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A autocolocação da vítima em risco no tráfico de pessoas

5.3. O Consentimento

5.3.1. A autocolocação da vítima em risco no tráfico de pessoas

Com o nascimento da vitimologia como um ramo autônomo da criminologia, os penalistas passaram a se preocupar com o conceito de vítima e o seu comportamento em face do crime. Nesse particular, a vitimodogmática estuda, especificamente a contribuição da vítima para a ocorrência do delito, pois se acredita que sua interação com o agente e com o ambiente pode, por vezes, ter colaborado para o evento criminoso. Modernamente, tem concentrado sua investigação na colaboração da vítima e seus reflexos na pena imposta ao autor, seja sua atenuação ou total isenção.461

Desse modo, por meio da evolução do conceito de vítima, percebeu-se que em alguns casos, esta pode criar o risco para si própria, pois se coloca em uma situação que pode levá-la a um resultado danoso.462

Assim, a autocolocação da vítima em risco surgiu na jurisprudência alemã para ser aplicada em três casos: na hipótese de drogados que partilharam agulhas e um deles vem a morrer por Aids, na participação em suicídio e na transmissão de Aids por via sexual, quando o parceiro consente na relação, mesmo que previamente advertido dos riscos pela pessoa infectada. Trata-se de um desdobramento da teoria da imputação objetiva.463

Alessandra Orcesi Pedro Greco esclarece que a autocolocação da vítima em risco exige que esta “atue voluntariamente de forma arriscada livremente, e para que

459GERONIMI, Eduardo. Aspectos jurídicos del tráfico y la trata de trabajadores migrantes.

Programa de Migraciones Internacionales Oficina Internacional del Trabajo Ginebra. Disponível em: < http://www.ilo.org/public/english/protection/migrant/download/pom/pom2s.pdf>, p. 39. Tradução livre realizada pela autora.

460Nesse sentido: GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 23.

461Nesse sentido: Idem. Ibidem, p. 39. 462Nesse sentido: Idem. Ibidem, p. 22. 463Nesse sentido: Idem. Ibidem, p. 103.

se faça uso dela é necessário que se faça uma análise em conjunto com os demais elementos da imputação objetiva”464. Logo, sendo essa uma teoria que proporciona novos subsídios para que se possa atribuir o resultado delitivo a alguma pessoa, destaca o consentimento como um dos elementos a ser ponderado quando da imputação.465

Assim, a atuação do instituto incidirá dentro dos seguintes limites: a) a autocolocação só se aplica para os crimes que possuem como bens jurídicamente tutelados, interesses individuais, pois estes permitem uma margem de discricionariedade; b) a vítima necessariamente tem que ser imputável, ou seja, esta deve possuir capacidade mental e ter acima de dezoito anos para poder dispor livremente do seu bem jurídico; c) a vítima deve agir voluntariamente e deve estar ciente dos riscos a que exporá seu bem jurídico; d) o comportamento da vítima deve ser decisivo para a consecução do resultado lesivo que, inicialmente, não foi desejado por ambos, vítima e agente.466

Com relação à possibilidade da aplicação da autocolocação da vítima em risco ao tráfico de seres humanos, Alessandra Orcesi Pedro Greco defende o entendimento de que nos casos em que há a aceitação livre e consciente sobre as condições da nova vida, em caráter inicial e permanente, o sujeito assume o risco dos desvios comuns em casos dessa natureza, sendo, portanto, suficiente para excluir o crime de tráfico de pessoas. Nessa situação, há a possibilidade de incidir dois institutos; o da autocolocação e o consentimento.467

Desse modo, torna-se oportuno traçar as diferenças entre a autocolocação em perigo e o consentimento do ofendido propostas pela referida autora: a) na autocolocação, a própria ação da vítima coloca-a ante o perigo existente, sendo que a vítima é competente para sua autoproteção, no sentido de evitar qualquer conduta que possa lesar ou pôr em risco seus próprios bens jurídicos. Já no consentimento, isso não acontece, pois a vítima deixa a cargo do autor a decisão sobre a lesão ao bem jurídico; b) na autocolocação a ação da vítima provocou sua autolesão após a conduta do autor. Enquanto que no consentimento, a vítima aceita que o terceiro cause um dano, depois de ter sido criada a situação de risco por este, decidindo

464GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. Da autocolocação da vítima em risco e o tráfico de pessoas. MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte I. Coordenação. Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier

Latin, p. 15-31, 2010, p. 23.

465 GRECO, 2004, p. 101.

466Nesse sentido: Idem. Ibidem, p. 166. 467GRECO, op.cit., p. 30-31.

expor-se ao perigo; c) na autocolocação, em geral, o que se aceita é colocar em xeque o bem jurídico, pois a vítima acredita que dará tudo certo. No consentimento, o titular do bem jurídico aceita com a certeza de que se produza uma lesão ou um dano, o qual leva ao resultado lesivo.468

Ana Isabel Pérez Cepeda ao restringir a aplicação dos institutos supramencionados, advoga que o consentimento e a autocolocação em risco podem ser utilizados para excluir a tipicidade, no que tange apenas ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, pois envolve um bem jurídico de caráter individual já que na sua concepção protege-se como bem jurídico, especificamente, a liberdade sexual, ao ser esta plenamente disponível, fundamenta-se no princípio da autonomia da vítima, desenvolvido por Claus Roxin, na hora de determinar a imputação objetiva. Como regra geral, a competência exclusiva da vítima implica a atipicidade de qualquer lesão, sempre que seus atos sejam livres e conscientes contra o próprio bem jurídico. E igualmente se exime de responsabilidade qualquer tipo de colaboração ou deslocamento com fim de prestar serviços em país ou território de destino, em razão da autocolocação em perigo.469

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