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Metrópole à venda: produção de objetos da cidade-mercado

NOVOS TIPOS “PUROS” DE DOMINAÇÃO ORGANIZADA DA METRÓPOLE

PMSP 60 Ação Centro

5.3 Metrópole à venda: produção de objetos da cidade-mercado

A produção, apropriação e consumo do espaço por meio da mobilização do capital econômico, cultural, social acumulados no campo adquirem sua face visível na transformação da paisagem urbana por objetos distintos, resultado das estratégias de maximização de ganhos materiais e simbólicos. A utopia da auto-suficiência como geradora de modelos de realidade urbana engendra a construção em série de mundos finitos de significação para o consumo de determinadas frações de classe. A reprodutibilidade de objetos como os shoping centers, condomínios de alto padrão ou os espaços especializados adaptados ao fluxo da economia global (hotelaria, centro de convenções, tecnologias da informação, telecomunicações, segurança, aeroportos) são exemplos de processos constitutivos de novas espacialidades e descontinuidades territoriais, quer pelo aparecimento de novos objetos, quer pela reconversão de antigos a outras funcionalidades.

Nessa categoria de objetos produzidos pela “cidade-mercado” salta aos olhos a tendência à produção em série do que Caldeira (2000:259) chamou de enclaves fortificados, caracterizando uma nova forma de segregação sócioespacial na metrópole, espaços destinados ao consumo de elites que recriam seu universo material e simbólico para uma diferenciação social em relação ao resto da cidade. Por trás de muros, grades, guaritas, câmeras e todo tipo de objetos destinados à manutenção da segurança privada produzem espaços de separação e de organização das diferenças como desigualdade. Essa separação física e material é complementada por uma elaboração simbólica de modo a transformar enclausuramento, isolamento, restrição e vigilância em símbolos de status.

Os enclaves fortificados incluem conjuntos de escritórios, shoping centers, e outros espaços adaptados de modo a conformar um tipo de regionalização e segregação, como escolas, hospitais, centros de lazer e parques temáticos. Segundo Caldeira (2000: 258-59):

Todos os tipos de enclaves fortificados partilham algumas características básicas. São propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem as regras de inclusão e exclusão. São flexíveis: devido ao seu tamanho, às novas tecnologias de comunicação, organização do trabalho e aos sistemas de segurança, eles são espaços autônomos, independentes do seu entorno que podem ser situados praticamente em qualquer lugar.

Quando necessitam, por fim, estabelecer laços com o meio exterior, resta a essa camada social recorrer a todo um aparato complementar que vai dos automóveis blindados aos serviços de segurança envolvidos em uma simples ida ao shoping center ou outro espaço exterior ao condomínio, oferecidos em um mercado que se desenvolve e se sofistica rapidamente. Por estar submetida à lógica da competição com outros territórios, a chamada guerra de lugares, a “cidade-mercado” necessita, para seus desígnios, ser ela própria um objeto técnico que organiza outros objetos técnicos, objetos estes criados deliberadamente e voltados para a obtenção de vantagens competitivas. Nesse particular pode-se recorrer a Santos ( 2002:217) quando este afirma que:

Em nenhuma outra fase da história do mundo, os objetos foram criados, como hoje, para exercer uma precisa função predeterminada, um objetivo claramente definido de antemão, mediante uma intencionalidade científica e tecnicamente produzida, que é o fundamento de sua eficácia. Da mesma forma, cada objeto é também localizado de forma adequada a que produza os resultados que dele se esperam.

Outra característica da “cidade-mercado” derivada das práticas competitivas é a obsolescência rápida do patrimônio urbano, fazendo com que equipamentos e lugares sejam declarados ultrapassados, incapazes e obsoletos a novos usos. Essa necessidade de competição não advém da técnica, mas da política. “Não é a técnica que exige às empresas, aos lugares serem competitivos, mas a política produzida pelos atores globais, isto é, empresas globais, bancos globais, instituições globais” (Santos, 2002:222). Evidentemente estamos aqui diante da cultura do desperdício que tem por função o estímulo a mais consumo. Como assevera J. Baudrillard (2005:42) “o que hoje se produz não se fabrica em

função do respectivo valor de uso ou da possível duração, mas antes em função da sua morte...sabe-se que a ordem da produção não sobrevive a não ser ao preço de semelhante extermínio, de perpétuo “suicídio” calculado do parque de objetos, e que tal operação se baseia na “sabotagem” tecnológica, ou no desuso organizado sob o signo da moda”. Eis aí mais uma pista para a decifração da crise do obreirismo, cuja produção material, essencial para a conformação da ordem urbana no passado recente, é agora entulho, estorvo à criação de novos objetos, não restando outra alternativa que não a da sua demolição e implosão, práticas recorrentes da “cidade-mercado” para a abertura de novas frentes de produção e consumo de objetos.

