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PRODUÇÃO DO ESPAÇO E ORDEM SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Capítulo 1. O Problema da Produção do Espaço e da Ordem Social na Metrópole: Uma Perspectiva de Análise.

1.2 Mancha Urbana da Região Metropolitana de São Paulo

Fonte: MIRANDA, E. E. de; COUTINHO, A. C. (Coord.). Brasil Visto do Espaço. Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite, 2004. Disponível em:

<http://www.cdbrasil.cnpm.embrapa.br>. Acesso em: 26 jul. 2004.

Adiante-se, porém, que, como observou Arantes (2001) o esgotamento das energias utópicas do obreirismo se dá na razão direta de sua percepção como modelo potencializador dos riscos, dos perigos e da degradação da vida urbana, além de estar associado ao colapso do projeto modernizador brasileiro. Nessa medida, torna-se cada vez mais um modelo com déficit de sentido e, por isso, inadequado para estabelecer a coalizão e o consenso entre os grupos dominantes interessados na produção do espaço e no ordenamento socioterritorial da metrópole e, mais além, para o convencimento, a aceitação, a cooperação e a cumplicidade objetiva dos dominados, se configurando como um modo ilegítimo de dominação organizada da metrópole. Essa crise de legitimação, de proporções irreversíveis nas condições estruturais da urbanização e do capitalismo global, abre um amplo espectro de lutas pela definição legítima do dever-ser da metrópole.

É nesse vácuo de significação e lapso de sentido que se observa com maior clareza a existência de um espaço social de confronto entre pontos de vista, um campo de disputas

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entre instituições e agentes portadores de modelos alternativos aplicáveis ao controle do processo de produção, apropriação e consumo do espaço. Agentes que, ao reivindicarem uma posição distinta na divisão do trabalho de dominação organizada da metrópole, estabelecem coalizões e conflitos em torno de modelos de realidade urbana que reivindicam se tornar realidade, engendrando uma subversão na ordem simbólica do campo. Para os fins desse estudo, agruparemos os vários modelos sociocognitivos emergentes em dois principais: o modelo da reforma urbana ou “direito à cidade” e o modelo “cidade-mercado”. A opção por essa classificação nos é de utilidade, pois, de certo modo, esses modelos refletem as várias concepções e dilemas presentes no debate da questão urbana contemporânea, e são passíveis de serem reconstituídos como “tipos puros” (cf. Weber) de dominação legítima da metrópole, o que será feito na segunda parte deste estudo.

Por outro lado, o processo de formulação e implementação da política urbana como um conjunto de conhecimentos práticos mobilizados pelo Estado para a produção do espaço aponta para a existência de condutas regulares e, até certo ponto, previsíveis, que se desenvolvem no interior de instituições específicas, em rituais de legitimação e consagração, levadas a cabo por um quadro de profissionais treinados e dotados de uma competência estrita para a elaboração de instrumentos voltados para a dominação e controle legítimo da produção do espaço. Tais ritos de instituição - que podem ser desde a elaboração de um plano diretor municipal até a realização de conferências globais no âmbito da ONU, passando por conferências de cidades, feiras e congressos – envolvem, em sua objetivação, agentes diversos, dentro e fora do Estado, especialistas na produção de bens materiais e simbólicos relativos à ordem urbana, cujo âmbito de atuação vai do nível local ao global, passando pelo Estado-nação, compondo um complexo espaço social, ou, como aqui será referido, o campo urbanístico.

Como preâmbulo a essa problemática assinale-se que os embates em torno da constituição da ordem social na metrópole delineiam a possibilidade de definição do urbano com base na instauração de uma normatividade explícita, um consenso possível negociado e aceito pelos agentes e disciplinado por normas de conduta sancionadas pelo Estado. A começar pela aceitação da idéia de democracia como valor universal, ancorada em uma sociedade civil mobilizada em torno da questão urbana, cujo marco institucional é dado pela inscrição, na Constituição Federal de 1988, do capítulo sobre a política urbana.

