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PARTE III. Universo Amazônico

Capítulo 11. Interpretações a respeito dos povos amazônicos

11.2. Os primeiros engendramentos

Para Neide GODIM (2007)255, a Amazônia não foi descoberta e nem construída: “a Amazônia é o mistério inventado pelos europeus. A expectativa que antecedia a chegada à região era alternada por momentos de puro êxtase e por ocasiões de extremo desânimo” (idem, p. 158). Invenção porque é imaginação edificante, criação, no sentido de produto das imagens escolhidas para edificar a região (MENDES, 2006, p. 48). Segundo Godim, essa invenção está arraigada no antes e no distante da região: a partir da 'construção' da Índia, que fora fabricada pela historiografia greco-romana, relatos dos peregrinos, missionários,

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viajantes e comerciantes da idade média, que nas viagens ao oriente entraram em contato com um outro universo simbólico de mitologias indianas, cultura, hábitos, religião e paisagens exóticas. Em seu livro, há muitas referências às viagens dos europeus ao oriente e como estas foram contribuindo para formar imagens e histórias que deliciavam e apavoravam o Homem medieval.

As primeiras viagens ao Novo Mundo fizeram-se acompanhadas desse imaginário europeu. Este alimentou o sonho da busca do Eldorado e as lendas das mulheres guerreiras, as Amazonas da mitologia grega, como exposto por Leandro TOCANTINS (2000)256. Nos relatos dos primeiros viajantes, como Cristobal Colón e Américo Vespucci, encontram-se imagens do paraíso terrestre, da fonte eterna da juventude, riqueza adquirida sem esforço físico, monstruosidades corporais, fantásticas descrições de fauna e flora e guerreiras solitárias. Da expedição de Vicente Yáñez Pinzón, entre 1499 e 1500, relatos belicosos com índios e o encontro com a foz do grande rio, batizado de 'mar dulce'. Nas excursões frustradas (costa brasileira e foz do 'mar dulce') de Diego de Lepe (1500) e de Diego Ordaz (1531), mais relatos de conflitos armados com indígenas, tal como descrito por Marilene Corrêa da SILVA (2004, p. 27)257. Nos relatos dos espanhóis, que entre 1541-2, com a expedição de Francisco de Orellana (escrita pelo frei Gaspar de Carvajal), descem pela primeira vez o rio todo desde os Andes em busca do Eldorado, encontram-se não apenas essas imagens, mas a descrição de batalha com as guerreiras amazonas – o que modificou o nome de 'mar dulce' para 'rio das Amazonas'258. Também há relatos de segunda expedição dos espanhóis rio abaixo, de Pedro de Ursua e Lope de Aguirre, realizada entre 1560-1, documentada pelos cronistas Altamirano, Monguia, Vásquez e Zúñiga, que segundo Porro (1992, p. 179) são menos repletas de histórias fantásticas e com mais dados demográficos, quantidade de povoados e abundância de mantimentos. A ilusão fabulosa de riqueza na selva faz espanhóis se desinteressarem pela região, pois nela não encontravam o esperado. Enquanto isso, franceses, holandeses, irlandeses e ingleses fixam-se (com fortes) no litoral do atual Amapá, baía do Marajó, Gurupá e baixo Xingu em

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TOCANTINS, Leandro (2000). O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia. 9ª Edição. Manaus: Editora Valer.

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SILVA, Marilene Corrêa da (2004). O Paiz do Amazonas. Manaus: Editora Valer; Governo do Estado do Amazonas; UniNorte.

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Segundo Antônio PORRO (1992, p.), “Diogo Nunes, um mameluco português a serviço da Espanha, havia estado no alto Amazonas antes de Francisco Orellana, com a expedição de Mercadillo. Em 1538 chegou até a região de Tefé, onde os Aisuari constituíram a rica província de Machiparo, amplamente referida pelos cronistas posteriores; em Machiparo ele encontrou um grupo numeroso de índios Tupinambá, procedentes de Pernambuco e em plena migração rumo ao Peru, onde chegariam em 1539 (Drumond, 1950; Nunes, 1921- 4)”. Nesse capítulo do autor, há mapas do Alto Amazonas (atual Solimões) de 1550 e 1650, mostrando trechos onde localizavam-se as nações indígenas e como haviam se modificado entre esses anos.

