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PRODUÇÃO DO ESPAÇO E ORDEM SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Capítulo 2. Gênese, Estruturação e Legitimação do Campo Urbanístico na Região Metropolitana de São Paulo

2.4 RMSP Evolução da Mancha Urbana – 1881

Fonte: Emplasa, 2004

A esse respeito, uma primeira observação a ser feita é que, para muitos dos dominados, estar nessa condição não é uma questão de escolha racional, nem resultado de cooperação espontânea ou mesmo destino imposto por forças “sobrenaturais”. Essa situação decorre, antes de tudo, dos ajustamentos entre as aspirações subjetivas e as possibilidades objetivas colocadas (destituição material e exclusão institucional-cognitiva), condição essa que os induz à aceitação da definição de sua própria identidade pelos produtores simbólicos vinculados às instituições dominantes, aceita de maneira pré- reflexiva, como óbvia, mediante o efeito de desconhecimento que, como diz Bourdieu

o fato de reconhecer uma violência que se exerce precisamente na medida em que ela é desconhecida como violência; é o fato de aceitar esse conjunto de pressupostos fundamentais, pré-reflexivos, que os agentes sociais avalizam, pelo simples fato de tomar o mundo como óbvio, isto é, de achá-lo natural por que eles lhe aplicam as estruturas cognitivas que são originárias das próprias estruturas desse mundo. Por termos nascido num mundo social, aceitamos certo número de axiomas, que são óbvios e não requerem condicionamento. É por isso que a análise da aceitação dóxica do mundo, em razão da concordância imediata das estruturas objetivas e das estruturas cognitivas, é o verdadeiro fundamento de uma teoria realista da dominação e da política.

A destituição e a precariedade material, juntamente com uma espécie de espoliação simbólica de sua identidade - dado que as instituições produtoras dos esquemas de percepção, classificação e divisão são monopolizadas pelos dominantes - são os elementos propícios para a elaboração discursiva, por exemplo, da figura do pobre-carente, de seu “habitat natural” (periferia da metrópole) e sua concomitante vinculação subalterna à ordem instituída no processo de produção da metrópole moderna.

Pode-se afirmar que, ao terem a definição de sua identidade sujeita às classificações engendradas por instituições dominantes, os dominados aceitam também a cumplicidade objetiva com a modernização excludente como modelo sociocognitivo de realidade urbana, nos termos colocados pelo populismo, interface política do obreirismo modernizador com o poder administrativo. Nessas condições, o pobre-carente se transforma em um pequeno tocador-de-obras, quer como força de trabalho arregimentado pela grande indústria, quer no seu próprio canteiro de obras doméstico: a autoconstrução da moradia. Como numa imagem fractal, o espaço urbano é tomado de um mesmo padrão de intervenção que se reproduz em diferentes escalas territoriais e temporais.

Esse processo pode ser assim desvendado como a incorporação de esquemas classificatórios produzidos no interior de um campo de produção específico, reconhecidos pelos agentes, configurando desse modo uma ordem simbólica legitimada. É nesse registro que os agentes do campo urbanístico, via o controle do processo de produção do espaço, exercem a mediação entre as classes na produção da ordem social e, mesmo não sendo a própria classe dominante, alcançam um lugar distinto na divisão do trabalho de dominação organizada da metrópole.

Mas ainda assim a cumplicidade objetiva dos dominados e a adesão das classes populares ao projeto de sua própria espoliação permanecem como traços de conduta de difícil explicação, pois ela não pode ser admitida como uma escolha racional. Uma via plausível seria fundamentar a explicação na noção de habitus, ainda na acepção de Bourdieu (apud Bonnewitz 2003:87-88):

o habitus é aquilo que se deve supor para explicar o fato de que – sem ser propriamente racionais , isto é, sem organizar a sua conduta de modo a maximizar o rendimento dos meios de que dispõem, ou mais simplesmente, sem calcular, sem explicitar seus fins e sem combinar explicitamente os meios de que dispõem para atingi-los, em resumo, sem fazer combinações, planos, projetos – os agentes sociais são razoáveis, não são loucos, não cometem loucuras: os agentes sociais são muito menos extravagantes ou iludidos do que tenderíamos a acreditar espontaneamente, e isso precisamente porque eles interiorizaram, ao fim de um longo e complexo processo de condicionamento, as chances objetivas que lhes são oferecidas e porque eles sabem ler o futuro que lhes convém, que é feito para eles e para o qual eles são feitos (por oposição àquilo do qual se diz “isso não é para nós”). A dialética das esperanças subjetivas e das chances objetivas está sempre em funcionamento no mundo social e, na maior parte do tempo, ela tende a garantir o ajuste das primeiras às segundas”.

