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MAYBURY-LEWIS, Biorn (1997) Terra e água, identidade camponesa como referência de organização

11.4. Novos engendramentos

11.5.1. No âmbito do ambientalismo internacional

Marie Roué (1997)336 apresenta que a palavra 'tradicional' deriva da sigla Traditional Ecological Knowledge (TEK), por influência de pesquisadores interdisciplinares de língua inglesa, que nos anos '70-'80 estudavam “os saberes da natureza das populações locais ou indígenas, na perspectiva de valorizar esses saberes para gerir os recursos naturais” (idem, p. 193).

Antes disso, a invenção das 'populações tradicionais'337 começa no âmbito do conservacionismo internacional a partir de 1960, quando a IUCN (criada em 1948) estabeleceu a Comissão de Parques Nacionais e Áreas Protegidas, com o intuito de promover, monitorar e orientar o manejo desses territórios (DIEGUES, 2004b, p. 99). Em 1962, esta entidade organiza a I Conferência Mundial sobre Parques Nacionais (Seattle/1962), onde admitiu-se haver algumas exceções de ocupação humana em áreas protegidas. Sugeriu-se a proposta da divisão dos parques em zonas, para atividades humanas permitidas ou não em cada delas – o princípio de zoneamento (BARRETO FILHO, 2006, p. 112). Na 10ª Assembléia-Geral da IUCN (Nova Déli, Índia/ 1969), 11ª (Banff,

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BARRETO FILHO, Henyo Trindade (2006). Populações tradicionais: introdução à crítica da ecologia política de uma noção. In: ADAMS, Cristina; MURRIETA, Rui; NEVES, Walter (eds.). Sociedades caboclas

amazônicas: modernidade e invisibilidade.

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ROUÉ, Marie (1997). Novas perspectivas em etnoecologia: 'saberes tradicionais' e gestão dos recursos naturais. In: CASTRO, Edna Maria Ramos de & PINTON, Florence (orgs.). Faces do trópico úmido –

conceitos e questões sobre desenvolvimento e meio ambiente. Belém: Cejup: UFPA-NAEA.

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Organismos internacionais (Banco Mundial, IUCN, etc.) utilizam a palavra indigenous, native e tribal

people. A tradução para português de indigenous não corresponde exatamente a 'indígena', podendo

significar também 'nativo'. Em função dessa variação, o 'tradicional' pode ser a tradução para indigenous

people, dependendo do contexto em que é utilizado. Daí uma primeira confusão não apenas terminológica,

mas conceitual. No Brasil, em geral povos indígenas é utilizado com o significado de 'etnia'. E 'tradicional' designa tanto os indígenas quanto os não-indígenas. Adiante seguiremos essa discussão.

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Canadá/1972), 12ª (Zaire/1975) e demais eventos/documentos organizados pela instituição338, assim como nos Congressos Mundiais de Parques Nacionais339 – incluindo- se também o advento do DS – gradativamente se redefiniu 'Parques Nacionais' (e as outras modalidades de UC) e se passou a reconhecer que as populações humanas eram parte do ecossistema, com suas culturas originárias (agricultura adaptada e herança cultural) e diversidade cultural.

Passou-se também a considerar que tais populações eram importantes à conservação das áreas protegidas, poderiam permanecer nesses territórios e deveriam ser convencidas a preservar o ambiente em que vivem, estabelecendo-se planos de manejo conjunto com os administradores dessas áreas – mas restringindo-lhe suas ações caso fossem degradantes do ambiente. Ou seja, apesar da tendência socioambientalista/conservacionista parecerem se manifestar com maior preponderância, as visões preservacionistas mais radicais ainda se presentificaram no movimento de redefinições de áreas protegidas. Obviamente, o reconhecimento do direito das populações permanecerem em suas 'terras tradicionalmente ocupadas', mesmo que sob certas condições, não resulta apenas da disputa de cientistas, ONGs e formuladores de políticas, mas também da emergência de conflitos e manifestações dessas populações, que se aliam a um ou outro grupo para defender seus interesses.

