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PRODUÇÃO DO ESPAÇO E ORDEM SOCIAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Capítulo 1. O Problema da Produção do Espaço e da Ordem Social na Metrópole: Uma Perspectiva de Análise.

1.3 O Campo Urbanístico

Define-se campo urbanístico como uma comunidade humana que reivindica, com relativo êxito, o controle do processo de produção do espaço e que luta pelo monopólio da definição legítima do dever-ser da metrópole como capital específico (capital urbanístico) a ser acumulado nessas lutas. Por conseguinte, somos levados ao estudo da divisão do trabalho de dominação e controle da metrópole como um campo de lutas e de forças que contém dois pólos comunicantes e interdependentes: i) o pólo da luta pelo monopólio da definição legítima do dever-ser da metrópole, uma luta propriamente simbólica entre instituições e agentes visando construir, legitimar e consagrar modelos sociocognitivos do urbano (capital urbanístico institucionalizado); e ii) o da produção material, da

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transposição para o território desses modelos, na forma de uma coleção de objetos interconectados (capital urbanístico objetivado) que dão coerência e sentido à estruturação, apropriação e consumo do espaço.

A existência desse espaço social como realidade observável nos induz a pensar o problema proposto a partir de um campo relativamente autônomo e com lógica interna específica: o campo urbanístico propriamente dito. Recorre-se aqui à noção de campo tal como concebida na teoria social de Bourdieu.5 Assim, a idéia de campo nos remete a um conjunto de instituições, agentes e práticas relacionados às formas de produção, apropriação e consumo do espaço, bem como aos modos de dominação e controle da metrópole pelo Estado, pelos agentes privados e pela sociedade civil. Essa definição remete também a uma questão prática. É possível harmonizar diferentes níveis de política urbana e de escalas de intervenção (global, Estado-nação, local) em um mesmo espaço- tempo a partir de instituições, instrumentos e práticas socioespaciais rumo à sustentabilidade socioambiental da metrópole? Ou estaríamos diante da homogeneização do espaço urbano em escala global a fim de satisfazer as condições de reprodutibilidade do capital em um mundo regido por corporações globais? Seria possível a coexistência cooperativa de um padrão global de urbanização com as particularidades de cada região e lugar? A resposta a esse tipo de indagação poderia ser buscada na explicitação dos aspectos específicos e singulares do campo da produção urbanística na RMSP.

No ajustamento das condições objetivas verificadas na metrópole e das aspirações subjetivas dos agentes emerge a problemática, central para o estudo proposto, da formação, a um só tempo, de territórios globais, de metrópoles socialmente justas e ambientalmente sustentáveis como móveis de lutas decisivos para a conservação ou transformação das forças internas ao campo. Disputas e convergências em torno de modelos sociocognitivos de cidades a serem objetivados no espaço-tempo se tornam então os motores da

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P. Boudieu define campo como uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou capital) cuja posse comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo e, ao mesmo tempo, por suas relações objetivas com as outras posições (dominação, subordinação, homologia etc). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é constituído do conjunto destes microcosmos sociais relativamente autônomos, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade específicas e irredutíveis à que regem os outros campos. Por exemplo, o campo artístico, o campo religioso o campo econômico obedecem a lógicas diferentes (Bourdieu, P & Wacquant, L.J.D, apud Bonnewitz, 2003:60).

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conservação e da mudança no interior do campo considerado. A luta pelo monopólio do capital urbanístico, ou seja, da explicação válida dos princípios de ordenação urbana - capaz de legitimar a ocupação de uma posição distinta na divisão do trabalho de dominação e controle da metrópole enquanto força produtiva, fonte de direitos de cidadania ou simples coleção de mercadorias - desencadeia os fatores propulsores da instabilidade e da busca por um novo equilíbrio entre as posições ocupadas pelos agentes no processo de reprodução e inovação da ordem sociourbana. Trava-se no interior do campo uma luta para impor, de maneira arbitrária, um modelo de realidade urbana que possa ser percebido como natural e auto-evidente e, logo, de eficácia simbólica para a dominação organizada da metrópole.

