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Operações Urbanas Em Andamento na Cidade de São Paulo

NOVOS TIPOS “PUROS” DE DOMINAÇÃO ORGANIZADA DA METRÓPOLE

PMSP 60 Ação Centro

5.3 Operações Urbanas Em Andamento na Cidade de São Paulo

Fonte: PMSP

Outro atributo importante dessa estratégia é a apropriação, por meio do Relatório de Impacto Ambiental, da definição legítima da noção de sustentabilidade, uma vez que o relatório legaliza, codifica e universaliza os termos da proteção ambiental, “da qualidade de vida para as presentes e futuras gerações” emanados dos agentes hegemônicos no processo de produção de determinada operação urbana. Nesse sentido, o EIA/RIMA é um instrumento de violência simbólica mobilizado por frações de classe contra aqueles que ocupam posição antagônica no campo de produção. Tal violência é exercida com o reinvestimento do capital simbólico acumulado em outras lutas, sobretudo na forma de capital jurídico. Observe-se que uma das táticas vitais dessa luta é a transposição das representações construídas no campo urbanístico para o campo jurídico na forma de capital simbólico codificado. Assim, é enfatizada a conformidade das intervenções com a legislação vigente no Brasil, inclusive com o artigo 225 da CF que estabelece:

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todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Desse modo, a reificação da “cidade-mercado”, ou seja, sua materialização no espaço como um parque de objetos, efetiva uma reforma urbana real, espécie de dominação racional com relação a fins, comandada pelo capital sob a coordenação de agentes econômicos. Pela conversão e reconversão de capitais, os fundamentos mercadológicos da cidade agregam o poder normativo do Estado e a capacidade que este tem de universalizar interesses particulares, bem como de impor a ordem simbólica necessária à criação de objetos coerentes com o modelo de realidade estruturado pelas categorias do mercado. Chegar-se-ia a um consenso sobre o dever-ser da metrópole nos termos colocados pelas instâncias econômicas que, em seu paroxismo, é aceita e legitimada como determinante. Recorrendo-se a Baudrillard (1996:43), “todos estão de acordo com a ”instância determinante” do econômico, ela se torna “obscena”. É uma provocação. O capital já não vai buscar seus álibis na natureza, em Deus ou na moral, porém, diretamente na economia política”.

À percepção do consumidor de espaço, a coleção de objetos assim produzida se apresenta com a coerência de uma cadeia, que confere à série de objetos singulares um sentido de organização, de uma totalidade indissociável. Avenidas, viadutos, shopings centers, condomínios, parques, praças, museus, edifícios, são agora parte de uma fantástica vitrine urbana de objetos interconectados que se significam um ao outro, como superobjeto de maior complexidade, que arrasta o consumidor pelo espaço-tempo da “cidade- mercado”. Voltando a Baudrillard (2005:17), pode-se dizer que o caos e a desordem aparente da “cidade-mercado” simulam a indefinição nas decisões de consumo, orientando o consumidor-usuário e seu impulso de compra através da cadeia de objetos e serviços, encantando-o, e levando-o, dentro da própria lógica, até ao máximo investimento e aos limites do respectivo potencial econômico.

Desse modo, as relações sociais na metrópole passam a ser mediatizadas pelos vínculos que cada indivíduo possa estabelecer com o parque de objetos oferecidos, de acordo com o potencial de consumo de cada um. Ao cidadão consumidor é dada a possibilidade de escolha na montagem de sua cesta de consumo. Ele pode, por exemplo, decidir se irá pela avenida A e pelo túnel B, passando pelo viaduto C. O que não lhe é dado é o poder de decidir quais túneis, avenidas ou viadutos existirão ou deixarão de existir, sendo essa combinação racional de objetos, resultado da reificação de modelos

sociocognitivos como dominação organizada. Essa dominação é tão mais eficaz e abrangente quanto for invisível, desconhecida e escamoteada pela ideologia da soberania do consumidor, pois essa “soberania” está condicionada à aceitação prévia das regras da “cidade-mercado”. Reside aí a ficácia simbólica desse modelo de cidade em pacificar, em conduzir os dominados a aceitarem participar do projeto de sua própria dominação, pois que toda a manifestação de sua soberania - quer pelo voto, quer pelo talão de cheques – é informação codificada que se presta a estruturar ainda mais a vigilância e o controle sobre a cadeia de objetos que referencia seus vínculos sociais e sua “livre escolha”.