Uma das práticas características de produção de objetos da “cidade-mercado” é a chamada Operação Urbana Consorciada8

, uma espécie de venda de exceção às regras de uso e ocupação do solo que, ao ser ela mesma instituída como regra, realiza a transposição dos fundamentos mercadológicos hegemônicos do campo para a esfera estatal, possibilitando que esses fundamentos sejam homologados, codificados e utilizados como violência simbólica no âmbito da sociedade de classes. Como declara uma funcionária da Secretaria Municipal da Habitação:

A operação urbana é um instrumento de parceria e negociação estabelecido entre o poder público, a sociedade civil e a iniciativa privada previsto no Direito urbanísitico e consagrado no Estatuto da Cidade [...] o Estatuto resolve o problema jurídico da necessária separação entre o direito de propriedade e o de construir. Hoje se pode alienar o direito de utilizar superfície, espaço aéreo, subterrâneos, e a operação urbana é o conjunto de ações que se pode desenvolver a partir disso.9

Isso significa que a operação urbana é um instrumento de produção do espaço previsto na legislação pertinente à política urbana que assegura a participação dos agentes privados no sistema de planejamento urbano público com vistas ao aumento da eficiência econômica da cidade. Por meio dela, o capital imobiliário pode aumentar a área construída de seu imóvel para além do que é permitido na legislação urbanística (coeficiente de aproveitamento do terreno), implantar usos não previstos pelo zoneamento, anexar área remanescente de desapropriação e até obter a cessão do espaço público aéreo ou

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As Operações Urbanas têm origem no conceito de "solo-criado", desenvolvido por urbanistas a partir de meados da década de 70. O solo criado pressupõe a existência de um Coeficiente de Aproveitamento, de maneira a eliminar as diferenças econômicas entre regiões que o Zoneamento instituiu. A partir desse coeficiente – originalmente equivalente a uma vez a área do terreno – aquilo que fosse construído a mais seria considerado solo criado (PMSP, documento da internet: www2.prefeitura.sp.gov.br//arquivos/.

subterrâneo no perímetro definido como de influência da OP. Isso é feito mediante contrapartida financeira do setor privado a ser investido no perímetro da própria operação urbana o que se dá pela emissão dos Certificado de Aumento de Potencial Construtivo – CEPACs, pela prefeitura, negociados no mercado imobiliário. De acordo com a Emurb, órgão estatal responsável pela Ops no município de São Paulo:

as operações urbanas visam promover melhorias em regiões pré-determinadas da cidade através de parcerias entre o Poder Público e a iniciativa privada. Cada área, objeto de Operação Urbana, tem uma lei específica estabelecendo as metas a serem cumpridas, bem como os mecanismos de incentivos e benefícios. O perímetro de cada Operação Urbana é favorecido por leis que prevêem flexibilidade quanto aos limites estabelecidos pela Lei de Zoneamento, mediante o pagamento de uma contrapartida financeira. Este dinheiro é pago à Prefeitura, e só pode ser usado em melhorias urbanas na própria região.10

A eficácia dessa estratégia e a permanência de sua adoção pelas diferentes gestões, independentemente de partido11 ou orientação ideológica, repousa em vários elementos. Além de articular os capitais públicos (econômico e simbólico) e privados (essencialmente econômicos), ela harmoniza a produção de objetos no espaço, de modo fragmentário, mas coerente com a totalidade espacial urbana e com os fins a que servem, propiciando as condições para o controle do processo de produção do espaço pelos agentes do mercado.

Enquanto esquema de reprodução do espaço e da ordem social que se dá sob a égide do capital mediante a compra e venda de exceções à legislação urbanística, a implementação dessa estratégia necessita invariavelmente da intervenção do Estado. Isso porque, como observa Carlos (2001:113):

o fenômeno da raridade do espaço se coloca como produto do processo de reprodução do espaço sob a égide do desenvolvimento do capital, ao mesmo tempo em que constitui uma barreira a seu desenvolvimento. As estratégias capazes de superar essa contradição no processo passam, necessariamente, pela mediação do Estado, uma vez que só ele pode atuar em grandes extensões do espaço, apoiados na instância jurídica, que cria condições e legitima sua ação. Desse modo o espaço se reproduz como condição/produto da reprodução do capital, e ao mesmo tempo como instrumento político vinculado ao Estado.

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Declaração de Evangelina Pinho, diretora do Departamento de Regularização do Solo da Secretaria Municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbano. Revista Urbs, nº 23, 2001.

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