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Parte II. Razão e Desenvolvimento

Capítulo 7. Cisão Homem/natureza na modernidade

7.3. Organização da sociabilidade e política

Se por um lado essa racionalidade cartesiana coloca em contraste Homem e natureza, por outro a organização da sociabilidade e a política nas sociedades modernas também encontram-se sedimentadas na soberania humana sobre o mundo natural, baseada em teorizações de pensadores cujas idéias se expandiram para além da esfera

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CHAVES, Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues; SIMONETTI, Susy Rodrigues; LIMA, Marly dos Santos (2008). Pueblos ribereños de la Amazonía: haberes y habilidades. Interações, Campo Grande, vol. 09, n. 02, p.129-139, jul./dez.

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filosófico-científica. Como nos explica Boaventura de Sousa SANTOS (2008)138, uma dessas idéias é a do contrato social, cujos princípios reguladores e fundamentos ideológicos e políticos constituíram a contratualidade real dessas sociedades. Entre os teóricos que desenvolveram essa idéia, se encontram Thomas HOBBES (2008)139 (1588-1679), John LOCKE (2006)140 (1632-1704) e Jean-Jacques ROUSSEAU (2001; 2002)141 (1712-1778).

Para Santos (2008, p.317), o contrato social é uma grande narrativa em que se funda a obrigação política moderna ocidental. Esta obrigação é complexa e contraditória, pois se expressa segundo uma tensão dialética entre regulação social e emancipação social, reproduzida constantemente pela polarização entre vontade individual (interesse particular) e a vontade geral (coletiva, bem comum). O Estado nacional, o direito e a educação cívica garantem o desenrolar pacífico e democrático dessa polarização num campo social que se denominou de sociedade civil. O procedimento lógico que estabelece o caráter inovador da sociedade civil reside, para Santos, na contraposição entre esta e o estado de natureza (ou estado natural). Como nos esclarece Calegare (2005)142, a doutrina jusnaturalista desses autores compreendia que a formação da sociedade ocorre a partir da domesticação/civilização do estado natural do Homem. Sociedade civil (societas civilis) é sinônimo de sociedade política (Estado) e estão em contraposição à sociedade natural (societas naturalis). Isso implica na afirmação de que o Estado (sociedade política/ sociedade civil) nasce “com a instituição de um poder comum que só é capaz de garantir aos indivíduos associados alguns bens fundamentais (...) que, no Estado natural, são ameaçados seguidamente” (BOBBIO, 1986, p.1206)143. Ou seja, o estado primitivo da humanidade, na qual o homem vivia segundo as leis da natureza, daria lugar ao estado civil por meio da civilidade fruto da união entre os Homens em formas institucionalizadas de organização e leis. Nesse momento, o Homem, com o surgimento do Estado, se diferencia de seu estado natural, primitivo e selvagem.

Santos (2008) explica que a diferença entre esses pensadores sedimenta-se na

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SANTOS, Boaventura de Sousa (2008). A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2ª Edição. São Paulo: Cortez. Coleção para um novo senso comum; v. 4.

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HOBBES, Thomas (1651/2008). Leviatã; ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Edição eletrônica livre. Disponível em: <http://ebooksbrasil.org/>. Acesso em: 03 de Ago, 2009.

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LOCKE, John (1690/2006). Segundo tratado sobre o governo civil. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. São Paulo: Vozes.

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ROUSSEAU, Jean-Jacques (1755/2001). Discurso sobre a origem da desigualdade. Tradução de Maria Lacerda de Moura. Edição eletrônica livre. Disponível em: <http://ebooksbrasil.org/>. Acesso em: 03 de Ago, 2009.

_______ (1762/2002). Do contrato social; ou princípios do direito político. Tradução de Rolando Roque da Silva. Edição eletrônica livre. Disponível em: <http://ebooksbrasil.org/>. Acesso em: 03 de Ago, 2009.

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CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguilar (2005). A transformação social no discurso de uma organização do

Terceiro Setor. 2005. 193 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São

Paulo.

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BOBBIO, Norberto et all. (1986). Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB. 1318p. Verbete Sociedade civil.

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maneira como entendem o estado natural/selvagem e o posterior investimento de poderes do Estado saídos do contrato social. Vejamos rapidamente algumas considerações desses pensadores.

Hobbes entende que o Homem, no estado primitivo/natural, estaria em constante estado de guerra (HOBBES, 2008, p.46): “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”. A segurança que o homem tem para viver com os outros homens ocorre pela superação da discórdia entre eles, vinda com a instituição do poder comum, da lei e da justiça, todas as qualidades que pertencem ao homem civilizado, isto é, que vive em sociedade (HOBBES, 2008, p. 47). A formação da sociedade civil (sinônima de sociedade política, ou Estado), portanto, se dá pela superação do estado selvagem por meio do contrato social – reflexo da civilidade do Homem – que assegura a liberdade, a paz interna, a defesa comum e outros aspectos da vida civilizada. O Estado é instituído quando uma multidão de homens, e não apenas grupo isolado, concorda e pactua (contrato social) em atribuir autoridade absoluta a uma figura (Leviatã) que lhe garanta viver em paz uns com os outros e protegidos do restante dos Homens (idem, p.61). Nessa linha interpretativa, temos que natureza e estado primitivo/selvagem do Homem são identificados com aspectos negativos da existência humana – o estado miserável da existência humana na terra. A vida em sociedade se reflete por leis, progresso e civilidade, o que representam aspectos nobres da vida terrena.

