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INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA) Kambeba Disponível em:

11.3.1. Uso coloquial, identidade e estereotipia

O uso coloquial de 'caboclo' está ligada a uma forma de categorização social complexa, que inclui dimensões geográficas, raciais e de classe (LIMA, 1999, p. 06):

1) Geográfica, pois refere-se a um tipo geral característico da população rural da Amazônia. Esse homem típico evoca a a figura de um homem (essencialmente rural e ribeirinho) associado ao ambiente amazônico (rios e floresta). O estereótipo que marca essa imagem liga-se às suas atividades econômicas de subsistência: caça e pesca – que trazem maior apelo e associação à natureza do que a agricultura. A imagem da mulher cabocla é menos exótica e associada mais à agricultura e atividades domésticas, e “é apresentada, entretanto, em outro contexto: como 'a caboclinha', simbolizando uma sensualidade mansas” (LIMA, 1999, p. 13)277.

2) Racial, uma vez que nomeia o filho do branco com índio. Esse 'tipo racial' caracteriza

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LIMA, Deborah de Magalhães (1997). Equidade, desenvolvimento sustentável e preservação da biodiversidade: algumas questões sobre a parceria ecológica na Amazônia. In: CASTRO, Edna Maria Ramos de & PINTON, Florence (orgs.). Faces do trópico úmido: conceitos e novas questões sobre

desenvolvimento e meio ambiente. Belém: CEJUP; NAEA-UFPA.

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LIMA, Deborah de Magalhães (1999). A construção histórica do termo caboclo: sobre estruturas e representações sociais no meio rural amazônico. Novos Cadernos NAEA, vol .2, nº. 2. Belém : NAEA/UFPA. Disponível em: <http://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/issue/view/14>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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Medeiros (2004), acrescenta um outro ângulo da mulher cabocla: “Torres (2003) acrescenta que o jeito introspectivo da mulher 'caboca' da zona interiorana do Amazonas é freqüentemente interpretado também como 'rudeza do tipo brava, amuada, sonsa, calada e arredia', sem considerar que os nativos amazônicos, de modo geral, têm esse comportamento silencioso, um tanto arredio, que tem a ver com a vida calma do interior e a estreita relação do caboclo com esse ambiente, traduzindo-se como uma expressão cultural desse povo” (idem, p.55).

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mais especificamente a mistura entre o português e a índia, pois a história de colonização amazônica foi marcada preponderantemente pela migração desses europeus, que utilizavam a mão-de-obra escrava indígena e tinham incentivos da Coroa para miscigenação. Migrantes de outros países, bem como a maioria dos negros, foram mais expressivos em outras regiões do país. Outras misturas (mulato: branco com negro; cafuzo: índio com negro) não são mestiçagens exclusivas de uma ou outra região, enquanto caboclo, é mais específico da nova 'raça' da Amazônia.

3) De classe, por ser usada na construção de uma representação da classe superior amazônica como branca e a classe baixa rural como cabocla – o que, pelo uso da palavra, corrobora para a manutenção da estratificação social que vem deste a colonização e continua mantendo um abismo entre esses segmentos. 'Caboclo' não apenas descreve, mas cria uma estrutura social (LIMA, 1999, p. 27).