Serviços públicos como mercadoria

Do mesmo modo que o espaço físico, os serviços públicos urbanos também assumem a forma mercadoria e concorrem para o estabelecimento das hierarquias socioespaciais na medida de sua materialização, no território, na forma de objetos e meios de gestão. Corrobora essa afirmativa, no âmbito muncipal, a implementação do Plano de Atendimento à Saúde do Município de São Paulo – PAS, durante as administrações Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pita (1997-2001).

Lançado em 17 de janeiro de 1995 nos moldes de um plano privado de saúde, o PAS desconhecia o modelo de assistência à saúde implantado com a Constituição Federaç de 1988, o Sistema Único de Saúde, considerado “muito bom na teoria, mas que não funciona na prática” conforme declarou o secretário municipal da saúde Roberto Richter. Apesar da oposição de sindicatos de trabalhadores vinculados à questão da saúde, tradicionalmente de esquerda em sua maioria, e, por isso, de oposição à gestão Maluf, o PAS foi implantado com grande alarde, como um sistema eficiente do ponto de vista gerencial, na medida em que terceirizava a gestão dos recursos públicos, entregues às cooperativas de profissionais e empreendedores do setor saúde, as Cooperpas (Figueiredo, Lamounier; 1997:198-199).

Do ponto de vista organizativo, o sistema previa um Conselho de Gestão partilhada composto por 5 representantes do poder público, 2 das cooperativas de nível superior, 1 das cooperativas de nível médio e 1 representante dos usuários. A ele cabia discutir temas dos mais variados, envolvendo ampliação de hospitais, construção de novas instalações e os rumos da aplicação das verbas da Prefeitura, calculadas na base de 10 reais por paciente atendido (Figueiredo, Lamounier; 1997: 199).

A oposição da sociedade civil e dos funcionários públicos ao sistema continuava a ser percebida como mero inconveniente, que só poderia prejudicar o próprio servidor, na medida em que este não aderisse à nova sistemática (Figueiredo, Lamounier; 1997:200):

os médicos e funcionários podem optar ou não pelo novo sistema. O inconveniente da recusa é que a Prefeitura pode contratar profissionais de fora do quadro da administração para preencher as vagas nas novas cooperativas e transferir aqueles que preferiram o sistema antigo para locais onde não exista o PAS. Geralmente distantes do local de residência e sujeitos a sucessivas transferências, uma vez que no futuro as cooperativas serão a regra e não a exceção.

A utopia de que as regras do livre mercado aplicadas ao setor simplesmente superaria todos os problemas seculares do atendimento à saúde era patente na explicação oferecida pelo Prefeito(Figueiredo, Lamounier; 1997:201):

Nós desmontamos uma verdadeira máfia da saúde. Vínhamos gastando uma soma muito grande de dinheiro...enquanto os hospitais eram delapidados, para não dizer assaltados. Agora vamos gastar muito menos e atender mais pessoas. Roubavam-se remédios, superfaturavam-se equipamentos, os médicos faltavam freqüentemente ao trabalho e conseguiam que seus colegas abonassem faltas. Era comum num fim de semana metade dos plantonistas simplesmente não aparecerem [...] Com o PAS a corrupção acabou. Não é mais como no passado onde as faturas chegavam e eram pagas, mas os remédios nunca apareciam para serem distribuídos. Tudo porque quem compra os remédios não é mais a prefeitura. São as cooperativas.

Em que pese sua larga projeção sobre os governos locais, não se deve considerar que o programa do Banco Mundial para as cidades seja hegemônico em todos os aspectos da ordem urbana. Não obstante o peso financeiro do Banco e sua forte influência doutrinária e ideológica, cujos ditames contam, para a sua propagação, com a diligência de intelectuais, políticos, burocratas e consultores idealistas ou interessados, nem todos os países ou autoridades locais são igualmente influenciáveis ou aderem com a mesma intensidade à doutrina urbana por ele proposta.

Isto se deve a que, a par de expressarem uma mentalidade e um ethos propriamente econômico e mesmo bancário, direcionado a fins, as instituições globais não constituem um ator homogêneo. Outras agências multilaterais conservam variados graus de autonomia com relação à doutrina do Banco e à noção econômico-contábil da sustentabilidade. No entanto, cumpre observar que o modelo “cidade-mercado” foi amplamente consagrado e difundido no âmbito da Habitat II por intermédio do trabalho de consultorias

internacionais, a exemplo dos apresentados pelos consultores Jordi Borja e Manuel Castells (Compans, 2004).