Dentro dessa perspectiva, Barreto Filho (2006, p. 115-6) mostra que a idéia de desenvolvimento comunitário, via co-gestão do uso e manejo de recursos naturais nas UCs, tem como mote engajar as populações para os fins últimos da conservação. Em outras palavras, convencer os habitantes a aderir a planos de conservação significa harmonizar conflitos e assimetrias decorrentes da visão dominante imposta a eles, isto é, utiliza-se seus saberes de forma instrumental para manter intactas certas áreas. Essa é uma abordagem que carrega consigo uma ambivalência: de um lado, reconhece-se seus saberes e estimula- se sua participação nas tomadas de decisão e a concessão para reprodução social naquele ambiente; por outro, estas são induções segundo interesses exógenos que tentam integrar desenvolvimento e conservação – com o peso mais forte para esta última.

Esse interesse vindo do exterior refere-se, principalmente, a um dos desdobramentos das discussões do DS: os saberes tradicionais, expressos entre outras formas pelo uso/manejo de recursos naturais dessas populações, são práticas históricas de adaptação que refletem níveis de sustentabilidade ecológica ressonantes com o que se

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Como por exemplo o 'World Conservation Strategy' (de 1980); Conferência 'Conservação e Desenvolvimento: pondo em prática a estratégia mundia para a conservação' (Ottawa, Canadá/ 1986); 'Manual para manejo de áreas protegidas nos trópicos' (de 1986); 'From Strategy to action' (1988, para implementar as considerações do 'Nosso Futuro Comum'); 'Cuidar de la Tierra' (de 1991, em parceria com a WWF e PNUMA).

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2º em Yellowstone, EUA/1972; 3º em Bali, Indonésia/1982; 4º em Caracas, Venezuela/1992; 5º em Durban, Africa do Sul/2003.

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entende por DS. Como apontam Deborah M. Lima & Jorge POZZOBON (2005)340, se num primeiro momento o critério de racionalidade econômica capitalista ordenava os segmentos sociais de acordo com seu grau de desenvolvimento e integração ao mercado, o que colocava os amazônidas em segundo plano, num segundo momento o emprego de critérios de sustentabilidade ecológica atribui a esses segmentos sociais antes inferiorizados valoração ecológica positiva, dando-lhe um novo status: de degradadores a guardiões da floresta.

A sustentabilidade ecológica caminha lado a lado com a sustentabilidade social e econômica desses grupos, o que traz um desafio aos cientistas e formuladores de políticas: como manter a floresta de pé e rentável às populações locais, se aos detentores do grande capital ela é mais valiosa economicamente derrubada? Uns falam em mercadorias materiais extraídas da floresta. Daí vêm o estímulo a práticas de manejo de produtos ventáveis ao mercado, como produção de artesanatos, extração de produtos florestais, piscicultura, etc., e o combate à biopirataria, extração ilegal de madeira, minérios, etc.341 Outros apontam que uma fonte de valor mais preciosa são os serviços ambientais da floresta. Nessa linha, Fearnside (1997, p. 314)342 sugere “converter serviços como a manutenção da biodiversidade, o armazenamento de carbono e a ciclagem da água em fluxos monetários, que possam apoiar uma população de guardiões da floresta”.

Dentro desse contexto de mudanças climáticas globais, redução do desmatamento e conservação da biodiversidade, o amadurecimento da idéia de Prestação de Serviços Ambientais (PSA) ganhou contornos no estado do Amazonas, como menciona Viana (2008,

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LIMA, Deborah de Magalhães & POZZOBON, Jorge (2005). Amazônia socioambiental. Sustentabilidade ecológica e diversidade social. Estudos Avançados, n° 54, p. 45-76.