Com a adesão “espontânea” das classes populares ao modelo obreirista a partir das condições objetivas e do ajustamento das expectativas às chances, surgem milhares de tocadores-de-obra, de micro-empreiteiros e de pequenos agentes imobiliários que, a rigor, compartilham o mesmo habitus, como capital urbanístico incorporado. Imersos na mesma situação de classe e em condição socioterritorial idêntica, vale dizer, ocupando a mesma posição na hierarquia socioespacial, o conjunto de agentes subalternos transforma a periferia (categoria cunhada por agentes especializados em instituições específicas controladas pela classe dominante e incorporado pelos dominados como capital urbanístico na luta cognitiva pela classificação e hierarquização do espaço11) na modernidade possível aos destituídos.

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Antes do aparecimento do termo perifería, as regiões da cidade passaram por outras classificações e divisões. Primeiramente a cidade era dividida em área urbana e área rural, depois veio a divisão em região central, urbana, suburbana e rural. A esse respeito ver Feldman, 2005.

Por essa via pode-se compreender por que a aceitação pelos dominados de um modelo de realidade injusto, calcado na exploração dentro da fábrica, na espoliação urbana, na expropriação simbólica da sua identidade, enfim, no confinamento dos corpos a uma subcidadania que transforma o desfavorecido em subclasse; se torna não só possível como duradoura. Enquanto espaço social estruturado de relações objetivas, o campo urbanístico, por meio dos modelos sociocognitivos de realidade urbana, exerce sobre os agentes especializados, e com maior eficácia sobre os leigos, isto é, as classes populares, uma ação pedagógica multiforme, que tem como efeito fazê-las incorporar os saberes e as práticas indispensáveis a uma inserção “adequada” na ordem preconizada. 12

Na medida em que exerce uma socialização secundária, uma espécie de condicionamento dos corpos e das mentes; o campo, por meio das aquisições efetuadas pelos agentes, também proporciona uma sensação de familiaridade, e faz com que o modelo de realidade urbana imposto arbitrariamente por classes ou frações de classe, pareça natural e auto-evidente: um senso comum esclarecido. Assim, os esquemas classificatórios que mediatizam a percepção da ordem urbana (centro/periferia; excluído/incluído; rico/pobre, favela/bairro, aluguel/casa própria) se tornam comuns ao conjunto dos agentes inseridos nessa mesma ordem e viabilizam o acordo sobre o dever-ser da metrópole, mesmo entre agentes situados em posições opostas no campo, ou em situação antagônica na sociedade de classes.

Dessa ótica, pode-se compreender, por exemplo, como o “sonho da casa própria” fornece às classes populares a energia utópica que faz mobilizar uma rede de agentes no âmbito do projeto da autoconstrução. Assim, por meio dessa cumplicidade objetiva, as classes populares tornam-se sujeitos instituintes do modelo periférico de crescimento urbano, e não apenas uma vítima dos desacertos da modernidade e da ganância do capital imobiliário. No contexto do obreirismo modernizador, deve-se considerar o modelo centro/periferia como uma ordem simbólica e um modo de produção de objetos que viabiliza o acordo entre dominantes e dominados com a intermediação do Estado, ainda mais porque, como observa Kowarick (2000:62):

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Nesse aspecto vale lembrar que a relação entre o habitus e o campo é antes de tudo uma relação de condicionamento...mas é também uma relação de conhecimento ou de construção cognitiva: o habitus contribui para constituir o campo como mundo significante, dotado de sentido e de valor, no qual vale a pena investir energia (Bourdieu, P. Wacquant, L. apud Bonnewitz, P. 2003:85)

se o Estado favorece por intermédio de seus investimentos a acumulação do capital, que visa maximizar a extração do excedente, bem como, na trama concreta da luta pelos benefícios socioeconômicos, acaba por favorecer as camadas mais abastadas, as classes trabalhadoras não permanecem totalmente excluídas de melhorias em relação aos bens de consumo coletivo. De um lado, por que em certa medida é preciso que a força de trabalho se reproduza para o capital, o que supõe o acesso, mesmo que precário e residual, a certos serviços que são criados pelos vários escalões de governo. Por outro lado, por que o Estado precisa aparecer como “agente ecumênico”, que zela pelos interesses de todos.

