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NOVOS TIPOS “PUROS” DE DOMINAÇÃO ORGANIZADA DA METRÓPOLE

Capítulo 4. O “Direito à Cidade” como Dominação Organizada da Metrópole com relação a valores

4.3 Manifesto dos Movimentos dos Sem-Teto do

4.1.4 Consagração de Modelos e Melhores Práticas Urbanas

A dinâmica de implementação de práticas socioespaciais vinculados ao “direito à cidade” é outro aspecto relevante do processo e institucionalização do modelo. A criação do Programa de Melhores Práticas e Liderança Local no âmbito da Habitat II, por exemplo, possibilitou a consagração de práticas e de experiências locais promovidos por governos locais brasileiros identificados com os princípios do “direito à cidade” , dentre elas o orçamento participativo, de grande repercussão internacional.

A apresentação, na Habitat II, de práticas brasileiras bem-sucedidas em gestão urbana expressava o sistema de valores do “direito à cidade” alicerçado nos conceitos de descentralização, participação popular, parceria com organizações não-governamentais e o respeito ao meio ambiente. Nesse aspecto, um dos técnicos e políticos mais identificados com esse ideário, o arquiteto e vereador Nabil Bonduki (2000:26), oriundo do governo de Luiza Erundina na cidade de São Paulo enfatiza o fortalecimento de uma nova postura a qual denomina de “ambiental participativa” destacando nela as seguintes características:

gestão descentralizada e democrática, com ênfase no papel do poder local e na articulação das políticas setoriais; criação de canais institucionais de participação popular como conselhos de gestão urbana, fórum de habitação e participação dos cidadãos nas decisões sobre as prioridades de governo, com a elaboração do orçamento participativo e acompanhamento da execução orçamentária; inversão de prioridades para garantir o direito à habitação e à cidade; parceria entre poder público e organizações não-governamentais para o desenvolvimento de programas e projetos, por meio do estímulo a processos de autogestão e de co-gestão em produção do habitat e de geração de emprego e renda; busca de barateamento da produção habitacional por novas formas de gestão, produção e pelo financiamento direto para o usuário final e reconhecimento da cidade real, por meio de regularização fundiária e urbanização das áreas ocupadas espontaneamente; compatibilização entre preservação do meio ambiente e implantação de projetos urbanos, produção habitacional e recuperação ambiental de áreas de preservação já ocupadas; busca de reaproveitamento de dejetos urbanos, pela reciclagem, visando à preservação ambiental e sua reutilização em programas públicos; prioridade para o transporte coletivo e a segurança no tráfego.

Dentre as dimensões apontadas vamos nos deter, pela sua importância, no processo de produção dos objetos vinculados à problemática da habitação de interesse social e, assim, melhor caracterizar o sistema de valores do “direito à cidade”. Uma das práticas urbanas brasileiras consideradas pela então Secretaria Nacional de Política Urbana do Ministério do Orçamento e Planejamento como bem-sucedidas para a apresentação no Habitat II foi o Programa de Produção de Habitação por Mutirão e Autogestão desenvolvido pela Prefeitura durante a gestão Luiza Erundina. O programa era apresentado como uma solução para a produção de moradias de alta qualidade a um custo baixo, se comparado ao de outros processos de edificação. Além disso, possibilitava a participação popular na gestão das políticas sociais.

Bonduki (2000:35) mostra que os mutirões, como eram conhecidos, procurava se diferenciar do sistema de autoconstrução uma vez que este era identificado como mecanismo de utilização de força de trabalho gratuita dos trabalhadores na produção de moradia. A autogestão na moradia era um processo de gestão do empreendimento habitacional em que os futuros moradores, organizados em associações ou cooperativas, administravam a construção das unidades habitacionais em todos os seus aspectos, a partir de regras e diretrizes estabelecidas pelo poder público, quando este participava do financiamento do empreendimento. Nesse sistema, a comunidade, por meio de entidades representativas, gerenciava o processo produtivo da construção das unidades habitacionais e a administração municipal implantava a infra-estrutura.