PORRO, Antônio (1992). História indígena do alto e médio amazonas: século XVI a XVIII. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP.

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meados do século XVII.

Em 1615, o projeto de Portugal de conquista da região invadida pelos demais europeus é comandada por Francisco Caldeira Castelo Branco, resultando na criação do Forte do Presépio de Santa Maria de Belém (1616), futura Belém em 1637, como lembra Deusamir PEREIRA (2005, p. 61-2)259. Após a chegada de Castelo Branco, expulsam-se os invasores, a Amazônia é rebatizada de 'Nova Lusitânia' e loteada em capitanias hereditárias (BESSA et al, 1987 apud GODIM, 2007, p. 27), e posteriormente se funda o estado do Maranhão e Grão-Pará (em decorrência deste último ter sido anexado à então 'capitania do Maranhão')260. Em expedição dos portugueses, encabeçada por Pedro Teixeira (provavelmente escrita pelo jesuíta de Alonso de Rojas), entre 1637-8, que sobe o rio de até Quito (Equador) e a quem é creditado a conquista da Amazônia261, também há descrições dos povos exóticos (como os Omáguas), do paraíso terrestre, de ouro, de possibilidades

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PEREIRA, Deusamir (2005). Amazônia (in)sustentável: Zona Franca de Manaus – estudo e análise. Manaus: Editora Valer.

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“A capitania do Maranhão era campo aberto para a penetração e a ampliação do domínio holandês no Nordeste. No extremo norte, as fronteiras com a Espanha propiciavam a penetração francesa. O estado do Maranhão e do Grão-Pará, criado em 1621, é medida política do Conselho Ultramarino para fazer frente aos exploradores franceses, holandeses e ingleses. Pretende-se a exclusividade. Fracassada a distribuição espacial e administrativa das capitanias hereditárias, enfatiza-se a fortificação de pontos estratégicos e a Amazônia é separada do resto do Brasil, ligada diretamente à metrópole portuguesa” (SILVA, 2047, p. 38-9). Como lembra Mendes (2006, p. 31) “coexistiram, até 1822, na chamada América Portuguesa, dois Estados autônomos entre si, diretamente vinculados a Lisboa: um era o Estado do Brasil, com sede em Salvador e depois no Rio de Janeiro. Vinha de 1500 e dos dois primeiros Pedros (o Cabral e o Caminha). O outro era o do Maranhão e Grão-Pará, posteriormente Grão-Pará e Maranhão, primeiro com sede em São Luiz e depois em Belém. Surgiu no século XVII, e deveu a sua final conformação principalmente a um terceiro Pedro (o Teixeira) (…). O Estado do Grão-Pará 'aderiu' tardiamente à independência do Brasil quase um ano depois desta, em 15 de Agosto de 1823, sob os convincentes auspícios de uma armada imperial comandada por mercenários ingleses”.

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A respeito da conquista da Amazônia, cf. GADELHA, Maria Regina A. Fonseca (2002). Conquista e ocupação da Amazônia: a fronteira Norte do Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 16, nº 45, p.63-80. Amazônia Brasileira I. LIMA, Rubens Rodrigues (1973). A conquista da Amazônia: reflexos na segurança

nacional. Belém: Ministério da Educação e Cultura. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=26920>.

Acesso em: 27 de Jan, 2010. REIS, Arthur Cézar Ferreira (1993). Limites e demarcações na Amazônia

Brasileira, 2 vols. Belém: Secretaria do Estado da Cultura. Volume 1: A fronteira colonial com a Guiana

Francesa; Volume 2: A fronteira com as colônias espanholas. O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) contém muitas referências de artigos, dissertações, teses, capítulos de livro acadêmicos e militares envolvendo questões amazônicas. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/militares-amazonia/bibliografia>.