Então, o que ocorre de perverso não é propriamente a exclusão mecânica e automática das classes populares dos benefícios da urbanização, mas um processo subjacente muito mais sutil, ou seja, a imposição de uma ordem simbólica operacionalizada em práticas espoliativas - a favelização, o encortiçamento, o trabalho informal na autoconstrução, o transporte precário, a educação que não confere valor, a assistência médica moribunda - que, na medida em que desonera o orçamento público, geram um excedente que pode ser direcionado à produção estatal de obras viárias e de infra-estrutura em áreas seletivas. Assim, o fundo público é utilizado na geração de um parque de objetos técnicos nos chamados bairros nobres situados no eixo centro-sudoeste da cidade, como lugares de distinção situados no topo da hierarquia socioespacial e destinados à apropriação e consumo da elite social e política, inclusive as elites do campo urbanístico.

Ainda com base nos escritos de L. Kowarick, alerta-se para o fato de que o padrão periférico não significa ausência de planejamento como muitas vezes se diz, mas responde a uma estratégia de máxima acumulação capitalista. Viabiliza o assentamento de amplos contingentes populacionais em loteamentos destituídos de tudo por meio do sobretrabalho na autoconstrução, e reduz ao mínimo a necessidade de investimentos em moradia e infra- estrutrura, seja pelo setor público, seja pelo setor privado. De resto, as redes de relações em torno de melhorias urbanas em áreas precárias é o espaço social onde se concretizam as práticas do favor e da promessa e a elaboração do conformismo lógico e moral entre as classes. Ao tempo em que obsta a possibilidade de cidadania e de direitos, a política urbana se converte em práticas de difusão da ideologia e intencionalidade dos idealizadores do projeto de modernização. Melhorias urbanas pontuais se tornam estratégias integrativas em relação às classes populares, utilizadas como margem de manobra para canalizar e amainar

as expectativas de segmentos drasticamente pauperizados. Nesse sentido, as políticas urbanas

procuram gerar uma forma de hegemonia que retire das classes populares a sua iniciativa e autonomia, atomizando suas reivindicações a fim de manter o controle sobre a cidade e seus moradores: é preciso, na ótica dominante, fazer com que a obra pública apareça como uma realização do Estado, que, se assim o conseguir, realiza a fundamental tarefa de cooptação, diluindo e canalizando os conflitos das massas urbanas, que permanecem numa ilusão de participar e uma cidadania constantemente prometida e escamoteada (idem, p. 63).

A naturalização da periferia como o lugar do trabalhador precário e do pobre- carente, permite o aparecimento e a agregação ao modelo de novas figuras, ampliando o conjunto de agentes e de interesses presentes no campo. Grileiros, invasores de lotes, burocratas, políticos demagogos e populistas se vinculam à causa dos excluídos da metrópole, como estratégia de prosperidade no “caos” urbano.

A ilegalidade consentida – o desconhecimento pelo poder público do parcelamento e da ocupação irregular do solo conhecido por grilagem – transforma-se em instrumento de intervenção urbana, como conhecimento prático voltado para o assentamento precário das classes populares, e também para a venda da legalidade por intermediários e operadores do processo de produção do espaço. Essa prática levou a que em São Paulo a ocupação irregular do solo chegasse a ser maior do que o território ocupado de acordo com as normas urbanísticas formais elaboradas pelo poder público. Seu declínio se iniciará com o esgotamento do estoque de terras disponíveis para incorporação ao sistema, não sem antes levar à ocupação indiscriminada das áreas de mananciais e de fundos de vale consubstanciando o que passou a ser conhecido como urbanismo de risco.

Por outro lado, o uso do excedente de modo arbitrário na produção de espaços seletivos e de modalidades de infra-estrutura e serviços urbanos capazes de encarnar a modernidade urbanística, ao menos em seus aspectos estéticos e arquitetônicos, proporciona a modernização efetiva de uma parte da cidade. Essa parte, mesmo sendo apropriada por uma classe, assume o caráter de interesse geral de modernização da sociedade. A universalização da ideologia da modernização torna-se assim o motor, o principal gerador da coleção de objetos característicos do obreirismo modernizador.

2.3 Transposição do Modelo para o Território como um Parque de Objetos