Locke, que contestação a obra de Hobbes, coloca algumas diferenças: o estado de natureza não é essencialmente um estado de guerra (ou estado de permissividade/liberdade total); o pacto comum (contrato social), que contrasta estado de natureza e sociedade civil (sinônima de sociedade política, ou Estado), constitui-se em um governo limitado constitucionalmente sob sistema jurídico e judiciário (LOCKE, 2006, p.58), e não na figura de uma autoridade absoluta. As semelhanças são: o estado de natureza é primitivo, miserável, atrasado e incivilizado; apenas com o estabelecimento de acordo coletivo, “a partir de uma união voluntária e do acordo mútuo de homens que escolhiam livremente seus governantes e suas formas de governo” (idem, p.63), os Homens podem superar a inconveniência do estado de natureza e, assim, viver adequadamente em sociedade. Por essa linha interpretativa, temos natureza e estado primitivo/selvagem identificados com aspectos negativos à convivência humana e o acordo entre Homens, que marcam o abandono desse estado e entrada à civilidade, como características positivas.

Rousseau, que também contesta Hobbes (ROUSSEAU, 2001, p.46-79), aponta as qualidades do homem selvagem (o bom selvagem) e como esse estado primordial do Homem (estado de natureza) o imbuía de uma série de características mais favoráveis para

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a sobrevivência física, metafísica e moral do que o Homem civilizado. O Homem nasce bom (perfectibilidade, virtudes morais e outras faculdades que recebe em potencial no estado de natureza), e a sociedade e a educação recebida nela é que o corrompem (idem, p.86-89). Entretanto, os obstáculos naturais e prejudiciais à conservação da vida do Homem o levam a se unir e formar, por agregação, uma soma de forças que possam “arrastá-lo sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-lo agir de comum acordo” (ROUSSEAU, 2002, p. 23). O contrato social surge para “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente” (idem, p.24). Portanto, para Rousseau a constituição da sociedade, por meio desse pacto coletivo (contrato social), traz ganhos suficientes para todos seus membros e, por isso, é o caminho que leva o Homem às conquistas mais caras à civilização e a formas mais adequadas de convivência entre eles, com resume José Sávio LEOPOLDI (2002, p.159)144. Por essa linha interpretativa, natureza e estados naturais/selvagens possuem características positivas, mas há ganhos coletivos em se formalizar um pacto que tragam melhores possibilidades de convivência e sobrevivência coletiva. Ou seja, a civilidade traz ganhos sobre o estado natural.

O ponto em comum a todos eles é a idéia de que a opção de abandonar o estado natural para constituir a sociedade civil e o Estado moderno é uma opção radical e irreversível (SANTOS, 2008, p.317). Os principais critérios do contrato social são: 1) constitui-se apenas de indivíduos e exclui a natureza, sendo que “a única natureza que conta é a humana e mesmo esta apenas para ser domesticada pelas leis do Estado e pelas regras de convivência da sociedade civil. Toda a outra natureza ou é ameaça ou é recurso” (idem, p.318). 2) sedimenta-se sob a cidadania territorialmente fundada, isto é, alguns são designados cidadãos e são parte no contrato social, enquanto os demais (mulheres, migrantes, minorias étnicas, etc., que vivem em estado de natureza) não fazem parte deste – e todos convivem dentro de um mesmo espaço geopolítico. 3) baseia-se no comércio público de interesses, que separa espaço público e espaço privado. Ou seja, “só os interesses exprimíveis na sociedade civil são objeto do contrato. Estão, portanto, fora dele a vida privada, os interesses pessoais de que é feita a intimidade, o espaço doméstico, em suma, o espaço privado” (idem, ibidem).

As tensões e antinomias subjacentes a essa contratualização, por sua vez, são controladas segundo princípios reguladores metacontratuais: regime geral de valores; sistema comum de medidas; espaço-tempo privilegiado. Tal como nos resume Santos (2008, p. 321), “a idéia do contrato social e seus princípios reguladores são os fundamentos

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LEOPOLDI, José Sávio (2002). Rousseau – Estado de natureza, o 'bom selvagem' e as sociedades indígenas.

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ideológicos e políticos da contratualidade real que organiza a sociabilidade e a política nas sociedades modernas”. E acrescenta que “o contrato social visa criar um paradigma sócio- político que produz de maneira normal, constante e consistente quatro bens públicos: legitimidade da governação, bem-estar econômico e social, segurança, identidade cultural nacional” (idem, ibidem).

Em suma, pudemos ver que organização da sociabilidade e a política nas sociedades modernas ocidentais também estiveram pautadas numa cisão que caracterizou o domínio, civilização e domesticação do Homem sobre a natureza e seu estado primitivo e selvagem.