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Um esforço governamental do estado do Amazonas nesse sentido foi a criação do Programa Zona Franca Verde (ZFV), para promover o DS do estado a partir de sistemas de produção florestal, pesqueira, agropecuária a atividades de turismo, sob bases ecologicamente saudáveis, socialmente justas e economicamente viáveis, associadas à gestão de unidades de conservação e a promoção do etnodesenvolvimento em terras indígenas. De acordo com Viana (2008, p. 143) “no período de 2003-2007, a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas formulou e coordenou a implementação de uma série de instrumentos inovadores de políticas públicas voltadas para a promoção do desenvolvimento sustentável, com especial ênfase para a conservação ambiental, combate à pobreza e mudanças climáticas. Essa política de sustentabilidade foi denominada como Zona Franca Verde para facilitar sua compreensão pela população em geral. 'Zona Franca', no Amazonas, é sinônimo de emprego e renda; o 'verde' nos remete à floresta. 'Zona Franca Verde', portanto, foi definido como um programa de geração de emprego e renda a partir do uso sustentável dos recursos naturais de florestas, rios e lagos, com o objetivo de valorizar a floresta em pé e assim gerar emprego e renda e promover a conservação ambiental”. VIANA, Virgílio Maurício (2008). Bolsa Floresta: um instrumento inovador para a promoção da saúde em comunidades tradicionais na Amazônia. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 22, nº 64, Dec., p. 143-153. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142008000300009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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FEARNSIDE, Philip Martin (1997). Serviços ambientais como estratégia para o desenvolvimento sustentável na Amazônia rural. In: CAVALCANTI, Clóvis (org.). Meio Ambiente, desenvolvimento

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p. 145), pela Lei Estadual nº 3135/07343 (que define a base legal para posterior criação do Programa Bolsa Floresta – PBF) e a Lei Complementar nº 53/07344 (que define o conceito de 'comunidades tradicionais'345, produtos346 e serviços ambientais347). Para implementar a primeira, foi criado o Centro Estadual de Mudanças Climáticas (CECLIMA)348. A gestão das UCs estaduais cabe ao Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC)349, com uma Coordenação de Populações Tradicionais (CPT)350. E a gestão do PBF351 sob responsabilidade da também criada Fundação Amazonas Sustentável (FAS)352.

Em suma, vimos que a trajetória de influência internacional das definições da noção de 'populações tradicionais' no Brasil inicia pela atribuição do status de 'fator antrópico' aos habitantes de áreas protegidas, decorrente de um viés preservacionista radical que dominava o círculo das ciências naturais desde seus primórdios. À medida que a emergência de conflitos sociais e de outras abordagens ambientalistas vieram agregando pontos de vista distintos a respeito da preservação integral, passou-se a considerar que a existência de habitantes nesses locais seria possível de alguma maneira – mesmo que

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ESTADO DO AMAZONAS. Lei Estadual nº 3135, de 04 de Junho de 2007. Institui a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas, Conservação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, e estabelece outras providências. Disponível em: <http://www.amazonas.am.gov.br/pagina_interna.php?cod=33>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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ESTADO DO AMAZONAS. Lei Complementar nº 53, de 05 de Junho de 2007. Regulamenta o inciso V do artigo 230 e o § 1º do artigo 231 da Constituição Estadual, institui o sistema estadual de unidades de conservação – SEUC, dispondo sobre infrações e penalidades e estabelecendo outras providências. Disponível em: <http://www.amazonas.am.gov.br/pagina_interna.php?cod=33>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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COMUNIDADE TRADICIONAL - grupo rural culturalmente diferenciado, que se reconhece como tal, com formas próprias de organização social, e que utiliza os recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição, com relevância para conservação e utilização sustentável da diversidade biológica.

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PRODUTO AMBIENTAL - produtos oriundos dos serviços ambientais, inclusive o carbono acumulado na biomassa e outros, associados ao uso e conservação dos ecossistemas.

