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A construção social da relação Homem/natureza

Parte II. Razão e Desenvolvimento

Capítulo 7. Cisão Homem/natureza na modernidade

7.5. A construção social da relação Homem/natureza

De um ponto de vista mais geral, Chaves et al. (2008) destacam que existem diversos modos de se pensar, em função de cada época e localidade, as relações entre Homem e natureza. Para as autoras, no ocidente predominou a visão de natureza separada do Homem, cuja matriz filosófica vem desde a Grécia e Roma antigas, e que se firmaram em contraposição a outras formas de pensar e atuar. Ao longo da modernidade ocidental, como já esboçado acima, essa cisão entre Homem e natureza foi reforçada em diferentes planos e por muitos autores. Na perspectiva da sociedade capitalista a natureza é vista como recurso natural e se enquadra dentro de um viés economicista, “considerada como um recurso econômico apenas, como uma mercadoria, ao mesmo tempo em que se integra ao conjunto dos meios de produção, condição que torna possível a consolidação da acumulação de capital” (idem, p.130).

Cada momento histórico que uma sociedade atravessa pode ser caracterizado também pelas diferenças no trato com a natureza, decorrente da heterogeneidade entre os

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Diegues (2004b, p.28-34) destaca que, sob o ponto de vista teórico nos EUA, no século XIX, havia duas visões sobre a conservação do mundo natural, que influenciaram o mundo todo: 1) conservacionismo, com Gifford Pinchot, que criou o movimento de conservação dos recursos naturais, pelo seu uso racional (adequado e criterioso). 2) preservacionismo, principalmente com John Muir, mas também com George Perkin Marsh e Henry David Thoreau, que reverenciam a natureza no sentido de sua apreciação estética e espiritual, devendo-se protegê-la contra o desenvolvimento moderno, industrial e urbano. As idéias conservacionistas de Pinchot, no debate com as correntes desenvolvimentistas (do progresso a qualquer custo), deram base para enfoques posteriores, nos anos '70, como o ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável, segundo o autor.

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PONS, Philippe (1997). Japão: um apego seletivo à natureza. In: BOURG, Dominique (org.). Os sentimentos

da Natureza. Lisboa: Instituto Piaget.

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PONS, Xavier (1997). Austrália: entre o terror e a beleza. In: BOURG, Dominique (org.). Os sentimentos da

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indivíduos. Cada cultura tem suas particularidades e as condições da relação Homem/natureza são definidas em função ao modo específico de cada sociedade. Por meio da abordagem da Antropologia Ecológica, Emílio F. MORAN (1994)152 mapeia as tendências predominantes existentes nas teorias sobre a relação Homem/natureza no mundo ocidental até os anos '50, citando três delas. O ponto em comum “é que todos conceitualizam a interação homem/ambiente mais como unidirecional do que sistêmica, e dão maior ênfase a estágios do que a processos” (idem, p.48). Tal como exposto pelo autor (idem, p.47-64) e na releitura de Chaves et al. (2008), são elas:

1) Determinismo ambiental. A tendência que enfatiza o papel determinante do ambiente no desenvolvimento da sociedade e cultura humana. O ator social seria considerado produto da natureza: uns são melhores do que outros, por pertencerem a localidades diferentes. O indivíduo poderia ser considerado vítima dos processos geográficos e climatológicos do planeta. A natureza seria fonte das forças seletiva que resultariam no êxito de determinadas espécies sobre outras. As sociedades buscariam, incessantemente, melhores condições materiais de sobrevivência – sendo favorecidas por melhores condições geoclimáticas. As teorias greco-romanas, árabes, renascentistas e do século XVIII, e do século XIX e XX, que exaltavam a vitalidade do Homem que vive sob determinado ambiente (o Homem de áreas frias, temperadas e quentes), fazem parte dessa tendência. Essa visão permeou a expansão colonialista dos europeus em busca de novos mercados, colocando sua cultura, fruto de sua localidade geográfica, como superior às outras. Para Moran (1994, p.48), essas teorias deterministas, que desprezam as complexas interações dos sistemas biológicos, são de cunho etnocêntrico e têm a função de explicar uma posição influente de um país e racionalizar uma dominação política contínua.

