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Transposição do Modelo para o Território como um Parque de Objetos Interconectados

PRODUÇÃO DO ESPAÇO E ORDEM SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Capítulo 2. Gênese, Estruturação e Legitimação do Campo Urbanístico na Região Metropolitana de São Paulo

2.3 Transposição do Modelo para o Território como um Parque de Objetos Interconectados

Outra possibilidade analítica para a apreensão das relações do campo urbanístico com a produção da ordem social diz respeito às formas de transposição para o território de modelos sociocognitivos de realidade urbana como um parque de objetos intercomunicantes (capital urbanístico objetivado). Como já mencionado, o obreirismo dará uma contribuição decisiva para a estruturação, legitimação e autonomização do campo urbanístico, principalmente em função da introdução, de maneira definitiva, da prática do planejamento urbano, da criação de instituições de ensino e pesquisa voltadas para a questão urbana, da cristalização de órgãos públicos específicos na estrutura administrativa do Estado, do surgimento de um quadro de funcionários detentores de conhecimento especializado na produção de normas e códigos como, por exemplo, as leis de zoneamento urbano e também na serialização e interconexão dos objetos. Argumenta-se nesta seção que a combinação desses elementos no território faz com que a metrópole apareça como uma ordem sociourbana dotada de coerência e sentido e conferem ao campo urbanístico um controle até então inédito sobre o processo de produção do espaço, na medida em que, a partir desse ponto, a ordem urbana passa a ser intercambiável e mesmo se confundir com a própria ordem social.

Se no plano das idealizações e das realizações a modernidade, mediada pelo capital cultural acumulado no campo urbanístico, é apreendida e reproduzida como ideologia destinada à reprodução da desigualdade entre as classes; por outro lado a modernização opera de modo seletivo no sentido da ampliação de espaços institucionais de produção simbólica (planos, desenhos, maquetes, diagnósticos, estatísticas, mapas), os quais, da perspectiva dos agentes, uma vez objetivados, transformariam a cidade em metrópole funcionalmente civilizada – a máquina de viver. Esse modus operandi do obreirismo pode ser apreendido por um conjunto de práticas denominado por rodoviarismo. Por meio da utilização de técnicas seletivas, a modernidade urbana assume a forma característica do transporte individual sobre rodas – vis a vis a deterioração dos meios de transporte coletivo – e da produção de grandes obras viárias no bojo de planos urbanísticos totalizantes para a cidade. Transformada em um “canteiro de obras” a cidade e a própria vida urbana passam a

ser concebidas como algo passível de ser pré-fabricada a partir de uma divisão técnica do trabalho de produção do espaço nos moldes de uma organização fabril-taylorista.

A metrópole emerge de uma espécie de linha de montagem, cuja divisão de tarefas perpassa burocracias estatais especializadas, empreiteiras de obras públicas e empresas de consultoria e assessoria, que se utilizam da força de trabalho de categorias socioprofissionais dotadas de conhecimento especializado, como capital cultural adquirido no sistema de ensino, mormente em decorrência da proliferação de escolas de engenharia e arquitetura. Essa divisão técnica do trabalho de ordenamento territorial dá origem às divisões administrativas, aos serviços e departamentos, secretarias e, mais recentemente, empresas urbanísticas, entre elas as duas principais da RMSP. Assim, surgem, na gestão Figueiredo Ferraz na prefeitura de São Paulo, a Empresa Municipal de Urbanização – EMURB e no âmbito estadual, gestão Paulo Egydio, a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano – EMPLASA.13 No setor privado consolidam-se, na figura das empreiteiras de obras públicas, as empresas organizadas para satisfazer a demanda do Estado por infra- estrutura urbana, as quais terão importância crucial para o funcionamento do campo da produção urbanística, sobretudo em seu aspecto material já que é aqui que o capital cultural e urbanístico acumulado pelos agentes é novamente convertido em capital econômico em função da produção de objetos e do módus operandi dessas organizações no interior do campo.

Como nota Marques (2000:121), a partir da década de 1940 o Estado, ao se concentrar nas funções de planejamento, se retirou da provisão direta de infra-estrutura, demandando às empreiteiras a execução dos projetos e obras. Essa divisão de tarefas estruturou o mercado da produção e consumo do espaço com foco em infra-estruturas urbanas, caracterizado por estatização da demanda, regulação estatal da concorrência e fixação de preços (e taxas de lucro) pelo poder público e dependência de obtenção de uma carteira contínua de obras e serviços, ou seja, um mercado fortemente estruturado por questões de ordem política:

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A Emurb é uma empresa municipal de economia mista criada pela lei municipal nº 7.670 de 24 de novembro de 1975, conforme informações do site:

http://portal.prefeitura.sp.gov.br/empresas_autarquias/emurb/empresa/0002. A Emplasa foi criada pelo Decreto Estadual nº 6.111 de 11 de maio de 1975.

assim, as relações entre as empreiteiras, os órgãos estatais e as classes políticas sempre foram muito íntimas e complexas, sendo comuns os exemplos de relação direta dos empreiteiros com os próprios chefes do executivo. Essas relações ocorrem em rede de vínculos não apenas profissionais ou de negócio, mas afetivos, políticos e familiares.