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SERVIÇO AMBIENTAL - o armazenamento de estoques de carbono, o sequestro de carbono, a produção de gases, água, sua filtração e limpeza naturais, o equilíbrio do ciclo hidrológico, a conservação da biodiversidade, a conservação do solo e a manutenção da vitalidade dos ecossistemas, a paisagem, o equilíbrio climático, o conforto térmico, e outros processos que gerem benefícios decorrentes do manejo e da preservação dos ecossistemas naturais ou modificados pela ação humana.

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ESTADO DO AMAZONAS. Centro Estadual de Mudanças Climáticas (CECLIMA). Disponível em: <http://www.mmcriacoes.com/ceclima/>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

349

ESTADO DO AMAZONAS. Centro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC). Disponível em: <http://www.ceuc.sds.am.gov.br/>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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Segundo o site do CEUC “o CPT tem como desafio contribuir na organização social das comunidades tradicionais com o intuito de subsidiar e implementar políticas públicas nas unidades de conservação que promovam a melhoria da qualidade de vida das populações e a conservação ambiental. Formado por uma equipe multidisciplinar, o CPT apóia a gestão participativa, formação dos Conselhos Gestores e o envolvimento da sociedade na elaboração dos Planos de Gestão das Unidades”. Até final de 2009, essa coordenação não possuía profissionais com formação em ciências humanas ou sociais.

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Até o início de 2010, eram 04 modalidades de PBF: Bolsa Floresta Renda - incentivo à produção sustentável; Bolsa Floresta Social - investimentos em saúde, educação, transporte e comunicação; Bolsa Floresta Associação - fortalecimento da associação e controle social do programa; Bolsa Floresta Familiar - envolvimento das famílias na redução do desmatamento.

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FUNDAÇÃO AMAZONAS SUSTENTÁVEL. Disponível em: <http://www.fas-amazonas.org/pt/>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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controlada. Com a consolidação das discussões de DS, inicia-se uma mudança gradativa desse status inicial: passa-se a colocar os conhecimentos tradicionais como aspecto chave à conservação da biodiversidade e a modelos alternativos de desenvolvimento. Nesse momento, os habitantes de UCs começam a receber o status de protagonistas: guardiões da floresta e prestadores de serviços preciosos não só à preservação da floresta, mas à humanidade como um todo. Não obstante esse mudança de status venha visibilizar e privilegiar as 'populações tradicionais', “as expectativas conservadoras dos modelos de uso sustentável podem conspirar contra a autonomia desses mesmos grupos decidirem o seu futuro frente às aspirações modernas de níveis de consumo e bem-estar” (BARRETO FILHO, 2006, p. 137)”.

Vianna (2008, p. 250) aponta que em documentos desta década, publicados pela IUCN e pelo Programa de Trabalho para Áreas Protegidas da CDB353, estabelecidos na decisão VI/28 da COP-7 (de 2001), se fazem referências a indigenous people e às local communities, “pois a noção sugere que elas possam ou queiram permanecer nas mesmas condições em que viviam ao serem assim classificadas” (ISA, 2005, p. 182 apud idem, ibidem). Isso não necessariamente quer dizer o abandono das expectativas conservadoras, mas uma abertura, no nível discursivo, para melhor definição de habitantes em áreas protegidas. Em 2006, o governo brasileiro, signatário da CDB e concordante com as propostas do programa recém mencionado, institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP) (Decreto nº 5758/06)354 para fazer valer os acordos firmados. Neste, não se menciona 'populações tradicionais', mas 'povos indígenas', 'comunidades quilombolas', 'comunidades locais', 'comunidades de pescadores', 'comunidades extrativistas' e 'populações extrativistas tradicionais'. O decreto é uma óbvia ressonância dessa influência exógenas, pois no âmbito nacional se utilizava o termo 'populações tradicionais' (SNUC) e no Decreto nº 6040/07, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), se definiu 'povos e comunidades tradicionais'. Mais adiante retomaremos esse ponto.