2) Adaptação humana à natureza. A tendência que enfatiza o papel dominante da cultura sobre o ambiente físico. A natureza impõe limitações e cabe às espécies/Homens superá- las, por meio de adaptações. A sociedade possui uma infinita capacidade de tentar controlar a natureza, ignorando as próprias limitações que tem em dominá-la. A cultura é considerada superior à natureza, porque a o Homem intermedeia sua relação com a natureza por meio da representação e esta, por sua vez, lhe serve de base para agir sobre ela. Portanto, não são as limitações geográficas-ambientais que levam a um tipo específico de exploração de recursos naturais, mas as próprias configurações das relações sociais, suas intencionalidades racionais, seus objetivos de produção material e social, que determinam a cultura e a maneira como o Homem representa e age sobre o mundo. Essa tendência inclui: a doutrina humoral (que vem do Egito e passa pelos gregos, romanos até a renascença); a teleologia na modernidade (“doutrina das causas finalísticas e subentende um propósito na

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MORAN, Emilio F. (1994). Adaptabilidade humana: uma introdução à Antropologia Ecológica. Tradução de Carlos E. A . Coimbra Jr. E Marcelo Soares Brandão. São Paulo: Edusp.

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evolução dos organismos” (MORAN, 1994, p.53), em que pensadores passaram a pensar as limitações do ambiente sobre a organização humana e como os Homens venciam tais barreiras; as especulações dos historiadores naturalistas sobre comportamentos culturais adaptativos e não adaptativos ao ambiente – o que já dá maior ênfase a respostas evolutivas sociais, ao invés de puramente ambientais; a escola escocesa (com Adam Smith, Adam Fergunson, David Hume, entre outros), com a ênfase da evolução de sociedades complexas e das forças culturais e materiais que levam à estratificação social; teoria da evolução de Darwin, com seu desenvolvimento posterior e surgimento da genética. Um exemplo da adaptação cultural é o modo de produção capitalista, em que a organização social dos valores é o fator responsável pela má utilização dos recursos naturais, e não apenas as tecnologias. Há uma oposição sociedade/natureza caracterizada pela crença no modelo de desenvolvimento (econômico-industrial) e racionalidade técnico científica, em que a natureza é integrada ao conjunto dos meios de produção dos quais o capital se beneficia. Para exemplificar como um sistema de representações serve de base para a atuação sobre a natureza, Chaves nos fala da diferença de interpretação da selva amazônica entre um ribeirinho e um indivíduo oriundo de outro lugar:

para o primeiro, a selva representa seu habitat, de onde pode obter sua sobrevivência, cujo uso é ordenado, em primeira instância, pelo princípios socioculturais que possui; enquanto que o segundo vê a selva como obstáculo a ser vencido para a implantação da agricultura, da pecuária, ou seja, uma fonte potencial de recursos econômicos e financeiros (CHAVES et al., 2008, p.133).

3) A natureza como um fator limitante. A tendência que se caracteriza pela predominância nem do ambiente nem da cultura, o que implica que cada caso deve ser estudado como uma situação particular e complexa. Por esta tendência, estão pensadores que rejeitam tanto o determinismo ambiental quanto as limitações ambientais. Estão Franz Boas e Malthus, que demonstravam “pouca preocupação com a natureza, porém uma nítida consciência quanto ao lado humano da equação” (MORAN, 1994, p.63). Segundo Chaves et al. (2008), pode-se compreender que há um entendimento dialético da relação sociedade/natureza, um processo interativo, o que impede admitir-se uma relação natural ou perfeita, em equilíbrio e harmoniosa, entre os indivíduos e a natureza. Isso porque esse intercâmbio entre Homem e natureza se modifica segundo as relações dos Homens entre si, o que altera o sistema de valores atribuído à natureza e seus recursos, bem como a lógica social e ecológica de suas práticas. Desse modo, no sistema capitalista nos relacionamos com a natureza para além da retirada do que é necessário para nossa sobrevivência: retiramos também o que satisfaz nossas necessidades socialmente fabricadas, nascidas de

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um modelo socioeconômico e cultural que emoldura nossos padrões de consumo.