A autora ainda menciona o uso de 'caboclo' como categoria relacional, isto é, “o termo identifica uma categoria de pessoas que se encontra numa posição social inferior em relação àquela com que o locutor ou a locutora se identifica” (idem, p. 07). O superior, ligados a qualidades urbana, branca e civilizada. O inferior, incluem as qualidades rurais, descendência indígena e não civilizada (ou seja, analfabeta e rústica). Podemos dar alguns exemplos: exitem casos de indígenas que vivem em áreas indígena e se identificam como 'caboclo', pois 'índio' está ligado a características pejorativas e selvagens isolados; outros usam 'caboclo' apenas no contato interétnico: eles são 'caboclo', os 'índios' são grupos isolados arredios e os brancos recebem uma outra rotulação. Atualmente, alguns indígenas se referem diretamente à sua etnia – devido à valorização política que a identidade indígena vem ganhando (informação verbal)278. Jovens de Manaus sentem-se ofendidos ao serem chamados de 'caboclo', por ser uma estigmatização negativa (MEDEIROS, 2004); assim como sentem-se ofendidos pelo mesmo motivo muitas pessoas das cidades da Amazônia, que consideram 'caboclo' as pessoas do meio rural. Algumas populações rurais amazônicas também rejeitam o termo, por considerar 'caboclo' o índio; enquanto outras, adotam-no como auto-referência. É o caso da comunidade de Tauaru, onde a população se identifica como 'caboclo', pois 'índio' são os Ticuna (das comunidades vizinhas), com outro idioma, cultura e hábitos; enquanto os Cocama279 são tidos como 'civilizados' e não 'índio', por falarem português, terem idioma mais fácil de aprender que o Ticuna e terem hábitos

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Informação dada por Moacir Biondo, do Instituto de Permacultura da Amazônia, cuja experiência em diversas áreas indígenas acumula-se por mais de 20 anos. E também descrita em vários exemplos citados por Lima (1999, p. 09-10).

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semelhantes aos 'civilizados'280.

Cabe aqui um breve parêntese. Identificar-se a si como pertencente a um grupo pode ser melhor compreendido quando abordamos tais situações segundo o prisma do conceito de identidade – do latim, idem: igual, idêntico, como aponta Philip GLEASON (1983, p. 919)281. Há uma diferença de ordem conceitual que pode ser feita entre identidade pessoal e identidade social.

Segundo Alessandro Soares da SILVA (2006, p. 419-20)282, considera-se que na construção da identidade pessoal estão presentes processos de internalização de normas, valores, crenças, etc., que irão constituir a maneira como um indivíduo é reconhecido/se reconhece a si mesmo. Seguindo o raciocínio de Geraldo José PAIVA (2007)283, podemos dizer que o foco desse tipo de conceituação são os processos de permanência: o que, na interioridade desse indivíduo, faz com que reconheça o idêntico em relação às variações da história pela qual passa – em geral creditando-se à memória essa função de continuidade. Segundo o autor, esse tipo de abordagem é localizada – especialmente por cientistas sociais (da Sociologia e Antropologia) – como dentro dos domínios da Psicologia (da

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Essa é uma situação semelhante (talvez análoga) ao que descreve Oliveira (1996) a respeito dos Ticuna entre os anos 1959-62: 'índio' são as tribos isoladas, arredias, com hábitos incivilizados; 'caboclo' são a si próprios, nem 'índio' e nem compartilhando do ethos do 'civilizado'; 'civilizado' são os 'brancos'. Para Oliveira (1996, p. 117): “o contato entre índios e brancos no alto Solimões teve como sua consequência mais imediata o surgimento de uma nova categoria social: o caboclo. O caboclo, na área tomada para investigação, é o Tükúna transfigurado pelo contato com o branco. Ele se diferencia dos grupos tribais do Javari, porquanto se constitui para o branco numa população indígena pacífica, 'desmoraliza-sa', atada às formas de trabalho impostas pela civilização, e extremamente dependente do comércio regional. Em suma, é o índio integrado (a seu modo) na periferia da sociedade nacional, oposto ao 'índio selvagem', nu ou semivestido, hostil ou arredio, exemplificado na paisagem do alto Solimões pelas tribos do Quixito e do Curuçá. Em certo sentido, o caboclo pode ser visto ainda como o resultado da interiorização do mundo do branco pelo Tükúna, dividida que está sua consciência em duas: uma, voltada para os seus ancestrais, outra, para os poderosos homens que o circundam. O caboclo é, assim, o Tükuna vendo-se a si mesmo com os olhos do branco, isto é, como intruso, indolente, traiçoeiro, enfim, como alguém cujo único destino é trabalhar para o branco. Parafraseando Hegel, poder-se-ia dizer que o caboclo é a própria 'consciência infeliz'. Fracionada sua personalidade em duas, ela bem retrata a ambiguidade de sua situação total”.