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A convicção de que o processo democrático e a gestão participativa do processo de produção do espaço podem, por si, levar a uma ordem urbana socialmente justa e ambientalmente sustentável é compartilhada por uma parte expressiva dos agentes do campo, mormente aqueles agrupados no Fórum Nacional de Reforma Urbana e em outros agrupamentos de extração popular e democrática, tipificando um modelo sociocognitivo de metrópole aqui denominado “direito a cidade”. Este modelo reveste, pois, a noção de metrópole de um caráter de legalidade, em razão da crença na validade de um estatuto legal e de uma competência positiva, fundada em regras racionalmente estabelecidas para as quais se pressupõe obediência. Chegar-se-ia assim a um “Sistema Nacional de Cidades” coordenado a partir de um órgão central, talvez o Ministério das Cidades, configurando, na tipologia weberiana, um modelo típico-ideal de dominação racional-legal com relação a valores na sua forma mais pura, a ser reconstituído no capítulo 4.

Por outro lado, o trabalho de imposição, por uma fração da classe de agentes analisada, da utopia do livre mercado como instituição auto-regulada vincula o processo de produção do espaço à lógica do sistema de preços, ou seja, à transformação da metrópole em algo semelhante a um empreendimento privado, no qual os bens, os serviços e o próprio território urbano são oferecidos como mercadoria, num mercado de cidadãos- consumidores. A gestão da cidade nos moldes de uma empresa agindo nos mercados globais se afigura como a escolha racional para a harmonização de interesses e alcance da sustentabilidade urbana. Desse ângulo, a ordem urbana emerge como o produto da mão invisível urbana, agindo no mercado de cidades, às quais competem pela atração de investimentos numa espécie de guerra de todos os lugares contra todos, bem como da concorrência entre cidadãos-consumidores pela apropriação e consumo do espaço e dos serviços urbanos.

Aqui, o Estado-nação e as instâncias federativas infranacionais – agora reduzidos à sua configuração mínima - surgem como elementos de coordenação das forças de mercado, no sentido de garantir as condições ótimas para a competição entre os agentes. A homologação e validação de determinada prática social é dada pelo próprio sucesso que essa prática obtenha no mercado. Chegar-se-ia, por essa ótica, ao que o economista F. Hayek (1960:160) - talvez o maior apologista do mercado como instituição auto-regulada - chamou de uma espécie de ordem social espontânea, que não pode ser estabelecida por uma organização central – o Estado em suas diversas instâncias - mas emerge como

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resultado da interação de indivíduos sujeitos apenas às leis que uniformemente se aplicam a todos eles, ou seja, as leis advindas do funcionamento de um mercado perfeito. Na perspectiva weberiana, teríamos aqui um tipo puro de dominação racional com relação a fins econômicos, cuja construção típico-ideal será feita no capítulo 5.

A evolução contraditória dessas possibilidades sociocognitivas no espaço-tempo da metrópole revela, por vezes, sinergia e complementaridade, mas também aponta para uma di-visão, uma cisão nas representações dos grupos dominantes quanto às formas de dominação e controle da metrópole. Ribeiro (2004:22-3) constata a existência de uma “tensão intelectual e ideológica organizada em dois pólos: a forma urbana democrática- redistributiva e o plano estratégico liberal-competitivo”. Segundo o autor:

O primeiro surge na década de 1980, a partir da tradução para a cidade da proposta da reforma social, tendo como diagnóstico a cidade como mecanismo de concentração de renda e de riqueza. Na sua formulação, teve forte influência o resultado das pesquisas urbanas dos anos 1979 e do início dos 1980 sobre as relações entre a dinâmica econômica e política de estruturação da grande cidade e os mecanismos de produção das desigualdades sociais. Já o pólo liberal-competitivo se inspira claramente em parte da literatura internacional [...] e sofre a influência das consultorias internacionais, não apenas dos organismos multilaterais mas dos novos especialistas de planos estratégicos.