Os pólos do campo urbanístico

Assim, delimita-se o escopo do estudo essencialmente aos aspectos da luta social em torno da dinâmica de mudança e permanência das relações de força no campo urbanístico, tendo como base empírica a RMSP. Como já assinalado, argumenta-se que a crise de legitimação do modelo aqui denominado de obreirismo modernizador como energia ideológica e utópica para a produção e reprodução da ordem na metrópole descortina um espaço social, objeto de disputas e convergências entre agentes portadores de modelos sociocognitivos de metrópole, envolvendo, de um lado, as forças aglutinadas em torno do modelo “direito à cidade”, e, de outro, as forças representativas do modelo “cidade mercado”, engendrando um novo equilíbrio institucional na estrutura do campo urbanístico, ou seja, na divisão do trabalho de dominação e controle da metrópole.

Nessa luta, grupos de agentes participam de dois pólos distintos, porém interligados, relacionais e de causalidade circular no campo. O primeiro pólo se refere à esfera da produção simbólica (cf. Bourdieu), realizada por instituições produtoras de bens simbólicos, voltadas para a obtenção do monopólio do poder propriamente simbólico, para a acumulação de capital simbólico, para a obtenção de lucros simbólicos por meio da manipulação legítima de modelos cognitivos de cidade. Este pólo se refere ao que Santos (2002:256) classifica como psicoesfera, isto é, o “reino das idéias, crenças, paixões e lugar da produção de sentido” o qual fornece regras à racionalidade e estimula o imaginário.

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O segundo pólo diz respeito à objetivação dos modelos, ou seja, à transição de um modelo de realidade à realidade do modelo. Na classificação de Santos (idem, idem), esse pólo corresponderia à tecnoesfera, ao mundo dos objetos que se adapta aos mandamentos da produção e do intercâmbio [...] substituindo o meio natural ou meio técnico que a precedeu por novos objetos, aderindo-se ao local como uma prótese. Esse pólo fornece, portanto, produtos e bens materiais produzidos por empresas econômicas, voltadas para a obtenção do monopólio do poder econômico, para a acumulação de capital econômico e para a obtenção de lucros econômicos. Resulta numa coleção de objetos que se comunicam (prédios, estradas, pontes, viadutos, aeroportos, rodoviárias, bairros, cidades) representativos dos princípios de visão e divisão e dos sistemas de classificação que se estabelecem na luta simbólica do campo, e, por isso, dotados de coerência e sentido para os agentes. É, no dizer de Lefebvre (1999:85), projeção das relações sociais no solo, da justaposição do Estado e do mercado - em conflito ou não – produtos, capitais, trabalho, obras, monumentos e moradias. De certo modo, os pólos caracterizados acima correspondem à divisão do trabalho em produção intelectual e produção material, em produção simbólica e produção econômica o que equivaleria, em termos gerais, aos dois sentidos indicados por Lefebvre, Santos e Bourdieu.

Antes de prosseguirmos, caberiam aqui duas observações. A primeira é que os pólos não podem ser considerados como sendo exclusivamente de produção material ou simbólica. Há um pólo de produção que é predominantemente simbólico e outro que é de produção predominantemente material. Além disso, cumpre esclarecer que não se admite precedência de um sobre o outro, isto é, um não é gerado pelo outro, mas cada um tem no outro a confirmação de sua existência. O segundo ponto a observar é que não se quer dizer que toda prática urbana se reduz à objetivação de modelos emanados das instituições e dos agentes atuantes no campo urbanístico. O espaço, ou mais precisamente, os lugares e os locais do espaço social reificado, e os benefícios que eles proporcionam são resultado de lutas dentro dos diferentes campos (jurídico, político, religioso etc). A ênfase no que aqui se denomina campo urbanístico decorre apenas do fato de que nele estão agrupados os agentes e instituições que reivindicam para si o monopólio da definição legítima do dever- ser da metrópole, o que não quer dizer que esse monopólio seja alcançável. Tal opção tem como objetivo apenas delimitar o escopo da análise àquelas ocorrências observáveis no interior desse campo heuristicamente construído.

A figura 1.3 mostra os pólos do campo urbanístico e as escalas socioterritoriais a serem consideradas no estudo. Ela sugere uma divisão do trabalho de dominação e controle da metrópole que vai do local ao global e abre possibilidade para a formulação de hipóteses explicativas da conduta dos agentes e de sua influência na conformação da ordem social.