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3. MEIO AMBIENTE DO TRABALHO RURAL E LEGISLAÇÃO APLICÁVEL

3.4 Violações normativas mais comuns na atividade rural

3.4.3 Escravidão contemporânea

3.4.3.2 Os mecanismos de combate à escravidão contemporânea no Brasil

3.4.3.2.3 A desapropriação da propriedade rural

A iniciativa é um importante instrumento repressivo, de modo a afetar de forma direta o âmbito comercial e econômico dos responsáveis pelo trabalho escravo, enfraquecendo de modo gradual a exploração desumana.

3.4.3.2.3 A desapropriação da propriedade rural

No intuito de tornar efetivo o combate ao trabalho escravo foram adotadas medidas que pudessem atingir o bem maior do escravocrata, a propriedade. Com amparo constitucional, sobretudo, com previsão no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, a desapropriação em decorrência da função social da propriedade é uma alternativa.

Fazendo-se um retrocesso histórico, a concentração de terras nas mãos de poucos fazendeiros sempre foi visível e não é surpresa para ninguém que neste processo os trabalhadores rurais eram constantemente explorados, a ponto de não ser considerada sua dignidade humana. Ou seja, a violência contra o trabalhador rural é uma característica endêmica da estrutura agrária brasileira que até hoje possui práticas que reduzem os trabalhadores à condição de escravo.

Na tentativa de eliminar estas atitudes provenientes, na maioria das vezes, de grandes proprietários de terras é que a Carta Magna de 1988 garante o direito de propriedade, atrelando-o, todavia, ao atendimento da sua função social (artigo 5º, XXII e XXIII, CF), uma vez que a exploração da terra deverá atender os interesses dos proprietários, mas também de toda a coletividade.

É o que registra Marcello Ribeiro Silva:

Assim, ao apropriar-se de uma determinada coisa, o homem deve ter em mente que sua exploração visa a não somente satisfazer suas próprias necessidades, como também as necessidades da

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BICALHO, Carina Rodrigues. Trabalho em condição análoga à de escravo: um conceito para os tempos pós-modernos. In: VELLOSO, Gabriel; MARANHÃO, Ney (Coord.). Contemporaneidade e

coletividade, mormente por excelência, de onde se extrai os alimentos imprescindíveis à sobrevivência da raça humana. Daí por que, a propriedade em geral, e, mais especificamente a propriedade agrária, deixou de ser vista como um direito absoluto, de caráter meramente patrimonial, que poderia ser utilizada com bem aprouvesse seu titular, como ocorria nos idos do Estado Liberal, passando a ser enfocada, sob a ótica do Estado Democrático de Direito, em sua dimensão social, em que o proprietário deve se valer de seu bem em favor de seus próprios reclamos, sem deixar de observar, contudo, o interesse comum.293

Observa-se que não há negação do direito de propriedade do fazendeiro, o objetivo é maior, a utilização mais racional da propriedade, em comunhão com os interesses de toda a sociedade, fato observado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

Reconhecendo a função social da propriedade, sem a renegar, a Constituição não nega o direito exclusivo do dono sobre a coisa, mas exige que o uso da coisa seja condicionado ao bem-estar geral. Não ficou, pois, longe o constituinte da concepção tomista de que o proprietário é um procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos, embora não pertençam a todos.294

Todavia, para o atendimento da função social, em especial na propriedade rural, ainda é necessário que os grandes fazendeiros cumpram simultaneamente os requisitos elencados no artigo 186 da CF, a saber, o uso racional e adequado da propriedade, a preservação ambiental, a observância da legislação de proteção ao trabalho e a promoção do bem-estar dos proprietários e trabalhadores, sendo estes últimos requisitos regulamentados pelos §§ 4º e 5º, do artigo 9º, Lei 8.629/1993295 que dispôs o respeito às leis de proteção ao trabalho, aos acordos e convenções coletivas de trabalho e às normas que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais, assim como o atendimento das necessidades básicas dos que lidam com a terra, a observância das normas de segurança do trabalho e a prevenção de conflitos e tensões sociais no imóvel.

