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MONTERO, Maritza (2004a) Introducción a la psicología comunitaria: desarrollo, conceptos y processos.

Capítulo 3. Da necessidade iminente do rompimento das barreiras disciplinares

3.3. Multi e pluridisciplinaridade

3.3.3. Como intercâmbio de saberes

O terceiro significado de interdisciplinaridade é aquele que tenta integrar os conhecimentos de povos tradicionais99 à ciência ocidental, considerando tais saberes como se fossem também uma maneira científica de ordenar, classificar e agir sobre o mundo – por isso, interdisciplinar. Seguindo a esteira de Lévi-Strauss, Diegues (2004a, p.30-43) argumenta que o Homem neolítico já usava de técnicas de cultivo e domesticação oriundas de observação ativa e metódica, com hipóteses ousadas e controladas para serem rejeitadas ou aprovadas por experiências empíricas. Igualmente, povos tradicionais se utilizam de técnicas que são: acumuladas durante longo período de tempo; transmitidas oralmente e pela prática; empíricas, por serem constantemente retestadas; e dinâmicas, por se transformarem em função das mudanças socioeconômicas, tecnológicas e físicas. Em suma, a diferença entre o conhecimento tradicional e a ciência seria mais de grau (quantitativo) do que de tipo (qualitativo), por compartilhar da vontade de saber, ser capaz

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Moscovici propõe superação do entendimento da relação Homem/natureza do viés naturalista e culturalista pelo que chama de novo naturalismo, que se baseia em três idéias principais: 1) o Homem produz o meio que o cerca e é ao mesmo tempo seu produto; 2) a natureza é parte de nossa história; 3) a coletividade, e não apenas o indivíduo, se relaciona com a natureza. Segundo suas colocações, deve-se substituir a separação Homem/natureza pela unidade, em que o Homem encontra na natureza não a uniformidade, mas a diversidade, e que cada cultura, região e coletividade a traduzem de sua maneira, devendo-se intercambiar essas palavras, ao invés de impô-las uns aos outros. Isso implica num retorno do Homem à natureza, tornar a vida mais 'selvagem' (ensauvager la vie). (MOSCOVICI, 1969, 1974, in DIEGUES, 2004b, p.48-50).

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Esse termo será discutido na terceira parte, ao apresentarmos o debate sobre os povos da Amazônia. No momento, utilizamos 'povos tradicionais', tal como consta no Decreto 6040, que no inciso I do artigo 3º, define como “Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.

BRASIL. Decreto 6040, de 07 de Fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm>. Acesso em: 03 de Ago, 2009.

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de realizar experimentos controlados, quantificar fenômenos e usar métodos elaborados de interferência e reflexão.

Desse modo, a interdisciplinaridade acontece na aliança de cientistas com povos tradicionais, em que ambos se unem para compreender e interferir em um determinado objeto: o mar, o manejo da pesca, a conservação de determinada área, etc. Um exemplo dessa coordenação de conhecimentos comuns já vem sendo sistematizada também em novos campos disciplinares, além dos já citados, como por exemplo a Antropologia Marítima (ou Socioantropologia Marítima) – uma subdisciplina da Antropologia, em que a gente do

mar, com sua variedade e complexidade dos sistemas técnicos, sociais e simbólicos

(DIEGUES, 2004a), é alvo dos estudos antropológicos, mas é o mar o elemento articulador e de convergência entre os diferentes conhecimentos (científicos e tradicionais).

Segundo a argumentação exposta até este momento, podemos compreender a interdisciplinaridade segundo três maneiras: 1) uma nova inteligibilidade, que requer o rompimento com a racionalidade da ciência moderna e o modo científico padronizado de conhecer – o que exige uma atitude diferenciada; 2) interseção metodológica de disciplinas segundo seus diferentes graus; 3) intercâmbio de saberes da ciência moderna com conhecimentos tradicionais. As três, a seu modo, implicam na reconsideração do pesquisador sobre seu modo de conhecer e como chegar a determinadas verdades.