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mercantis e das guerreiras amazonas262. Devido à presença embaraçosa em Quito, Pedro Teixeira realiza descida no início de 1639, acompanhado de nova expedição de espanhóis (descrita por Cristobal de Acuña), que tinham interesses de colher dados geoeconômicos daquela estrada fluvial e cujo relato mistura o onírico com o científico: as mesmas imagens de maravilhas, diversidade cultural, monstruosidades índicas, natureza, guerras, possibilidades de usufruto dos produtos regionais e estratégias de mercantilização. E a 'bandeira dos limites', liderada pelo bandeirante paulista Antônio Raposo Tavares263, entre 1647-51, que saindo do rio Tietê passou pela bacia do rio Paraguai e subiu rumo ao Peru (hoje, Bolívia), descendo os rios Mamoré, Madeira, Solimões e Amazonas até Belém, confirmando a investida portuguesa para territórios além-Tordesilhas – com relatos que

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No site do Comando do 9º Distrito Naval e no Museu Naval da Amazônia (em Belém/Pará) encontram-se cartazes explicativos (extraídos da Revista Marítima Brasileira, 1996) da história naval na Amazônia ocidental, a origem naval da cidade de Belém, a expulsão dos estrangeiros invasores e fatos históricos impulsionaram o deslocamento de Pedro Teixeira até a atual Tabatinga. O texto, com linguagem literária e militar (embarcações usadas, capitão e subalternos, contingente – soldados e índios –, número de baixas, prisioneiros), contextualiza a saída de Castelo Branco do Maranhão e fixação na baia do Saparará, envio de tropas à região, episódios épicos de lutas contra os holandeses, irlandeses e ingleses (algumas liderada por Pedro Teixeira) e a construção do Forte Santo Cristo (ou Presepe/Presépio) com peças de artilharia retirados dessas vitórias contra os invasores. Relata-se também o que impulsiona a aventura náutica rio Amazonas acima: em 1636, aportam em Belém os espanhóis Frei Domingos de Brieba, Frei André de Toledo (ordem franciscana) e seis soldados. Contam haver se escapado do trágico destino que os indígenas lhe auferiram ao capitão João de Palácio. E narram, no Maranhão, ao governador Jácome de Noronha o itinerário percorrido. Impulsionados pela vantagem de domínio completo do território (prevenção contra invasores), possíveis alianças com indígenas e tráfico com o Peru (tido como país rico – pelo ouro e prata), organiza-se expedição rio acima. O capitão-mor nomeado é Pedro Teixeira, que inicia a façanha náutico-militar em 28 de outubro de 1637, com 45 canoas, nas quais fez embarcar 70 soldados, mil índios de flecha e remo, nove oficiais, dois sargentos, um almoxarife, e um escrivão de viagem. Atinge seu objetivo em setembro de 1638. Porro (1992, p. 180) concorda com os argumentos de que a chegada inesperada desses espanhóis instigou os portugueses a chegar ao Peru pelo rio das Amazonas e se antecipar a novas aventuras espanholas. E adiciona que um dos guias de Pedro Teixeira foi Domingos de Brieva (b e v em espanhol são fonemas facilmente confundíveis). Apesar dos freis não terem escrito relatos, tal viagem teria sido redigida em 1639 (obra anônima 'Descobrimento do rio das Amazonas e suas dilatadas províncias') em Quito, publicada posteriormente por Jimenez de la Espada (1880-9) e atribuída a Alonso de Rojas. Em 1653, o franciscano Laureano de la Cruz teria publicado outro relado dessa viagem.

