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Reforço teológico, antropocentrismo e áreas de preservação

Parte II. Razão e Desenvolvimento

Capítulo 7. Cisão Homem/natureza na modernidade

7.4. Reforço teológico, antropocentrismo e áreas de preservação

Se do ponto de vista científico e sócio-político justificou-se essa soberania humana, também pela leitura da teologia se atribuiu um lugar diferente do Homem na sua relação com a natureza, como nos aponta Keith THOMAS (1988)145. Segundo o autor, os intelectuais e teólogos da Inglaterra do início da era moderna concebiam que a natureza havia sido criada para servir ao Homem, justificando essa máxima segundo inúmeras interpretações bíblicas. Por exemplo, dizia-se que o jardim do Éden fora criado para servir ao Homem e havia perfeição na relação de Adão, Eva e a natureza ao redor. Entretanto, a natureza se tornara selvagem e hostil com a caída do Homem pelo pecado. Após o dilúvio, houve a renovação da autoridade do Homem sobre a natureza e tal direito humano sobre plantas e animais fora confirmado por Jesus, na sua vinda à Terra.

Essa visão antropocêntrica afirmava que todos os animais e plantas existiam para proporcionar ao Homem o bem-estar necessário para a vida na terra. A autoridade humana sobre a natureza era inquestionável e até mesmo os relatos de viajantes vindos do Novo Mundo e do Oriente, que contavam do respeito pela vida não-humana na interação Homem/natureza, era vista com desdém no Velho Mundo (THOMAS, 1988, p.26). Entretanto, o próprio autor esclarece que o antropocentrismo não foi exclusividade dos europeus, pois em outras culturas também existiram crenças de que o Homem era guardião de todas as coisas existentes no mundo, permitindo-lhes explorar todos os recursos naturais disponíveis para a sobrevivência sem restrições de qualquer cunho.

O que queremos salientar, na esteira de Thomas (1988, p.30), é que no início do período moderno, os intérpretes, literatos e teólogos ingleses faziam leituras antropocêntricas do mundo a seu redor, colocando o Homem como senhor e a natureza como subordinada.

Dessa maneira, o contexto antropocêntrico dos intelectuais e dos teólogos ingleses,

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THOMAS, Keith (1983/1988). O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e

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reforçado pelos literatos, veio reforçar a sujeição do mundo natural pelo Homem. O reflexo disso pode ser observado: na compreensão de que a civilização é resultante do domínio humano sobre a natureza; no nascimento da História Natural (Botânica e Zoologia), para se poder identificar o uso e virtude das plantas, bem como a serventia dos animais, para os propósitos humanos; no crescente interesse que o mundo natural despertou na elite britânica do século XIX, na forma de observação estética na natureza selvagem, que aliado à interesse científica e ao impulso religioso de tutela da natureza pelo Homem, levaram os ingleses a criarem leis de proteção às aves selvagens e, na seqüência, à natureza intocada de forma mais ampla (THOMAS, 1988, p.332-4)146.

Uma das conseqüências da expansão dessas concepções da relação entre Homem e natureza, na qual o mundo selvagem (wilderness) passa a ser revalorizado pela sociedade e, portanto, deve ser preservado da presença antrópica do ser humano, ainda hoje é visível em muitas políticas adotadas pelos governos mundiais e que habita o imaginário popular. Como nos mostra Diegues (2004b), trata-se do mito moderno da natureza intocada: o mundo natural deve permanecer preservado da presença destrutiva do Homem, no sentido mais amplo que isso venha a adquirir. Isso impulsionou, no século XIX, a criação dos parques nacionais norte-americanos – o modelo de área protegida das unidades de conservação, que foi exportado para inúmeros países, incluindo o Brasil (DIEGUES, 2004b, p.35-38)147.

Como reforçado por Diegues & André de Castro Cotti MOREIRA (2001)148, os

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Em seu livro, Thomas (1988) descreve que houve uma mudança de sensibilidade do Homem em relação às plantas e animais. Em meados do século XVI, valorizava-se a natureza domesticada (campos cultivados, jardins simétricos, criação de animais). Já em meados do século XIX, houve uma mudança de atitude, na qual se passou a valorizar a natureza intocada (campos selvagens, áreas intocadas, animais no habitat natural). Esse novo relacionamento com a natureza inspirou os ingleses e, posteriormente, os norte- americanos, a criarem leis de proteção do mundo selvagem.

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“A noção de mito naturalista, da natureza intocada, do mundo selvagem, diz respeito a uma representação simbólica pela qual existiram áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado 'puro' até anterior ao aparecimento do homem. Esse mito supõe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação da natureza. O homem seria, desse modo, um destruidor do mundo natural e, portanto, deveria ser mantido separado das áreas naturais que necessitam de uma 'proteção total'. Quando se fala em mito moderno, refere-se a um conjunto de representações existentes entre setores importantes do conservacionismo ambiental de nosso tempo, portador de uma concepção biocêntrica das relações homem/natureza, pela qual o mundo natural tem direitos idênticos ao ser humano. Como corolário dessa concepção, o homem não teria o direito de dominar a natureza. Esse mito tem raízes nas grandes religiões, sobretudo cristã, e está associado à idéia do paraíso perdido. Ele se revelou, no entanto, na concepção dos 'parques nacionais' norte-americanos, na segunda metade do século XIX, pela qual porções de território consideradas 'intocadas' foram transformadas em áreas naturais protegidas, nas quais não poderia haver morador. Essas áreas selvagens foram criadas em benefício das populações urbanas norte-americanas que poderiam, como visitantes, apreciar as belezas naturais. Essa representação do mundo natural, expressa pelos chamados 'preservacionistas puros' como John Muir e Thoreau, constituiu-se na justificativa para a criação de áreas naturais protegidas que deveriam permanecer intactas. Esse modelo de conservação chamada de 'moderna' e a ideologia que lhe é subjacente espalhou-se para o resto do mundo” (DIEGUES, 2004b, p.53).

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DIEGUES, Antônio Carlos Sant'Ana & MOREIRA, André de Castro Cotti (2001). Apresentação. In: ______ (orgs.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB/USP.

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modelos que subsidiaram inúmeras políticas conservacionistas/preservacionistas149 e ocupação da floresta, adotadas no Terceiro Mundo, são oriundos de modelos norte- americanos de áreas naturais protegidas, desde o século XIX, que partem de uma visão preservacionista baseada no pressuposto de que o Homem é o destruidor da natureza. Tal abordagem, ainda predominante atualmente, é erigida tomando-se como fundamento uma concepção estática de natureza, desvinculada da presença do Homem sobre ela e sem levar em consideração os fatores sociais, históricos e culturais que estão nos alicerces dessas compreensões (THOMAS, 1988; PONS, P., 1997150; PONS, X., 1997151).

Diegues (2000, p.1-19) destaca que na atualidade grande parte das visões de conservação/preservação da natureza principia de uma concepção ambientalista generalizada, tecnocrática e neoliberal que tende a considerar essa questão como solucionáveis pelas técnicas modernas e pelo mercado, sem levar em conta as teorias mais amplas relativas aos estudos das relações Homem/natureza.