A legitimação e relativa autonomização do campo assim constituído criam as condições para a produção de objetos específicos, intencionalmente concebidos e localizados para a consecução de determinadas finalidades, mormente a organização do fluxo viário. Como assinala Santos (2002:332), “a ordem espacial assim resultante é também intencional. Frutos da ciência e da tecnologia, esses objetos técnicos buscam a exatidão funcional, aspirando, desse modo, uma perfeição maior que a da própria natureza”.

Assim, subjacente aos saberes, às instituições, às técnicas e às práticas hegemônicas do período, delineia-se um sistema de objetos cuja lógica de produção revela aspectos significativos do ethos do modelo, bem como do habitus dos agentes. Uma característica notável é a introdução da serialização dos objetos - túneis, viadutos, pontes e vias expressas – a partir de uma matriz reificada e fetichizada que se torna hegemônica no interior do campo e que confere a qualquer ponte, túnel ou viaduto particular um valor universal concedido a priori em virtude de sua consagração na ordem simbólica. A serialização dos objetos no espaço-tempo denota que o rodoviarismo não é um estilo de governo ligado a determinada personalidade ou partido político, mas resultado de relações objetivas entre instituições e agentes definidoras de padrões cognitivos que perpassam as várias administrações independentemente de orientação ideológica e partidária. Vale dizer, a produção serial dos objetos é uma característica estrutural do campo da produção urbanística introduzida pelo obreirismo e que traz novas possibilidades de controle do espaço-tempo a partir de sua mobilização por uma classe de agentes. Do ponto de vista da dominação de classes, ela possibilita maior alcance ao poder disciplinatório do Estado moderno, que, como assinala Giddens (1985:205),

provém de procedimentos disciplinatórios a partir do uso regularizado da supervisão, com o objetivo tanto de inculcar quanto de tentar manter certas peculiaridades no comportamento daqueles sujeitos a ele [...] O poder disciplinatório é construído em torno do horário, exatamente como os outros aspectos espacialmente mais difusos de

organizações modernas. Mas nesse caso, os horários são usados para organizar a seqüência de desenvolvimento de ações no tempo-espaço dentro de locais delimitados fisicamente, nos quais a regularidade das atividades pode ser imposta pela supervisão de indivíduos que, de outro modo, não o fariam.

Esse aspecto será aprofundado mediante a análise da coleção de objetos do obreirismo na cidade de São Paulo, mais precisamente, da coleção de túneis da região sudoeste. Ao primeiro deles - o histórico Nove de Julho, entregue no ano de 1939 com arquitetura da época em homenagem aos ativistas da Revolução Constitucionalista de 32 - seguiu-se uma série de 15, sempre justificados com o argumento da melhoria da circulação e do fluxo. Mais recentemente, iniciados na gestão do prefeito Paulo Maluf e concluídos pela administração Marta Suplicy, formou-se um fabuloso conjunto de túneis erigidos, uma vez mais, em nome do desafogamento do trânsito no vetor sudoeste da cidade. Trata-se do conjunto formado pelo Sena Madureira, Ayrton Senna, Tribunal de Justiça, Jânio Quadros e Sebastião Camargo, complementados pelos túneis da Cidade Jardim (Max Feffer) e Rebouças, situados nos cruzamentos dessas vias com Avenida Brigadeiro Faria Lima.

Em face dos questionamentos sobre a validade das vultosas inversões a que o Estado é levado a realizar para a consecução de tais objetos, as sucessivas gestões utilizam- se do argumento de que os recursos viriam da iniciativa privada, por meio das chamadas operações urbanas. Porém, mesmo admitindo essa possibilidade, deve-se notar que, além de recursos financeiros para a sua objetivação, esses objetos, na verdade máquinas urbanas produto das técnicas da modernidade, exigem a utilização dos recursos organizacionais e técnicos das instituições estatais para que possam manter a sua funcionalidade na organização do espaço.

Basta analisar o constante esforço de manutenção envolvendo a utilização de tecnologias cada vez mais sofisticadas em centrais de comando e monitoramento. Os 16 túneis perfazem um total de 18 quilômetros de extensão, possuem mais de 10 mil lâmpadas, 20 painéis eletrônicos para orientar motoristas, 122 equipamentos entre exaustores e insufladores, e ainda cerca de 90 câmeras móveis e fixas de circuito fechado de televisão que detectam carros quebrados, acidentes, e apóiam a mobilização de socorro imediato. Para que este complexo funcione adequadamente, são programadas intervenções mensais nos túneis e realizadas trocas de lâmpadas queimadas, limpeza da calha, pintura, varrição, lavagem de paredes e teto, bem como a verificação nas instalações e fiações. No

total os túneis têm 20 bombas d’água em funcionamento sendo oito no Anhangabaú, três no Tribunal de Justiça, três no Ayrton Senna, três no Jânio Quadros e três na passagem subterrânea Zerbini. Em que pese a existência desse aparato tecnológico, não é incomum a ocorrência de enchentes e engarrafamentos no interior desses objetos, quando as falhas de racionalidade, técnica ou política, inerentes aos projetos são externalizadas para o conjunto da sociedade em forma de custos indiretos.14 Além dos já aludidos existem, distribuídos do centro para o vetor sudoeste da cidade, os túneis Anhangabaú, Maria Maluf, Zerbini, Tom Jobim, São Gabriel, Complexo Viário Escola de Engenharia Mackenzie, Ligação Leste- Oeste, Av. Paulista – Dr. Arnaldo, Av. Paulista, perfazendo um total de 18 km de vias subterrâneas (ver tabela 2.7).