COMANDO DO 9º DISTRITO NAVAL. Amazônia. Disponível em: <http://www.mar.mil.br/9dn/OM/Amazon.htm>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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Que em bandeiras anteriores já havia assegurado a posse dos territórios dos atuais estados do Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e parte do Rio Grande do Sul, expulsando os jesuítas, caçando índios e impondo a dominação portuguesa. Também participou da expulsão de holandeses dos atuais Pernambuco e Bahia. Tais expedições eram compostas por portugueses, mamelucos e muitos índios. A respeito dos mamelucos, explica Ribeiro (1995, p. 107-8): “os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis horrorizados com a bruteza e desumanidade dessa gente castigadora de seu gentio materno. Nenhuma designação podia ser mais apropriada. O termo originalmente se referia a uma casta de escravos que os árabes tomavam de seus pais para criar e adestrar em suas casas-criatórios, onde desenvolviam o talento que acaso tivessem. Seriam janízaros, se prometessem fazer-se ágeis cavaleiros de guerra, ou xipaios, se covardes e servissem melhor para policiais e espiões. Castrados, serviriam como eunucos nos haréns, se não tivessem outro mérito. Mas podiam alcançar a alta condição de mameluco se revelassem talento para exercer o mando e a suserania islâmica sobre a gente de que foram tirados”.

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ficaram conhecidos pela façanha do bandeirante. Além dos relatos de outros missionários264 e dos europeus que tentaram se fixar na região em busca de riquezas e contribuíram para formar imagens da Amazônia aos europeus.

Das histórias desses cronistas, imagens da busca do paraíso perdido, do ouro sem fim, de fauna e flora exóticos, de povos estranhos e atrasados. Atestava-se o atraso do modus vivendi dos indígenas e sua barbaridade (em relação ao ocidental) e até mesmo debatia-se se possuíam alma: as justificativas bíblicas serviam tanto para aprovar a 'guerra justa' e escravidão (pelos europeus e colonos) quanto a catequese (missionários). A intenção dos conquistadores era expandir o domínio mercantilista da expansão ultra-marina: era preciso garantir suprimento de metais preciosos e mercadorias para serem comercializadas no Velho Mundo. Descobria-se uma nova fonte de riquezas a serem retiradas e levadas: as especiarias amazônicas. Por outro lado, a expansão no Novo Mundo pelos ibéricos tinha também um significado religioso: garantir o quinhão da Igreja Católica no movimento da Contra-Reforma, o que se concretizou com a presença de jesuítas e outras ordens após o Concílio de Trento (entre 1545-63). Coroa e Igreja mesclavam seus interesses nesse mundo recém-conquistado.

As obras dos cronistas influenciaram não só os demais viajantes à região nos séculos vindouro, como também a produção intelectual, científica e literária européia. Pensadores como Montaigne, Buffon, Montesquieu, Hobbes, Volaire, Locke e Rousseau “incluem o Novo Mundo em suas reflexões, retirando dali o material necessário para sustentações ou exemplificações teóricas” (GODIM, 2007, p.84). As teorizações desses pensadores incluem o Homem selvagem, cujo estado natural contrasta com a civilização e o Estado. Do mesmo modo, a partir do século XVIII naturalistas como Wallace, Buffon, Darwin e muitos outros também focam sua produção a partir das inquietações trazidas desta região – incluindo imagens não só de fauna e flora, mas de indolência e preguiça preferida pelos povos nativos à civilidade: “os nativos são os agentes que desarmonizam a ordem social instalada pelo branco – essa é a conclusão a que praticamente todos os viajantes chegaram depois de visitar o paraíso infernal amazônico” (idem, p.163). E, no plano literário, Godin