Esta pesquisa teve de ser realizada segundo o crivo desses três modos de entender a interdisciplinaridade, por motivos muito simples:

a) apenas pela Psicologia e Psicologia Social não seria possível fazer leituras suficientemente boas das questões socioambientais que perpassam a realidade de uma comunidade ribeirinha;

b) não há ainda produção suficiente e expressiva, dentro dessas disciplinas, que versem sobre a vida de povos amazônicos;

c) ao lidar com pessoas consideradas como 'povos tradicionais', entramos em um universo discursivo e metodológico já estudado por outras disciplinas (acima citadas);

d) para melhor entendimento da vida dessas pessoas, é condição básica adotar uma postura de abertura e de diálogo para co-construir um conhecimento sobre essas vidas; e) a maneira como essas pessoas se relacionam com a natureza é diferente das de alguém vindo de um referencial urbano-industrial, o que nos faz ponderar sobre um modo de conhecer para além do pensamento, da idéia, da racionalidade.

Portanto, um percurso de aprendizagem inspirado sobre a pesquisa interdisciplinar, que nos exigiu abordar novas inteligibilidades do saber e que pode conter erros e acertos – o que desde já nos faz remeter à observância das limitações que este trabalho venha apresentar. A desconfiança é um bom indicador para esse trajeto: não sabemos se conseguimos ter o rigor e clareza necessários às nossas disciplinas de partida, assim como

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não podemos afirmar que fizemos uma pesquisa de cunho interdisciplinar. Essa é a aprendizagem própria da pesquisa e temos consciência de que erros e acertos são inerentes à busca da verdade. Nosso aprofundamento nos termos, apesar de extenso e meticuloso, se deve ao que coloca Miranda (2008, p.120): “rigor, no sentido de 'habitar' os conceitos (Fazenda, 2001, p.47), reconhecendo sentidos e compreendendo significados e usos, exigindo de si uma real compreensão de termos, propiciando nos olhares, a cada momento de investigação, um olhar em camadas”.

3.5. Transdisciplinaridade

Transdisciplinaridade. Como mostra Fazenda (2008, p.26), “quem habita o território da interdisciplinaridade não pode prescindir dos estudos transdisciplinares”. Isso porque, como descrito pela autora, bem como por Morin (2008) e Japiassu (2006), os estudos e pesquisas sobre transdisciplinaridade antecedem os da interdisciplinaridade. Vejamos porque.

Segundo Nicolescu (1996), transdisciplinaridade concerne, como o prefixo 'trans' indica, ao que está ao mesmo tempo entre, através e além das disciplinas. Sua finalidade é a compreensão do mundo presente, cujo um dos imperativos é a unidade do conhecimento. Para Morin (2008, p.135),

O desenvolvimento da ciência ocidental desde o século XVII não foi apenas disciplinar, mas também um desenvolvimento transdisciplinar. Há que dizer não só as ciências, mas também 'a' ciência, porque há uma unidade de método, um certo número de postulados implícitos em todas as disciplinas, como o postulado da objetividade, a eliminação da questão do sujeito, a utilização das matemáticas como linguagem e um modo de explicação comum, a procura da formalização, etc. A ciência nunca teria sido ciência

se não tivesse sido transdisciplinar.

Vemos que a transdisciplinaridade busca a unidade do conhecimento. No caso da ciência moderna, esses princípios de unidade, como a matematização e formalização, foram os que enclausuraram as disciplinas – por serem unidades hiperabstratas e hiperformalizadas que tornaram o real unidimensional. Atualmente, a transdisciplinaridade busca a unidade não pela redução do real a uma leitura, mas pelo diálogo possível entre diferentes dimensões da realidade. Por esse motivo, parte da disciplinaridade para compreender a realidade, mas não se restringe àquela.

Por que a busca da unidade? Uma pergunta que parece de ordem metafísica, mística, religiosa. Para Japiassu (2006, p.73)

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perdeu quase todos os seus referenciais, todos acreditam que a questão da unidade precisa ser posta, notadamente porque somos obrigados a enfrentar, de um lado, a ultra-especialização dos saberes, do outro, a desagregação dos vínculos sociais e 'políticos' em favor dos neotribalismos conduzindo a uma atomização de nossos conhecimentos e da identidade humana. Enquanto a dispersão e a especialização dos saberes foram decisivas para a fragmentação de nossos conhecimentos; enquanto as racionalidades filosófica e científica, a poesia e a experiência mística parecem tão separadas em domínios irredutíveis e opostos, indispensável se torna a instauração de uma abordagem transdisciplinar tentando reglobalizar nossos saberes e promover, não somente uma unidade essencial do ser humano, mas do mundo onde vivemos.

Esse panorama indica que a busca de uma nova transdisciplinaridade – a anterior foi da ciência moderna – pode possibilitar a superação da patologia que se encontra o saber atualmente, como nomeia Japiassu.

