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A Conexão Global-local no Contexto do “Direito à cidade”

NOVOS TIPOS “PUROS” DE DOMINAÇÃO ORGANIZADA DA METRÓPOLE

Capítulo 4. O “Direito à Cidade” como Dominação Organizada da Metrópole com relação a valores

4.1 A Utopia da Gestão Democrática da Cidade

4.1.2 A Conexão Global-local no Contexto do “Direito à cidade”

No plano local, a reconquista, já em 1985, do direito do voto para a eleição dos prefeitos e vereadores das capitais abre possibilidades de negociação com governos municipais progressistas comprometidos com as reivindicações dos movimentos sociais urbanos e com a universalização de direitos de cidadania. É no diálogo com essas administrações, como é o caso de Luiza Erundina em São Paulo, que o FNRU e outros agentes da sociedade civil ampliam o debate sobre a função social da cidade entendida como o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado do espaço urbano.

É por essa via que se pode entender a constituição o “direito à cidade” como categoria de agentes e instituições especializadas na definição do dever-ser da metrópole. O florescimento de novas instituições que reivindicam um lugar na divisão do trabalho de ___________________

dominação organizada da metrópole sugere um deslocamento do lugar geométrico da produção e difusão de saberes sobre a metrópole. Intensifica-se a luta pelo monopólio do capital urbanístico entre instituições tradicionais vinculadas ao obreirismo e outras situadas no âmbito da sociedade civil organizada. Como nota Teixeira (2003), encontra-se na linha de frente desse processo novos tipos de Organizações não-Governamentais – ONGs que, na sua origem, prestam assessoria aos movimentos populares, mas diversificam suas ações de acordo com as mudanças no quadro econômico, social e político do país, bem como com as possibilidades de financiamento de suas atividades.

A trajetória do já mencionado Instituto de Assessoria e Formação em Políticas Sociais – Pólis e dos profissionais a ele vinculados é bastante representativa desse novo cenário e modo de representação da ordem urbana. De acordo com Paulics e Bava (2002:49), o Instituto foi constituído nos moldes de um think tank de políticas públicas, e nasceu da iniciativa de um grupo de professores universitários, técnicos de órgãos públicos, especialistas em educação popular e de outras pessoas identificadas com a necessidade da criação de uma instituição voltada para a produção de conhecimentos que apoiassem as iniciativas de democratização da gestão pública municipal e de formulação de políticas inovadoras orientadas para promover a inclusão social. Majoritariamente vinculado ao Partido dos Trabalhadores, esse grupo se compunha de pessoas com os mais diversos perfis profissionais – arquitetos, advogados, economistas, sociólogos, pedagogos, historiadores, assistentes sociais, engenheiros, tendo como objetivo central:

produzir conhecimentos e intervir no espaço público das cidades na perspectiva da democratização da sociedade e ampliação dos direitos sociais e políticos de cidadania. Os temas do urbano, das políticas públicas, das relações dos governos municipais como os movimentos sociais e entidades da sociedade civil foi e continua ser o foco que torna o Instituto Pólis uma entidade singular.

Os autores mostram também que a afinidade dessa proposta com o governo de Luiza Erundina levou à absorção, por aquela gestão, de um contingente expressivo dos quadros do Pólis, sugerindo que o “direito à cidade” passava a ocupar espaços institucionais formais na administração a partir da nomeação para cargos públicos de técnicos comprometidos com uma determinada visão de política urbana. Ainda de acordo com os

autores, a partir de 1990, com o apoio de agências internacionais de cooperação, o próprio instituto constitui uma equipe profissional e uma infra-estrutura própria para as suas atividades passando a ter produção sistemática de conhecimento – inclusive com a criação de um Centro de Documentação e Informação - voltado para o fornecimento de serviços de assessoria e consultoria às administrações municipais na RMSP.

Assim, o “direito à cidade” se institui no plano local com forte base em organizações da sociedade civil capazes de formar e fornecer um contingente de agentes especializados, dotados de competências específicas para disseminar o novo modelo na esfera estatal e, desse modo, participar ativamente do trabalho de dominação organizada da metrópole.

O fortalecimento do modelo no plano local não pode ser desvinculado das conexões que os agentes mantêm com as redes sociocognitivas globais. A idéia de “direito à cidade”, combinada à noção de sustentabilidade urbana, cria possibilidades para o estabelecimento de conexões espaço-temporais cada vez mais amplas, expressas na expansão da prática de constituição de redes de agentes que compartilham a mesma escala de valores no plano transnacional e global. Desse modo, os atores locais interpelam as instâncias globais ligadas à questão urbana e ambiental, principalmente os organismos da ONU: PNUD, PNUMA e HABITAT II. Essa estratégia se mostrou viável por que, como observam Rolnik & Saule Jr (1997) a ONU a partir da década de noventa, no rastro dos acontecimentos contemporâneo (queda do muro de Berlim, fim da União Soviética, globalização dos mercados) optou pela realização de conferências relacionadas a temas globais emergentes, visando a uma redefinição na forma de cooperação entre as nações. Esse novo contexto caracteriza-se pela incorporação de novos agentes sociais, sobretudo setores da sociedade civil organizada, e a utilização intensa dos meios de comunicação para a formação de uma opinião pública internacional.