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SILVA, Marcello Ribeiro. O trabalho escravo contemporâneo rural no contexto da função social. In:

Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília: LTr, ano XIX, n. 37, março 2009, p. 68. 294

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 21ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 310.

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BRASIL. Presidência da República. Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8629.htm>. Acesso em: 03.03.2015.

O que se vê claramente é que a materialização da função social da propriedade está diretamente relacionada à proteção do trabalhador, o que inclusive é sustentado por Umberto Machado de Oliveira:

Irreparável, assim, a inclusão dos incisos III e IV do art. 186 da CF como requisitos para o cumprimento da função social, pois a atividade agrária não se desenvolve, por maior que seja o grau de utilização dos recursos tecnológicos, sem o elemento humano, isto é, sem a força do trabalhador rural, disso resultando a necessidade de protegê-lo enquanto ser humano, a fim de preservar-lhe a dignidade, princípio que fundamenta, inclusive, a própria República Federativa do Brasil.296

Assim, a escravidão contemporânea no âmbito rural, com a inserção do trabalho análogo ao de escravo, exclui os direitos sociais trabalhistas alcançados pelos trabalhadores ao longo dos anos, a indicar, aqueles previstos no artigo 7º da CF e na Lei 5.889/1973, a indiferença às normas de segurança e saúde no trabalho rural registradas na NR 31, assim como a grave violação ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito fundamental de liberdade, e como não podia ser diferente, o desrespeito à função social da propriedade agrária, em especial descumprimento dos requisitos elencados no artigo 186 CF, que automaticamente pressupõe a aplicação do artigo 184 da CF, no que diz respeito à desapropriação do imóvel rural naquelas condições.

Apenas para esclarecer, o ato de desapropriação, apesar de prever uma indenização ao proprietário, tem o condão de retirar-lhe os direitos sobre a propriedade, para que esta possa respeitar os interesses sociais, ser redistribuída de forma mais justa.

É o entendimento de Jairo Lins de Albuquerque Sento-Sé:

De fato, implica um ato compulsório, que retira direitos dominiais privados do proprietário, a fim de obter o bem-estar e a melhoria das condições sociais da comunidade, desde que respeitados os limites constitucionais e legais que amparam o interesse público e garantem os direitos individuais.297

A repressão e aniquilamento do trabalho escravo contemporâneo no Brasil por meio da desapropriação da propriedade rural conta também com o apoio das

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OLIVEIRA. Umberto Machado de. Princípios de direito agrário na Constituição vigente. Curitiba: Juruá, 2008. p. 175.

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metas desenvolvidas pelo Governo Federal, que por meio do II Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo298, lançado em 2008, assegurou a implementação de uma política de reinserção social de forma a assegurar que os trabalhadores resgatados não voltem a ser escravizados, com ações específicas voltadas a geração de emprego e renda, reforma agrária, educação profissionalizante e reintegração do trabalhador; a priorização da reforma agrária em municípios de origem, de aliciamento e de resgate de trabalhadores escravizados; a sensibilização do Supremo Tribunal Federal para a relevância dos critérios trabalhista e ambiental, além da produtividade, na apreciação do cumprimento da função social da propriedade, como medida para contribuir com a erradicação do trabalho escravo; e o investimento sistemático e a divulgação dos resultados, a cada seis meses, da cadeia dominial de imóveis flagrados com trabalho escravo para, eventualmente, retomar as terras públicas e destiná-las à reforma agrária.

Apesar de na prática a desapropriação da propriedade rural que utiliza mão-de-obra escrava estar longe de se concretizar, as disposições jurídicas e administrativas a este respeito estão em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, já que nada mais digno do que disponibilizar ao ser humano a oportunidade de ter uma terra, para nela produzir e assim garantir o seu sustendo e de sua família.