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PRODUÇÃO DO ESPAÇO E ORDEM SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Capítulo 2. Gênese, Estruturação e Legitimação do Campo Urbanístico na Região Metropolitana de São Paulo

2.7 Anéis viários da RMSP

Fonte: Governo do Estado. Secretaria de Transportes Metropoliano. PITU- 2020, 2000. 2.8 Rodoanel Mario Covas. Fonte: Governo do Estado de São Paulo, 2005.

Em sua forma objetivada, o capital urbanístico acumulado no campo se deposita no território erigindo a metrópole como um parque tão fascinante quanto grotesco de objetos que, quer pela aludida funcionalidade, quer pela própria tendência compulsiva dos agentes à fabricação seriada de megaestruturas rodoviárias como próteses para o direcionamento

do cotidiano da cidade, vão metamorfoseando a paisagem urbana. Note-se que a substituição da paisagem natural por objetos técnicos com localização e finalidades específicas não se dá ao acaso, mas é a transposição de um determinado modelo sociocognitivo de ordem produzido em um espaço social específico que, uma vez reificado, ou seja, fisicamente objetivado, concentra bens e serviços raros em certos lugares do espaço. As hierarquias e posições do espaço social são transpostas para o espaço físico e, assim, as características de desigualdade existente no espaço social assumem o caráter de exclusão física de certos agentes de determinadas áreas e lugares. Talvez essa dinâmica explique todo um sistema de objetos que visa assentar os perdedores da luta pelo espaço em territórios específicos, as chamadas zonas de relegação, áreas situadas no nível mais baixo da hierarquia socioespacial. Tal é o caso da coleção de conjuntos habitacionais da Companhia Municipal de Habitação - Cohab, conhecidos em determinados meios como “caixas de exclusão” erigidos nas bordas da metrópole para o assentamento da população de baixa renda transferida dos bairros centrais e das zonas de valorização imobiliária, a exemplo do Conjunto Habitacional Cidade Tiradentes.

Os moradores mais antigos contam que foram "jogados" no local no início dos anos 80, logo após a construção das primeiras habitações. A região fora ocupada por uma fazenda da época da escravidão, com senzala e pelourinho. Mais recentemente, parte da antiga sede da propriedade escravocrata foi destruída para a construção de um terminal de ônibus. Os primeiros habitantes do conjunto contam que as moradias e as ruas eram absolutamente iguais. Ninguém conhecia os vizinhos. Pessoas voltavam do trabalho e se perdiam, pois não tinham referências do caminho de casa. Não havia transporte, nem comércio, nem serviços (FSP, 20/09/2003).

Essa tendência à serialização de infra-estruturas e equipamentos cada vez maiores, insinua uma estratégia de ganhos associados à escala de ocupação e faz com que a idéia de metrópole passe a ser definida pela ordem de grandeza dos objetos, os quais parecem conferir sentido à própria ordem social. Termos como megacidade, megaempreendimento, megaestrutura vão compondo um novo vocabulário que exprime também a escala de dominação (ganhos de ocupação) dos agentes situados nas posições hierarquicamente superiores da estrutura do espaço social. Essa verdadeira estrutura física de dominação, à maneira da grande malha circulatória que surge da interligação de Metrô, trens urbanos e

ônibus (Fig. 2.11), fornece uma visão da metrópole como uma coleção de objetos inter- relacionados, produzidos por instituições e agentes específicos que impõem uma ordem urbana arbitrária, de modo a condicionar a própria vida cotidiana da metrópole, cuja eficácia está na razão direta de sua aceitação dóxica e mesmo da colaboração das populações dominadas. 2.9 Conjunto habitacional na região leste de São Paulo. Fonte: imagem gerada no software google earth em 12.2005 2.10 Complexo viário na confluência dos rios Tietê e Pinheiros. Fonte: imagem gerada no software google earth em 12.2005.

A serialidade não diz respeito apenas à reprodução dos objetos físicos, mas também às possibilidades de interação dos indivíduos no transcorrer da vida cotidiana. Os objetos tornam os percursos e itinerários da vida cotidiana uma seqüência de ocasiões rituais que têm lugar e tempo adequados. Giddens (2003:107), assinala que o fato de todos os agentes se movimentarem em contextos localizados, dentro de totalidades mais amplas, limita o conhecimento de outros contextos, dos quais não possuem uma vivência direta. Assim,

todos os atores sociais conhecem muito mais do que tiveram alguma vez a possibilidade de vivenciar diretamente, em virtude da sedimentação da experiência na linguagem. Mas os agentes cujas vidas se passam num único tipo de milieu podem ser mais ou menos ignorantes do que acontece em outros...Assim, aqueles que pertencem a grupos de elite podem conhecer muito pouco a respeito de como vivem outros em setores menos privilegiados e vice-versa.

Vale dizer que os fatores envolvidos na apropriação e consumo desses objetos condicionam as redes de interação formadas pelas trajetórias da vida diária, semanal, mensal e total dos indivíduos em suas interações recíprocas, até certo ponto captáveis pelas pesquisas de origem/destino realizadas pela Companhia do Metrô em São Paulo. É evidente que os indivíduos não são meros corpos dotados de mobilidade, mas seres intencionais com propósitos, atitudes e projetos. Mesmo assim, o itinerário da vida cotidiana de um indivíduo faz com que ele se acople sucessivamente a conjuntos de entidades procedentes dos cenários de interação. A rotinização das interações no âmbito de tais cenários sugere que a ordem sociourbana provém de um espaço social reificado, isto é, fisicamente realizado ou objetivado que, como assinala Bourdieu (1997:161):

se apresenta como a distribuição no espaço físico de diferentes espécies de bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes (em função de seu capital e também da distância física desses bens, que depende também de seu capital). É na relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espaço que se define o valor das diferentes regiões do espaço social reificado.

Ainda com relação à produção de objetos pelo obreirismo, queremos argumentar que, com ele, o processo de mimetização e assimilação de concepções urbanísticas consagradas em outros países passa a se dar de maneira mais seletiva e instrumental. Nesse sentido, o campo da produção passa por um processo de americanização tanto no que tange à disseminação de idéias e práticas como também às formas institucionais (Feldman, 2005). A prática do zoneamento como principal instrumento de controle do uso e ocupação do solo e a emergência do arquiteto como protagonista do planejamento urbano na figura do arquiteto-planejador, ampliam e consolidam um aparato institucional, um conjunto de saberes e práticas que transformam o espaço urbano em palco de experimentação de agentes que reivindicam o monopólio da definição legítima do dever-ser da metrópole.

2.11 RMSP