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Introdução

Chegamos assim à problemática da (re)produção e inovação do campo da produção urbanística como elementos decisivos para a avaliação do grau de condicionamento que ele exerce sobre a produção do espaço e da ordem social na metrópole. Esse aspecto é importante, pois a dinâmica de (re)produção e inovação do campo, uma vez que garante sua continuidade no tempo, assegura também condições de maior controle do processo de produção do espaço pela classe de agentes que o institui e o constitui. Mas essa dimensão do problema só pode ser acessada por meio de práticas socioespaciais concretas, sendo este o objetivo desta parte do estudo.

Já fizemos notar que lutas políticas e cognitivas entre instituições e agentes estão na origem de dois tipos “puros” de dominação legítima da metrópole: o “direito à cidade” e a “cidade-mercado”. Importa agora desvendar as formas de sistematização de práticas socioespaciais como dominação organizada; a repetição de procedimentos e ritos de instituição que conformam ciclos de atividades e garantem continuidade e regularidade administrativas, quer dizer, certo grau de previsão, por parte das forças hegemônicas e grupos dominantes, sobre o comportamento dos agentes e das variáveis que condicionam o processo de produção do espaço.

Giddens (1985:37) sublinhou que toda reprodução social e, portanto, todos os sistemas de poder, são baseados na previsibilidade da rotina diária, sendo que “o caráter previsível – ou seja, regularizado – da atividade diária, não é algo que simplesmente “acontece”, em grande parte é “provocado” por agentes inseridos nos diversos cenários da vida social”. Essa formulação é muito próxima daquela já asseverada por Weber (1996:59), guardadas as especificidades e os contextos à quais se referem, segunda a qual:

Toda empresa de dominação que reclame continuidade administrativa exige, de um lado, que a atividade dos súditos se oriente em função da obediência devida aos senhores que pretendem ser os detentores da força legítima e exige, de outro lado e em virtude daquela obediência, controle dos bens materiais que, em dado caso, se tornem necessários para aplicação da força física. Dito em outras palavras a dominação organizada necessita, por um lado, de um estado-maior administrativo e, por outro lado, necessita dos meios materiais de gestão.

Se assim é, devemos analisar os meios e modos mobilizados para a obtenção de tal obediência e consentimento dos dominados, uma vez que, sem essa cumplicidade objetiva, estaria comprometida a relação de sentido, as formas silenciosas, dissimuladas e duradouras da dominação legítima, que tornam desnecessária o uso recorrente à violência física. Estamos mais uma vez diante da indagação: como a classe dominante domina e por que os dominados aceitam colaborar no projeto da sua própria dominação? Pode-se argumentar que o processo de produção do espaço guarda liames com a produção de uma espécie de conformismo lógico e moral (Cf Durkheim), sendo que a reprodução do próprio campo urbanístico - como meio de produção de sentido – assegura a reprodução e inovação das práticas socioespaciais condizentes a esse fim. É plausível supor ainda que essa produção é mediada por instituições que têm a prerrogativa de estabelecer formas de divisão e classificação e organizar esquemas de percepção e apreciação como, por exemplo, a prática da regionalização, abordada no capítulo 6.

Dessa ótica, a lógica do campo deve operar no sentido de reproduzir e/ou inovar as condições sob as quais ele terá maior influência e controle do processo de produção do espaço, podendo essa reprodução ser simples, pela inércia das instituições e agentes, ou ampliada, com a criação de novas organizações, a entrada de novos agentes, a implementação de novos meios de gestão e a criação de novos objetos. A esse respeito, pode-se observar a contínua reprodução e inovação, no período recente, de práticas socioespaciais desenvolvidas mediante novos arranjos organizacionais, conformando redes sociocognitivas como instrumentos de coordenação, em substituição às estruturas burocráticas características do período anterior. Essa perspectiva sugere também o aperfeiçoamento das funções de vigilância, mormente pelas novas possibilidades de armazenamento e uso de informação codificada e pelas possibilidades de produção de objetos em escala crescente quanto à amplitude e intensidade de controle sobre grupos humanos e territórios.

