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PRODUÇÃO DO ESPAÇO E ORDEM SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Capítulo 3. A Crise de Legitimação e o Declínio do Obreirismo

3.3 Democratização e Cisma no campo Urbanístico

Como já assinalado, a combinação de certas características - populismo, planejamento tecnocrático centralizado, autoritarismo, priorização do urbanismo automobilístico por meio de grandes obras viárias voltadas para o transporte individual, com base técnica fornecida pela engenharia civil (nos seus primórdios) e depois pela arquitetura e planejamento modernista (no seu apogeu) organizada em associações de grandes empreiteiras de obras públicas e produção habitacional para camadas de renda média e superior - são causas endógenas da hegemonia que o obreirismo manteve no campo durante um longo período (Bonduki, 1998-2000, Campos Neto, 2000). Paradoxalmente, essas características também podem ser apontadas como causas do seu declínio, bem como oferecer explicações de como e por que ele passa a ser alvo da conduta de agentes da subversão simbólica que o vêem como um tipo de dominação ilegítima da metrópole.

Já vimos, para o caso do higienismo, que a utilização da força e da violência armada é indicativa de pouca eficácia simbólica e da não aceitação pacífica dos dominados de um determinado modelo de ordem urbana. Também para o caso do obreirismo se aplicaria o raciocínio segundo o qual, se a violência física explicita tem de, em algum momento, ser mobilizada é porque o arbitrário das formas de controle do processo de produção do espaço subjacentes ao modelo já não podem ser dissimulados ou eufemizados. A inexistência de formas silenciosas e ocultas de dominação provoca o rompimento da cumplicidade objetiva dos dominados com a ordem instituída, que se manifesta no despertar da insatisfação, da revolta e das lutas sociais urbanas.

Com efeito, no bojo da redemocratização do país, em contraposição ao planejamento tecnocrático e ao autoritarismo, a emergência dos movimentos sociais urbanos estabelece explicitamente o conflito das classes populares com as classes dirigentes na quanto à reapropriação do capital urbanístico em circulação. A busca contínua dessas classes pela participação, com voz própria, nos embates do campo e, portanto, na direção que a urbanização deve seguir é um dos marcos do entrincheiramento das forças democráticas frente ao autoritarismo e aos mecanismos repressivos que já não pode manter a marginalização das classes populares no domínio do senso comum.

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Por um lado, há a tentativa, levada a termo por frações da classe dominante, de reinscrição das classes populares na dinâmica do clientelismo, do obreirismo-populista e na reelaboração e reprodução da figura do pobre-carente, às vezes com o uso da violência física para a manutenção da ordem vigente. Por outro lado, parcelas significativas das classes dominantes – sobretudo de produtores da ordem simbólica, portadores de grande capital cultural adquirido no sistema de ensino – acumulam habilidades e competências específicas, que as tornam aptas a elaborar e percutir projetos alternativos de ordem urbana, abrindo-se disputas no interior do campo pelo monopólio da formulação legítima do dever-ser da metrópole.

A combinação dos fatores acima no espaço-tempo aponta para uma transformação do quadro de forças internas ao campo. A superposição de espaços sociais e físico-territoriais, para além de uma mera ampliação da escala, configuraria um novo quadro de questões a demandar dos agentes o repensar das instituições, dos instrumentos e meios de intervenção, bem como dos mecanismos de regulação pública envolvidos nas práticas de produção do espaço. Cite-se, por exemplo, a clara divisão no interior do campo entre os defensores do Plano Estratégico da Cidade, de um lado, e do Plano Diretor Participativo de outro, como instrumentos válidos para a condução das intervenções urbanas, cisão essa que, por vezes, converge para a formulação de instrumentos híbridos como o Plano Diretor Estratégico da Cidade de São Paulo.

No âmbito da pesquisa urbana, esse movimento, já em finais da década de 1980, apontava para uma inflexão nos métodos e instrumentos de análise e no alcance explicativo de abordagens e teorias sobre o urbano. Pode-se admitir com D. Harvey (1996) que, constatada a existência objetiva de instabilidades e descontinuidades institucionais, de novas topologias sociais, de configurações, geometrias e hierarquias socioespaciais diferenciadas; a própria categoria “cidade”, tal como utilizada na tradição científica e literária tornou-se instável, emergindo novos sentidos e significados práticos e teóricos.

Para a compreensão de todo esse conjunto de fatores, poderíamos formular, em complemento à hipótese lefebvriana da urbanização completa da sociedade, uma segunda hipótese totalizadora: a da formação de uma política urbana global como um conjunto de agentes, instituições e práticas sociais voltadas para a dominação e o controle da metrópole em escala planetária. Em uma apropriação simplificada da idéia de Marx, é como se a metrópole, na condição de força produtiva, estivesse em contradição com as relações de

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produção correspondentes ao padrão de acumulação global do início do séc. XXI. Faz-se necessária a realização de um movimento de transição para uma nova configuração socioespacial, no sentido de se adequar ao novo ciclo de acumulação. Mas essa transição só pode se dar via constituição de uma nova ordem social na metrópole, que só pode ser levada a efeito por agentes e instituições especializadas, conformando um espaço social específico onde ocorrem as lutas políticas e cognitivas orientadas a esse fim.

O recorrente mal-estar no campo da produção urbanística, que é, a um só tempo, político e cognitivo, sugere que o obreirismo se tornou uma forma de dominação ilegítima, na razão direta da emergência de modelos sociocognitivos de metrópole alternativos, produtos de uma subversão simbólica no campo, os quais caracterizaremos como novos “tipos puros” de dominação organizada da metrópole. Esse argumento será desenvolvido nos capítulos seguintes.