Quais os princípios dessa nova transdisciplinaridade? Nicolescu (1996) diz que no pensamento clássico não há nada no espaço entre e através das disciplinas, e nem mesmo

fora de cada um dos fragmentos que compõem a imagem da pirâmide do conhecimento.

Mesmo com o big bang disciplinar, a pirâmide é inteira e setorizada. A perspectiva transdisciplinar pode ser considerada segundo três pilares: 1) há vários níveis de realidade, que se configura como um espaço de descontinuidade e, por isso, todo conhecimento é complementar – e não fragmentado e num só nível da realidade. 2) a lógica do terceiro incluído, em que proposições contrárias podem ser simultaneamente verdadeiras. Pela lei do terceiro excluído temos: ou A é x ou é y, e não há terceira possibilidade. Pela compreensão transdisciplinar, essa terceira possibilidade rompe com o pensamento dualista e permite captar níveis da realidade excluídos pelo pensamento clássico. 3) O mundo presente é impossível de ser inscrito dentro dos parâmetros de uma só disciplina, sendo necessária a compreensão da 'complexidade'100, para captar as intra, inter e trans-relações entre os vários níveis da realidade – a unidade plural do conhecimento. Esses três pilares determinam também a metodologia transdisciplinar.

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Vejamos esquematicamente o que Morin (2008)explica sobre algumas 'avenidas' que conduzem ao 'desafio da complexidade': 1) a irredutibilidade do acaso e da desordem; 2) transgressão da abstração universalista que elimina singularidade, localidade e temporalidade; 3) a complicação, em que fenômenos apresentam incalculáveis interações e inter-retroações; 4) a misteriosa relação complementar e antagonista de ordem, desordem e organização; 5) a organização, que “é aquilo que constitui um sistema a partir de elementos diferentes; portanto, ela constitui, ao mesmo tempo, uma unidade e uma multiplicidade” (idem, p.180); 6) o princípio hologramático (“holograma é a imagem física cujas qualidades de relevo, de cor e de presença são devidas ao fato de cada um dos seus pontos incluírem quase toda a informação do conjunto que ele representa” (idem, p.181)) e o princípio da organização recursiva, que “é a organização cujos efeitos e produtos são necessários a sua própria causação e a sua própria produção” (idem, p.182); 7) a crise de conceitos fechados e claros, isto é, que clareza e distinção são os únicos sinais de verdade; 8) a volta do observador na observação, do conceptor na concepção, do diálogo com a contradição, a incerteza, o irracional e o erro para alcançar uma verdade, do pensamento dialógico (duas lógicas, dois princípios, estão unidos sem que a dualidade se perca nessa unidade – por exemplo, o homem é totalmente biológico e totalmente cultural ao mesmo tempo).

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A Carta da Transdisciplinaridade101, em seus 14 artigos, explica: é complementar à abordagem disciplinar, por possibilitar a emergência do confronto de disciplinas a novos dados que as articulam entre si e abertura para tudo aquilo que as ultrapassa e atravessa, o que enriquece a leitura da natureza e da realidade. É multirreferencial e multidimensional. Reconhece a existência de vários níveis da realidade. Tenta conciliar a visão das várias ciências, filosofia, arte, literatura e poesia. Leva atitude aberta em relação aos mitos e religião. Baseia-se no diálogo e discussão, seja de origem ideológica, religiosa, política ou filosófica. Não privilegia apenas a abstração, mas também o papel da intuição, imaginário, sensibilidade e do corpo na transmissão do conhecimento e ensina a contextualizar, concretizar e globalizar. Tem no rigor, abertura e tolerância suas características fundamentais, isto é: “o rigor na argumentação, levando em conta todos os dados, é a proteção contra desvios possíveis. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às idéias e verdades contrárias às nossas” (artigo 14).

Para Japiassu, a transdisciplinaridade é um objetivo utópico ainda não concretizável, pois um paradigma de unificação dos saberes ainda não está constituído enquanto tal – por isso o chama de sonho transdisciplinar, por pretender ser “um meio de compensar as lacunas de um pensamento científico mutilado pela especialização e exigindo a restauração de um pensamento globalizante em busca da unidade, por mais utópica que possa parecer (JAPIASSU, 2006, p.17). Segundo o autor, “já somos capazes de formular questões transdisciplinares (os problemas complexos e globais da humanidade, a ecologia, a energia, etc.), mas ainda não temos condições de encontrar respostas ou soluções transdisciplinares” (idem, p.64). Japiassu defende que o novo transdisciplinar deve pautar- se no paradigma da complexidade, “o único capaz de promover um tipo de comunicação sem redução, pois nasce ao mesmo tempo do desenvolvimento e dos limites da ciência contemporânea” (idem, p.66).