Embora permaneça a questão, não superada, da exploração do trabalho dos mutirantes na produção, uma vez que não se consegue quebrar as hierarquias resultantes da distribuição desigual dos diferentes tipos de capital (social, cultural, econômico) entre ongs, assessorias, políticos, burocratas, movimentos sociais e demais agentes envolvidos; deve-se admitir que, por meio dos mutirões, criava-se um aprendizado coletivo que induzia à superação do isolamento e do individualismo da autoconstrução e ampliava o capital social, institucional e cognitivo das classes populares que podia ser, e freqüentemente era, utilizado para pressionar e obter maior responsabilização do poder público na produção da moradia destinada a essas classes.

Outro ponto levantado por Bonduki (idem, idem) é a divisão do trabalho e do poder no processo de produção da moradia. Quando a administração pública realizava convênio com uma cooperativa, ela efetivamente transferia uma parcela de poder à sociedade civil

organizada. Deixava de ser a promotora, passando a exercer apenas um papel normatizador, fiscalizador e de controle. Por outro lado, a contratação de assessorias técnicas pelas cooperativas caracterizavam a terceirização de atividades, provocando o esvaziamento das áreas da administração responsáveis por essas atividades e reforçando a hierarquia entre os agentes. Este último aspecto denota que o influxo das regras de mercado e da implementação da utopia do estado mínimo nas práticas urbanas, ganhava força mesmo quando se tratasse de prática tida como autêntica manifestação do sistema de valores do “direito à cidade”. Esse ponto é importante e será abordado com maior profundidade no capítulo seguinte.

Por hora, cumpre enfatizar que, nos seus primórdios, o “direito à cidade” constitui sua identidade em oposição à representação e às intervenções do obreirismo modernizador. Nesse processo, a questão da produção da habitação de interesse social se constitui em um dos mais importantes móveis de luta do campo e, por isso, oferece uma oportunidade para a análise comparativa de soluções alternativas que competem pelo monopólio da definição legitima da produção de moradia para as camadas populares. Um móvel de lutas é um problema do campo não solucionado satisfatoriamente por qualquer dos agentes e, por isso, sua definição legítima coloca em jogo grandes quantidades de capital urbanístico, com o qual é possível exercer a violência simbólica nas lutas pela hegemonia no campo e no âmbito da sociedade em geral.

Esse mecanismo explica por que mesmo os agentes pouco identificados com o ideário do “direito à cidade” logo se lançam na tarefa de oferecer produtos simbólicos visando solucionar o problema da habitação de interesse social. Tal é o caso do Programa Cingapura de verticalização de favelas empreendido pela gestão Paulo Maluf.

Tendo sido difundido mundialmente como modelo de país no enfrentamento do problema da favela, Cingapura, ex-colônia britânica, tinha graves problemas de favelização generalizada após a II Grande Guerra. A experiência bem-sucedida inspirou o Prefeito Paulo Maluf a importar o programa de desfavelização ali aplicado. Assim, foi formulado e implantado em São Paulo o Programa Cingapura. Com recursos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento foram construídos, no mesmo local da favela, prédios de até 11 andares com elevador e infra-estrutura urbana. No jargão dos urbanistas esse processo é denominado de verticalização em diferenciação à técnica de urbanização de favelas. Figueiredo e Lamounier (1997:191) assinalam que o próprio prefeito costumava

reproduzir um discurso no qual explanava o que entendia ser as três principais características do projeto:

Ninguém é removido da favela. As famílias que ali moram são provisoriamente abrigadas em alojamentos no local, enquanto os barracos são derrubados para dar lugar a prédios de apartamentos com toda a infra-estrutura destinada a transformar a antiga favela num bairro igual a qualquer outro. Embora a mão-de-obra dos moradores da favela seja aproveitada durante a construção, o padrão tecnológico aplicado por empresas especializadas evita desperdício de material e reduz o tempo da obra, de modo eu um edifício de cinco andares fica pronto no tempo recorde de 120 dias. Não há paternalismos. As prestações são simbólicas e os prazos de pagamento dilatados, mas cada família deve adquirir o seu imóvel e nele permanecer, o que impede a criação de um mercado paralelo entre famílias de baixa renda.

Os autores lembram que, por exigência do Banco Mundial, a ação da prefeitura se prolongava no período pós-ocupação na “orientação e assistência” aos moradores. Essa assistência incluía tópicos educativos como orientar as pessoas a não “fazerem sujeira, não jogar lixo nem secar roupa nas janelas, pagar as taxas de água e luz, conservar a moradia, os banheiros e os tanques” etc (Figueiredo; Lamounier; 1997:192).