Note-se que a forma urbana democrática redistributiva assinalada pelo autor corresponde ao que aqui tratamos por “direito à cidade”, enquanto a forma liberal competitiva é bastante próxima ao que denominamos de “cidade-mercado”. Esse cisma no campo de disputas, que é também um cisma no seio dos grupos dominantes quanto às formas de representação de cidade, fica mais evidente quando se observam os dilemas e paradoxos enfrentados tanto pela pesquisa social quanto pela ação governamental. Dentre eles vale ressaltar o de saber até que ponto a conexão da metrópole à rede urbana global como extensão da economia mundial, como um território globalizado, como uma “cidade- mercado” implicaria no distanciamento da possibilidade de alcance da universalização do “direito à cidade”. Ele nos induz a indagar sobre em que condições é possível a constituição de uma ordem urbana justa, democrática e sustentável nas metrópoles brasileiras conectadas à sociedade global?

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Aproximando-nos dessa problemática tendo como escopo a Metrópole de São Paulo, no contexto mais geral dado pelo uso intensivo das possibilidades oferecidas pela revolução tecnológica e pela globalização dos processos sociais, Silveira (2004:63), apoiada em Santos, observou que:

Diante das unicidades produtoras da globalização – a unicidade da técnica, da informação e do dinheiro - a Cidade de São Paulo, chamada a ser moderna a cada momento histórico, entra em crise – mais ou menos visível - por não poder, enquanto viabiliza as condições para a reprodução das novas manifestações do modo de produção, manter as mínimas condições de vida para a grande massa trabalhadora.

Outros tantos paradoxos emergem dessa cisão nas representações dominantes do urbano. Produzir infra-estrutura de telecomunicações e serviços especializados para corporações globais ou prover serviços básicos para a maioria da população excluída? Tomar decisões rápidas para acompanhar a velocidade dos fluxos dos mercados globais, cada vez mais próximos do tempo real, ou buscar consensos mais amplos, aprofundando processos de planejamento e gestão participativos, porém mais demorados, sobre como planejar espaços, gerenciar territórios e aplicar recursos públicos? Esses dilemas se tornam ainda mais enigmáticos quando se observa que, no decorrer da década de 1990, a RMSP - simultaneamente à ampliação das práticas democráticas e à emergência da consciência ecológica – sofreu um recrudescimento da deterioração socioambiental, da degradação do espaço público e das formas de espoliação urbana. Assim, aprofundar a compreensão dessa problemática se torna cada vez mais crucial para os agentes que, de algum modo, participam do processo de formulação e gestão da política urbana, estejam eles situados no nível local, regional, nacional ou global.

Indagar, por exemplo, sobre a possibilidade teórica e prática da transição do estado atual para uma ordem urbana sustentável como amplamente pretendida pelos agentes é confrontar uma outra série de questões igualmente relevantes no âmbito deste estudo: qual o papel de instituições como o Estado, a sociedade civil e o mercado nessa transição? Em contexto de formação de territórios globais a metrópole contemporânea surge como espaço privilegiado para a análise do problema proposto, dado que, nela, os processos em curso se

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manifestam com todas as suas evidências e conseqüências. Como explicitou Carlos

(2001:31)

A metrópole reproduz-se de forma incessante e ininterrupta. Ela não se refere mais ao lugar único, primeiro porque contém o mundial, a constituição de valores, de uma estética, de comportamentos e hábitos que são comuns a uma sociedade urbana em constituição; segundo porque aí temos a articulação de todos os lugares, na medida em que os aproxima; terceiro, a metrópole caracteriza-se como forma de simultaneidade. Na realidade a co- presença e a simultaneidade marcam substancialmente o urbano e iluminam as relações espaço-tempo. Nesse contexto, a metrópole aparece como o lugar de uma superposição de eventos que acontecem ao mesmo tempo em lugares diferentes, além de uma simultaneidade de eventos no mesmo espaço.

Assim formulado, o problema da produção do espaço e da ordem social na metrópole em contexto de urbanização completa da sociedade comporta aporias insuperáveis nos marcos teóricos e práticos vigentes, constituindo um desafio a ser enfrentado tanto pela pesquisa urbana quanto pelos agentes envolvidos diretamente na atividade social de produção do espaço. A tentativa de superação das dificuldades analíticas envolvidas na questão nos conduz a um tipo de abordagem que privilegia a emergência de um espaço social estruturado por saberes, instituições, agentes e práticas sociais específicos, ou como aqui denominado, o campo urbanístico.