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Gleason (1983, p. 917-919) relata que o conceito de identidade é uma invenção do século XX e passa a se popularizar através das produções das ciências sociais principalmente a partir dos anos '50, com a sistematização da 'teoria do papel', da 'teoria do grupo de referência' e do 'interacionismo simbólico' nas ciências sociais e, posteriormente, pela produção dos psicólogos, em especial pelas obras de Erikson (1967), com as considerações sobre a 'crise de identidade'.

ERIKSON, Erik Homburger. (1967). Identity, Psychosocial. In: Sills, D. L. International encyclopedia of

social sciences. New York: The MacMillan Company and The Free Press, v. 7, p. 61-65.

GLEASON, Philip. (1983). Identifying identity: a semantic history. Journal of American History, vol. 69, n. 04, March, p. 910-931. Disponível em: <http://www.soec.uni- jena.de/fileadmin/soec/media/GSBC/Veranstaltungen/Gleason_Identifying_identity_-

_a_semantic_history.pdf.>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

282

SILVA, Alessandro Soares da (2006). Marchando pelo Arco-Íris da política:A Parada do Orgulho LGBT na

Construção da Consciência Coletiva dos Movimentos LGBT no Brasil, Espanha e Portugal. 612p. Tese

(doutorado). Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: PUC-SP

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PAIVA, Geraldo José (2007). Identidade psicossocial e pessoal como questão contemporânea. Revista Psico, Porto Alegre, vol. 38, nº. 1, jan./abr, pág. 77-84. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/revistapsico/article/view/1926>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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Personalidade) e tende a considerar a identidade como algo estático e restrita à esfera individual284. No entanto, concordamos que ponderar o uso de 'caboclo' pelo viés apenas da identidade pessoal não nos auxilia a entender as vicissitudes sociais de seu uso, restringindo-nos ao foco da singularidade do indivíduo e sua história, isolado de um contexto social mais amplo.

Já dentro da perspectiva da Psicologia Social, entende-se que não se deve separar o reconhecimento de si da coletividade – por isso fala-se em identidade social. Há dinamismo no processo de construção identitária que envolve aspectos individuais e sociais, que só são distintos do ponto de vista didático. Segundo essa ótica, a percepção de si envolve uma operação de delimitação do que é meu e o que é do outro, imersa nas relações sociais das quais eu me identifico e, por isso, me sinto pertencente ou não a determinados grupos. Essa compreensão psicossocial segue as teorizações de Tajfel (1981, p. 258), que define identidade social como o sentimento de pertença de um indivíduo a um grupo, pela percepção de características comuns a este e de diferenças a grupos exteriores285. Essa ferramenta conceitual286 é melhor do que a anterior, pois com ela

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Uma visão errônea, mesmo que dentro de uma abordagem 'psicológica'. Erikson (1967, p. 61) define a identidade psicossocial como o sentido subjetivo de existência contínua e de memória coerente de cada um, ao mesmo tempo que refere-se ao lugar que um indivíduo ocupa em sua comunidade. O senso de existência permanece articulado pela memória, ou seja, a memória dos fatos testemunha a singularidade de cada identidade. Por outro lado, a apreensão e a conservação da memória está mediada segundo as condições sociais do indivíduo, isto é, as condições de percepção modelam os registros de memória do mesmo modo que também o ato de lembrar é mediado por sua condição atual. Por exemplo, o registro que um indivíduo faz de um fato estando imerso em uma circunstância de preconceito; interpelado por sentimentos evocados por uma situação difícil; ou até mesmo mediados pelas crenças grupais e ideologia.