O adensamento de favelas se justificava pela realidade objetiva enfrentada pela população mais pobre na metrópole, mormente os imigrantes provenientes de áreas ainda mais carentes da região nordeste. Para esse grupo social a realidade que se apresentava era a inviabilidade da aquisição do lote urbano em função dos preços elevados e dos baixos salários; a perenidade de sua inserção na favela devido à consolidação desta como um local fixo e definitivo de moradia e não mais um lugar de espera de um lote e, logo, a urbanização da favela como única possibilidade de acesso a serviços públicos básicos como água e luz.

Como opositor contundente do modelo, o PT acusava a gestão malufista de não ouvir a comunidade envolvida e de implementar o Cingapura como solução única e mais cara que a habitação produzida em sistema de mutirão. O partido também criticava o fato de o modelo deixar de lado a população em cortiço, a população sem-teto e a população necessitada de novas moradias. As forças que se opunham ao projeto defendiam que a

solução era conciliar a verticalização, a construção de novas unidades e a retomada do sistema de mutirão como uma alternativa global para o problema (Figueiredo; Lamounier; 1997:195).

Desse prisma, o que faltava era uma política habitacional na qual o modelo Cingapura poderia até ser utilizado em alguns casos onde não houvesse outra solução. Essa solução combinada de várias modalidades acabou sendo adotada na gestão Marta Suplicy como parte do esforço de produção de moradia de interesse social no âmbito do processo de “revitalização” do Centro de São Paulo. O objetivo era estabelecer um equilíbrio entre a mercantilização do espaço pelos agentes do mercado imobiliário, com práticas de produção de habitação de interesse social e, desse modo, contra-referenciar o processo de gentrificação característico do processo de “revitalização” do centro das metrópoles. O aprendizado e o rápido compartilhamento de práticas é um dos aspectos notáveis da luta política e cognitiva travada por especialistas da produção simbólica no interior do campo. Assim é que no Programa Morar no Centro acham-se combinados de modo coerente, todos os modelos de “habitação de interesse social” como capital institucional-cognitivo acumulado e mobilizado na produção de objetos diferenciados para, ao tempo em que atrai novos investimentos, evitar o processo de expulsão da população mais pobre do centro da cidade em função da valorização imobiliária decorrente desses mesmos investimentos.

Essa característica do funcionamento do campo está relacionada à constituição de redes sociocognitivas envolvendo extensões cada vez maiores do espaço-tempo, e se constitui em fonte importante de inovação das práticas. Na experiência da revitalização do Centro na gestão Marta Suplicy ela proporciona a combinação de práticas como a verticalização de favelas e o saneamento ambiental (Parque do Gato); reforma ou reciclagem de edifícios (Edifício São Vito, Riskalah Jorge), e reabilitação do patrimônio e melhoria das condições habitacionais em cortiços. Bem ou mal, são colocadas em movimento novas modalidades de produção e apropriação do espaço pelas classes populares que por, alguma razão, desejam permanecer no centro da cidade (ver capítulo 7.2). Assim, a prática da locação social permite a provisão direta de moradias a partir da reforma de prédios deteriorados; o arrendamento residencial disponibiliza imóveis com aluguéis de valor abaixo dos de mercado com opção de compra do imóvel pelo arrendatário; a bolsa aluguel subsidia famílias com parte do valor do aluguel pago pela

família; a moradia transitória beneficia famílias provenientes de áreas de risco e que estão no aguardo de outras modalidades de habitação.

O quadro institucional que se forma em torno de um programa com essas características aponta para uma quebra de monopólio da definição legítima do dever-ser do Centro da metrópole pelo obreirismo e pelas forças de mercado, e confronta o processo de gentrificação característico das ações de revitalização urbana que sempre é acompanhada de uma dinâmica de valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos. Nessa dinâmica, os movimentos sociais adquirem um papel institucional específico: o de colocar o seu conhecimento de tempo e circunstâncias na construção de uma ordem urbana mais conforme a seus interesses, apropriando-se do território e de parte dos recursos destinados aos projetos, inclusive daqueles provenientes de agências internacionais.

4.5 Parque do Gato, ainda com a favela às margens do Rio Tamanduateí, e