7.6. Conclusão

De acordo com as tendências expostas acima, podemos reforçar a afirmação de Waldir MANTOVANI (2009, p.03)153:

Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura.

Nesse sentido, compreendemos que o estudo da relação entre Homem e natureza deve envolver necessariamente o estudo dos atores sociais que vivem em um determinado grupo/sociedade, na sua relação com determinado ambiente. Segundo Moran (1994, p. 86- 9), com a emergência das etnociências, a partir dos anos '50, se passou a tentar compreender como as pessoas percebem seu ambiente e como organizam essas percepções, dando novo impulso aos estudos sobre a relação Homem/natureza. Chaves et al. (2008) complementa que no caso dos povos tradicionais amazônicos essa compreensão passa, necessariamente, pelas relações intrínsecas entre organização sociocultural e o uso de recursos locais. A importância de estudar também o modo de organização de determinada população vem em função de uma ressalva de Moran (1994, p.89): “a etno- ecologia pode servir apenas para demarcar o sistema, mas não para especificar a utilização dos recursos”. Isso quer dizer que o avanço nos estudos da relação Homem/ natureza, especialmente de povos tradicionais, deve envolver não apenas o mapeamento dos recursos naturais utilizados, mas quem os utiliza e porque, como, quando, em que circunstâncias sociais, econômicas, etc. Sobre as especificidades desses povos, nos deteremos com mais profundidade na terceira parte da tese.

Por fim, a exposição desses pontos de vista diferentes sobre a compreensão da relação Homem/natureza nos mostra que, pela conjuntura construída ao longo da era moderna no ocidente, expandida e universalizada segundo o padrão eurocêntrico, a natureza ocupa um lugar de exterioridade e inferioridade, sendo a referência central o Homem. Ela foi considerada ameaçadora e recurso, subjugada por estratégias de poder e dominação para sua domesticação e utilização aos propósitos da constituição de um sistema econômico mundial centrado na Europa. Como nos mostra Santos (2008, p.189), “essa construção foi sustentada por uma portentosa revolução científica que trouxe no seu

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MANTOVANI, Waldir (2009). Relação homem e natureza: raízes do conflito. Gaia Scientia, vol. 03, nº 01, p. 3-10.

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bojo a ciência tal como hoje a conhecemos, a ciência moderna”. E adiciona que de autores como Galileu, Newton, Descartes e Bacon, emergiu um novo paradigma científico que separou a natureza da cultura e sociedade, submetendo-a a um guião determinístico de leis de base matemática. A natureza, irracional, não pode ser compreendida, apenas explicada e pela ciência moderna.

Como vimos, o acento maior da civilização ocidental moderna, segundo os padrões eurocêntricos universalizados, está nos acordos entre Homens – ou dito de outra forma, na dominação e hegemonia de um grupo sobre outros. A natureza foi colocada em segundo plano e tida como objeto das investidas humanas, sejam elas de contemplação da vida selvagem, da preservação do mundo natural ou do usufruto para o desenvolvimento e progresso da sociedade. Santos (2008) nos fala que este paradigma está apresentando sinais de crise, tendo como indicadores desta a crise socioambiental e a questão da biodiversidade. São discussões destacadas em muitos fóruns locais e globais, mas ainda longe de resoluções plausíveis, pois ainda atuamos segundo uma base de pensamento antiga e que necessita de reformulação urgente. Este será o tema do capítulo 09.

Em relação aos estudos das interações entre Homem e natureza, vimos que distintas abordagens foram dadas ao longo da história humana. Muitas das teorizações são colocadas como reificantes, ao invés de colocá-las sob o prisma do processo histórico. Por ainda não termos uma aliança firme entre ciências sociais e naturais, muitos erros são cometidos ao tentar teorizar sobre este tema. O que inclui também a redação desta tese. Nossa tentativa é de apontar minimamente que a organização social de povos tradicionais está atrelada ao acordo entre Homens (processo histórico) e às condições ambientais. Por estar em um campo em construção, apresentaremos falhas – que esperamos sejam corrigidas no futuro por pesquisadores que também lidem com a re-união de ciências diferentes.

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