objetivo a luta pela reforma agrária no Brasil.

Com o auge do regime militar, o movimento sindical, bem como todos aqueles que o aderiam, eram perseguidos, reprimidos, presos, torturados, quando não desapareciam. Apesar do forte controle, os trabalhadores resistiam e se organizavam clandestinamente.

Foi nesse período conturbado e extremamente repressivo que na área rural iniciou-se o processo de mecanização da agricultura, com a inserção da Revolução Verde já comentada, tendo esta encontrado, como também já dito anteriormente, vários movimentos rurais resistentes, ao passo que as políticas de modernização da agricultura em si, fomentavam a especialização das atividades agrícolas, ensejando em contrapartida a expulsão dos pequenos agricultores para o meio urbano, com expropriação de seus meios de produção.

O Estado ditador estava engajado nos novos rumos da produção agrícola, inclusive facilitando a aquisição de máquinas e equipamentos por meio de subsídios governamentais e acesso a linhas de crédito, o que foi muito bem usufruído pelos sulistas do país que esforçaram-se na migração para outros estados, principalmente Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, já que procuravam por terras mais baratas para

expansão da produção agropecuária, em especial a criação de gado bovino e a produção de monoculturas de exportação.110

Nesse sentido acrescenta Álvaro Juscelino Lanner:

Essa corrente de migrantes do Sul do Brasil se desloca, num movimento contínuo, em direção as terras do Norte brasileiro e ultrapassa fronteiras. Esses migrantes foram estrategicamente aproveitados pelo Estado brasileiro para formar, nos moldes da “Revolução Verde”, a nova fronteira agrícola brasileira.111

*As ligas camponesas organizaram milhares de trabalhadores rurais que viviam como parceiros ou arrendatários, principalmente no nordeste brasileiro, utilizando o lema “Reforma Agrária na lei ou na marra” contra a secular estrutura latifundiária no Brasil. Apesar de sofrerem forte repressão da polícia e dos grandes proprietários de terras, isso não impediu seu fortalecimento ao longo dos anos, expandindo-se para outros estados.

110

PERES, Frederico. Saúde, trabalho e ambiente no meio rural brasileiro. Ciênc. saúde coletiva.

2009, vol.14, n.6. p. 1997. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000600007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15.02.2015.

111

LANNER, Álvaro Juscelino. Meio ambiente de trabalho: trabalho rural. Porto Alegre: 2012. Disponível em <http://www.ufrgs.br/sga/SGA/material-de-apoio/textos/textos-apoio/links/2Monografia_Rev_V9.doc/view>. Acesso em 15.02.2015.

Mesmo ao fim do regime militar, o Estado brasileiro continuava a dar privilégios, bem como financiava o modelo de agricultura baseado na quimificação e na mecanização, com monopolização das técnicas de produção, o que afastava todos aqueles que não estivessem afinados com o novo modelo. Basicamente, o espaço fundiário representava o latifúndio voltado para a monocultura de exportação, o que já àquela época era positivo na balança comercial brasileira.

Tal situação é retratada por Frederico Peres:

O agronegócio atualmente se configura como o maior setor exportador brasileiro, contribuindo com aproximadamente 37% das exportações do país, consoante dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), além de vir sendo a garantia do superávit e o fiel da balança comercial brasileira, também contribui com aproximadamente 32% do PIB e 37% dos empregos no Brasil.112

O fato é que até hoje, apesar da discussão acirrada da necessidade de uma melhor distribuição de terras no país, para que de fato a propriedade exteriorize sua função social, a presença dos latifúndios ainda é marcante, o que se deve inclusive ao processo histórico do país. É o que entende Saul Duarte Tibaldi:

Em virtude desta tendência, que podemos vincular a nossa tradição pré-colonial ibérica e católica, vivemos em uma sociedade com fortes ranços em sua cultura e ordem sócio-política, tais como o autoritarismo, o elitismo, a estratificação, a hierarquização, o bacharelismo e o corporativismo. No meio agrário, estes privilégios podem ser abarcados num elemento essencial: a concentração da propriedade. Daí resultam estruturas de sujeição da população rural que significam problemas de ordem institucional, com conexões aos mecanismos jurídicos, políticos e culturais. Este padrão se repete conforme a organização social e o momento histórico de cada país. No Brasil, a especulação e concentração da propriedade agrária constitui fenômeno observável desde os tempos coloniais e das capitanias hereditárias.113

Na contramão deste processo de agricultura tecnificada, focada na monocultura de exportação e quase sempre responsável pelos impactos no meio ambiente de trabalho, com sua degradação, subsistiram as agriculturas de base familiar, com produção diversificada e voltada ao mercado interno, o que contribui fortemente para garantir a segurança alimentar dos brasileiros.

112

PERES, op. cit., 1997.

113

TIBALDI, Saul Duarte. Modernidade nas relações de trabalho agrícolas no Brasil – Tese Acadêmica de Doutorado/PUC-SP sob a orientação do Prof. Doutor Renato Rua de Almeida – São Paulo: 2001 – Biblioteca PUC-SP, p. 38.

Todavia, importante esclarecer que apesar da convivência atual destas formas de agricultura muitas vezes desrespeitando as normas de segurança e saúde dos trabalhadores, hoje há regulamentação focada nas normas constitucionais relativas às relações de trabalho, à proteção ao meio ambiente, inclusive com a propriedade voltada para sua função social, fato que justifica a pertinência deste trabalho, que tem interesse na proteção daqueles que, apesar de todos os dias venderem sua força e saúde, ainda sim são ignorados. Infelizmente vive-se no presente a realidade do descuido com a saúde e segurança dos trabalhadores rurais.

Feita a abordagem do panorama histórico do desenvolvimento das relações de trabalho no contexto geral e brasileiro, importante inserir a seguir a dignidade da pessoa humana como pressuposto da ordem jurídica, o que busca trazer efetividade à proteção do meio ambiente do trabalho, posto que sua figura principal é sem dúvida o trabalhador.