Outro aspecto relevante diz respeito às novas possibilidades de produção de bens simbólicos, quer pelo acirramento da competição, quer pelas novas formas de cooperação expressas na complexificação da divisão técnica e social do trabalho no campo. Neste particular, convém notar que as redes de agentes caracterizam-se por combinar atividades extremamente formais e hierarquizadas com outras mais informais, auto-organizadas e de estrutura mais horizontalizadas, com a supressão de níveis hierárquicos e processos de

comando de cima para baixo, aumentando a eficácia da transmissão de informações, e da inovação das práticas no âmbito do campo.

Portanto, não chega a surpreender o fato de os agentes envolvidos na produção de modelos de realidade que reivindicam tornar-se real estarem permanentemente buscando a organização em redes sociocognitivas, de modo que essa nova estrutura organizativa adquire ampla significação na análise da eficácia de reprodução e inovação do campo e, por conseguinte, na maneira como ele influencia e condiciona a produção do espaço e a ordem social.

Nos capítulos seguintes abordaremos aspectos cruciais, como a organização do campo em redes sociocognitivas voltadas para a criação de novas formas de classificação e divisão, necessárias à atualização, codificação e transmissão de modelos de metrópole. Para tanto, devemos retornar à análise do campo da produção urbanística buscando apreender a dialética que se estabelece entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas por meio das quais elas são percebidas, explicitar os modelos sociocognitivos como posições ocupadas em um campo singular e também como disposições para aí trazidas pelos agentes. Dessa perspectiva, as formas de dominação organizada sobre a metrópole não são passíveis de serem reduzidas a atos e decisões voluntaristas de agentes individuais. Elas devem ser compreendidas dentro de um campo de forças e de lutas para conservar ou transformar a correlação de forças.

Capítulo 6. Instituições e Formas de Classificação Socioespacial

Toda classificação implica em uma ordem hierárquica da qual nem o mundo sensível nem nossa consciência nos oferece o modelo. Deve-se, pois, perguntar onde fomos procurá-lo. As próprias expressões de que nos servimos para caracterizá-lo nos autorizam a presumir que todas essas noções lógicas são de origem extra lógica.

(E. Durkheim; M. Mauss)

Este capítulo tem por objetivo aprofundar a compreensão da dinâmica de reprodução e inovação do campo urbanístico por meio do qual ele aumenta a extensão e profundidade de seu controle sobre o processo de produção do espaço e, por conseqüência, sua influência no condicionamento da ordem sociourbana. Isto será feito por meio da análise de um aspecto essencial da conduta dos agentes: a mobilização dos saberes e das instituições para impor os princípios de classificação e de divisão, bem como a representação legítima do espaço como base cognitiva da dominação organizada da metrópole. Nessa luta entre modelos de realidade que aspiram se tornar real, entre formas arbitrárias que reivindicam a validade universal, o que está em jogo não é pouco. Como dimensão fundamental da luta de classes, ela assegura aos vencedores o exercício da violência simbólica nos embates pela hegemonia no interior do campo. Transposta para a sociedade de classes como ordem simbólica legitimada, assegura a reprodução das relações sociais dominantes.1

Tais princípios de visão e de divisão, uma vez instituídos como orto-doxia no campo, reproduzem e naturalizam as formas arbitrárias de conhecimento da metrópole, as hierarquias socioespaciais (regiões, lugares, centralidades, periferias, espaço de fluxos, espaços de relegação, redes territoriais), sua significação atual e a direção que devem seguir. Eles podem assim ser transpostos para a sociedade de classes na forma de produtos

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Como afirma Bourdieu, a luta pelas classificações é a luta pela existência ou não-existência dos grupos e dos lugares, é uma dimensão fundamental da luta de classes. O poder de impor uma visão das divisões, isto é, o poder de tornar visíveis, explícitas, as divisões sociais implícitas, é o poder político por excelência: é o poder de fazer grupos, de manipular a estrutura objetiva da sociedade...o poder performativo de designação, de nominação, faz existir no Estado instituído, constituído, isto é, enquanto corporate body, corpo constituído enquanto corporatio [...] o que até então existia apenas como collectio personarum plurium, coleção de pessoas múltiplas, série puramente aditiva de indivíduos simplesmente justapostos (Bourdieu, 1991:167).