A busca da transdisciplinaridade aparece como uma “necessidade histórica de se promover uma reconciliação entre sujeito e objeto, entre homem exterior e interior, e de uma tentativa de recomposição dos diferentes fragmentos do conhecimento” (idem, p.40). Nesse sentido, as atitudes do pesquisador que se inspira no sonho transdisciplinar e acredita nessa utopia são idênticos àqueles já descritos sobre a atitude interdisciplinar, por se tratar da superação de obstáculos oriundos de uma aprendizagem disciplinar arraigada em princípios unidimensionalizantes. Trata-se de atitude de coragem para romper com o instituído; aventurar-se e ser criativo, abrir diálogo com a irracionalidade, o místico, o

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CENTRE INTERNACIONAL DE RECHERCHE ET ETUDES TRANSDISCIPLINAIRES - CIRET (1994). Carta da Transdisciplinaridade. Primeiro congresso mundial da transdisciplinaridade. Arrabida, Portugal. Disponível em: <http://basarab.nicolescu.perso.sfr.fr/ciret/index.htm>. Acessado em: 03 de Ago, 2009.

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religioso, o misterioso, a desordem, o incerto, o inesperado, o acaso, o antagonista, o contraditório, o erro; estar engajado no fazer ciência (dimensão ética e política), ao invés de apenas reforçar a disciplinaridade. Isso significa que, do ponto de vista do método, suas bases ainda são disciplinares, mas seguindo os princípios da complexidade.

Nesse sentido, Morin (2008, p.190-3) aponta que não existe uma metodologia da complexidade, mas pode ter seu método, e que devemos renunciar ao mito da elucidação total do universo, para prosseguir na aventura do conhecimento que é o diálogo com este. Isso indica a eleição de estratégias, que “é a arte de utilizar as informações que aparecem na ação, de integrá-las, de formular esquemas de ação e de estar apto para reunir o máximo de certezas para enfrentar a incerteza” (idem, p.192). Ou seja, pensarmos nos conceitos sem dá-los por concluídos, quebrar esferas fechadas, restabelecer articulações do que foi separado, a fim de compreendermos a multidimensionalidade da realidade, a singularidade com a localidade e temporalidade – a busca pela totalidade integradora de antagonismos, sem apagá-los. Com isso, a complexidade tem alguns imperativos: o uso estratégico da dialógica (duas lógicas ao mesmo tempo) e o pensar de forma organizacional (a relação auto-eco-organizadora, isto é, a relação íntima e profunda com o ambiente, a relação hologramática e a recursividade) (idem, p.192-3).

Pelo descrito até este momento, também elaboramos nossas estratégias segundo as inspirações dessa nova transdisciplinaridade, segundo seus três pontos de apoio. Sabemos que esta ainda não se constitui como um paradigma bem elaborado e aceito pela comunidade científica, causando-lhe medo e recusa. Mesmo assim, a leitura dos autores que versam sobre esse tema nos elucidou caminhos possíveis para nossa investigação, nos abriu novas possibilidades de compreensão da realidade e nos deu a coragem necessária para enfrentar os desafios de uma pesquisa na Amazônia.

2.6. Conclusão

Temos agora um cenário melhor definido. Nossos pontos de partida são as muitas críticas ao modo de fazer ciência enrijecido e fragmentado, não obstante tenhamos partido das disciplinas (Psicologia e Psicologia Social, pertencentes às ciências humanas e sociais) para percorrer o caminho da pesquisa. Esse percurso de transgressão científica se inspira nas idéias da inter- e transdisciplinaridade, imposto não apenas pela urgência de rompimento com as barreiras disciplinares ou pela complexidade das problemáticas socioambientais, mas também pela necessidade de ampliar nossa compreensão ao lidarmos com pessoas que habitam a beira dos rios da Amazônia – o que implica numa atitude diferenciada de quem quer fazer pesquisa nesse contexto tão particular, exótico e misterioso.

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Capítulo 4. Estratégias metodológicas (ou um psicólogo no 'paraíso dos