Nesse novo contexto, a chegada da experiência brasileira, por meio da atuação das organizações vinculadas à reforma urbana, às instâncias e fóruns internacionais, difundiu e fortaleceu o modelo como plataforma de luta para os agentes ligados à questão urbana. Rolnik e Saule Jr (1997) argumentaram que isso se deve a que, em princípio, os organismos da ONU tendem a atuar na questão urbana com base nos direitos humanitários que inspiraram a sua criação, os quais são tomados como de interesse universal, conferindo um caráter de “desenvolvimento urbano com uma face humana” às suas ações.

Dentre o ciclo de conferências sobre temas globais – a chamada agenda social da ONU 4 - pode-se destacar, pela sua importância e repercussão, a realização da Conferência Global das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos, Habitat II, na cidade de Istambul em 1996. 5 Para uma apreensão mais precisa da trajetória da constituição do modelo “direito à cidade” tal como preconizado pelos agentes locais, bem como sua consagração e difusão pelas instâncias globais, cumpre remeter a análise, ainda que de forma breve, à preparação e à participação do Brasil na Conferência Habitat II. Esse resgate permite trazer à cena instituições, processos organizativos e formas de atuação dos agentes envolvidos. Alves (2001) relata que, convocada a conferência, o Comitê Nacional congregou, para a preparação brasileira, um total de 24 entidades do governo e da sociedade civil dando uma indicação clara da participação expressiva que as entidades não- governamentais tiveram em todo o processo.6 Foram então realizados seminários em diferentes cidades e, a partir das contribuições e resultados, elaborado o Relatório Nacional posteriormente encaminhado à ONU no âmbito dos preparativos para a Conferência. A par dos procedimentos amplamente democráticos para a sua definição, a delegação brasileira também se caracterizou pelo tamanho da delegação enviada (200 delegados) e na participação expressiva de entidades não-governamentais e comunitárias.

A importância das Conferências da ONU para a constituição de um modelo sociocognitivo de cidade assentado em direitos permite elucidar mais alguns aspectos do campo urbanístico. Nota-se, por exemplo, que a ampliação da rede de agentes, mediante a constituição de estruturas organizativas horizontalizadas possibilitou a ocorrência de sinergias no interior do campo, e, logo, a criação de novos produtos simbólicos já situados

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Durante a década de 1990 a ONU realizou grandes conferências sobre temas globais sendo as mais importantes as seguintes: Conferência Mundial sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente – Rio 92; Conferência Mundial sobre Direitos Humanos – Viena 93; Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento – Cairo 94; Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Social - Copenhagen 95; Conferência Mundial sobre a Mulher – Beijing, 95; e Conferência Mundial sobre os Assentamentos Humanos – Istambul, 96.

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A primeira conferência das Nações Unidas sobre assentamentos humanos (Habitat I) ocorreu em Vancouver, Canadá, em 1976.

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O Comitê Nacional foi integrado pelos seguintes órgãos e entidades: Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Justiça, Ministério da Fazenda, Ministério da Agricultura, do Abastecimento e da Reforma Agrária, Ministério do Trabalho, Ministério da Saúde, Ministério das Minas e Energia, Ministério do Planejamento e Orçamento, Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Lega, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, IBGE, IPEA, Caixa Econômica Federal, CNBB, IBAM (Associação Brasileira de Municípios), Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Habitação, Fórum Brasileiro de Reforma Urbana, Confederação Nacional das Associações de Moradores, Câmara Brasileira da Indústria da Construção, Instituto dos Arquitetos do Brasil e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Alves, 2001).

no plano internacional, tais como a Carta Mundial do Direito à Cidade. Nela preconiza-se a ampliação do tradicional enfoque sobre a melhoria da qualidade de vida das pessoas centrado na moradia e no bairro para a escala da cidade e de seu entorno rural, como um mecanismo de proteção da população que vive nas cidades ou regiões em acelerado processo e urbanização. Na Carta, o “direito à cidade” é erigido em direito humano, estabelecendo a plataforma para o fortalecimento dos processos, reivindicações e lutas urbanas, no sentido de promover, implantar e regular as práticas relativas a esse novo direito. A elaboração da Carta denota a existência de um extenso circuito de legitimação que vai do local ao global, no qual são debatidos os fundamentos e as práticas sócioespaciais concernentes ao “direito à cidade’, desde sua proposição até a consagração, difusão e execução pelas várias instâncias envolvidas. Observa-se claramente um alongamento da cadeia de produção do espaço na qual os diferentes agentes desempenham atribuições e competências delimitadas mas compartilham valores, crenças e maneiras de pensar e agir que dão coerência e sentido a um modelo sociocognitivo de realidade ubana.

Para que se tenha idéia desse amplo circuito de legitimação basta lembrar que a Carta Mundial do Direito à Cidade teve como alguns antecedentes a Carta Européia dos Direitos Humanos na Cidade, elaborada pelo Fórum das Autoridades Locais em Saint Dennis, em maio de 2000, e o Tratado por Cidades, Vilas e Povoados Justos, Democráticos e Sustentáveis (Saule Júnior, 2005). Além disso, foram necessárias as rodadas do Fórum Social das Américas em julho de 2004 na cidade de Quito no Equador e do Fórum Mundial Urbano em setembro do mesmo ano em Barcelona, até que fosse apresentada uma proposta da Carta no V Fórum Social Mundial de Porto Alegre em 2005.