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Na perspectiva de Tajfel, a percepção de grupos, objetos, eventos e pessoas acontece de acordo com suas semelhanças físicas, psíquicas, comportamentais, entre outras outras. Esse ato de categorizar é um ato cognitivo de encaixe em categorias sociais pré-existentes, construídas socialmente antes mesmo do nascimento do indivíduo (TAJFEL, 1972). Essa percepção social consiste em, por um lado, categorizar tais percepções em grupos de quem possui ou não as características percebidas e, por outro, identificar-se a si como pertencente ao que denomina de ingroup (percebido como mais heterogêneo) e, os demais, no

outgroup (percebido com membros mais homogêneos). Esse pertencimento a um grupo pode resultar da

escolha da pessoa, de imposição externa ou do acaso, tendo como aspecto chave da pertença o elemento motivacional da autoestima, que inicia, mantém, modifica ou termina o processo de adesão ao grupo (PAIVA, 2005, p. 79)

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Outras definições de identidade poderiam ter sido utilizadas: 1) dos autores clássicos em Psicologia Social, as proposições dos discípulos da Escola de Chicago (interacionismo simbólico), com Sarbin e Scheibe (teoria do papel) ou Stryker (teoria da identidade); a diferenciação dada por Turner à identidade social de Tajfel, da escola de Bristol (substitui 'categoria' por 'protótipo'; e dá mais ênfase ao metacontraste na diferenciação inter-grupal). 2) a teoria de identidade de Antônio da Costa CIAMPA (1987), recentemente aprimorada segundo o sintagma identidade-metamorfose-emancipação, como bem descreve Lima (2005; 2009). 3) outras noções contemporâneas pautadas em leituras de estratos abastados da sociedade ocidental, que qualificam a identidade como mínimas, vazias, saturadas, nômades, fluidas, líquidas e possíveis, de acordo com os psicólogo Philip Cushman, Kenneth Gergen, Hazel Markus & Paula Nuria, e os sociólogos Christopher Lasch, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman (PAIVA, 2005, p. 77).

CIAMPA (1987). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense.

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podemos compreender com mais facilidade o que leva uma pessoa a se considerar como 'caboclo', seu impulso para agir de acordo com o grupo, o reforço de preconceitos e condutas, etc., tanto em função de aspectos motivacionais (porque me sinto pertencente) quanto sociais (eu, nós X os outros; estereótipos sociais; relações/conflitos inter-grupais) da pertença a esta ou outras categorias sociais pré-existentes: as identidades de gênero, raça, etnia, sexual, de classe, como coloca Deborrah E. S. FRABE (1997)287.

Apesar de ser um conceito bastante útil para compreensão de fenômenos psicossociais – que nos auxiliou nas pesquisas de campo, este também apresenta deficiências, como esboçado por Aluísio Ferreira de LIMA (2009, p.150-9)288: essas teorizações podem estar associadas a interesses sociais que as tornam formas de manipulação ideológica, isto é, a identidade é pressuposta e obedece a normatizações sociais que perpetuam as categorizações e a condição do indivíduo como estanque. O indivíduo, enclausurado numa identidade pré-existente, re-produz o social e desconsidera- se tanto a dimensão política de lutas grupais por transformações do status quo (rompimento do pré-suposto e criação de novas identidades), quanto as metamorfoses individuais em direção à emancipação (romper com a condição de opressão e estigmatização de 'caboclo', por exemplo). Em seção mais adiante, retomaremos outro uso da 'identidade' como uma ferramenta conceitual, talvez mais adequada, para compreensão de algumas dimensões psicopolíticas da vida dos povos amazônicos.

Retomando a discussão a respeito do 'caboclo', este não é, portanto, um termo fixo a um grupo específico. Trata-se de uma forma de categorização que identifica grupos e também pode ser usado para autodefinição, tal como o termo 'índio'289. 'Caboclo' ganha significado concreto por meio de características e estereótipos associados a ele. Da primeira, há o modo de vida amazônida que os torna singulares: habitação, meios de transporte, instrumentos de trabalho, conhecimentos e manejo dos recursos florestais, hábitos alimentares, religiosidade, mitos, sistema de parentesco e outras particularidades sociais. Já a estereotipia do 'caboclo' se associa a alguém preguiçoso, indolente, passivo,