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Porro (1992, p. 180-1) faz referência a: Laureano de la Cruz, o primeiro missionário a conviver por alguns anos com tribos do alto amazonas (os Omágua), de 1647 a 1650, em que descreve seus hábitos 'relativamente civilizados', a catequese e a dizimação pelas primeiras epidemias (retorna à Espanha devido à expulsão pelos portugueses); Maurício de Heriarte (da expedição de Pedro Teixeira), que escreve entre 1662-7 a 'Descrição do estado do Maranhão, Pará, Corupá e rios das Amazonas', com descrições das províncias indígenas ao longo do curso deste último rio. Segundo Porro, estas são descrições que antecedem a intensificação da entrada dos portugueses na Amazônia, por isso ainda relatam as populações indígenas em 'estado de relativa integridade'. O autor ainda cita as obras 'Crônica de Betendorf' (jesuíta português, completada em 1698), 'Diário' (do jesuíta espanhol Samuel Fritz, transcrito por Maroni em 1738). Fritz teria deixado também mapa, de 1691, com localização das tribos conhecidas até então). Os escritos de Chantre y Herrera e 'Tesouro' (do padro João Daniel). Tais relatos são ricos em descrições (futuramente poderiam ser classificadas etnográficas) dos Aparia, Omágua, Yoriman, Yurimagua (ou Solimões), Paguana, Cuchiguara, Carabuyana, Conduris, Tapajós, entre outros.

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(idem, p. 173-325) descreve que a Amazônia entra no círculo internacional ao servir de tema aos romances de Julio Verne ('A Jangada. Oitocentas léguas pelo rio Amazonas', de 1881), Arthur Conan Doyle ('O mundo perdido', de 1912) e Vicki Baum ('A árvore que chora. O romance da borracha', de 1946) – também com imagens depreciativas dos povos locais. Em suma, todos elementos etnocêntricos empregados pelos europeus para qualificar os nativos da Amazônia.

Esses engendramentos inscrevem a Amazônia não apenas na filosofia, literatura, artes e ciência do mundo ocidental. A região, desde a chegada dos portugueses e espanhóis é inserida no contexto da economia mercantil dos países que tomavam a cena global. Primeiro, o Tratado de Tordesilhas (1494)265 divide esse território ainda não mapeado em Lusitânia (parte oriental portuguesa) e Nova Andaluzia (parte ocidental espanhola), anexando-os à geografia econômica européia, cujo cenário posteriormente foi nomeado de Antigo Regime (absolutismo, capitalismo comercial, sociedade estamental, prática mercantilista, expansão ultramarina e colonial) (NOVAIS, 1986 apud SILVA, 2004, p. 21). A Amazônia é um dos lugares de reajustes econômicos e políticos da Europa dos séculos XVI e XVII, por ser fonte potencial de escravos (índios), possíveis mercados, rotas marítimas e comerciais alternativas, terras e matérias-primas. As disputas colonialistas perdem sentido, temporariamente, pela União Ibérica, com a coroa dos três Felipes entre 1580-1640, dando chance aos portugueses fazerem incursões e expedições que, com a restauração da coroa portuguesa, lhes rendera domínio sobre o território além-Tordesilhas, até aquele momento deixado em segundo plano pelos espanhóis – o que corresponde hoje a 60% da Pan- Amazônia sob o território brasileiro. Para a efetivação da ocupação portuguesa da região, expedições ao interior, construção de fortes e expulsão de invasores europeus, criação de aldeamentos, vilas e cidades, catequese religiosa e exploração econômica.

Pereira (2005, p. 63-7) inscreve o primeiro período de exploração econômica dentro

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O Tratado de Tordesilhas, datado de 7 de Junho de 1494 (com ratificações no mesmo ano), estabeleceu a divisão das áreas de domínio dos países ibéricos: a Portugal, as terras descobertas e por descobrir situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas (1.770 km) a oeste das ilhas de Cabo Verde, enquanto à Espanha, as terras além dessa linha. Em um antigo mapa, o 'planisfério de cantino' (de Alberto Cantino), de 1502, há o detalhamento náutico do mundo da época, feito com precisão a partir das navegações dos portugueses (com Europa e África bem detalhados, Ásia ainda sem os limites norte definidos e apenas as Antilhas, Flórida e a costa brasileira) e com a linha do tratado de Tordesilhas. Pode ser encontrado na

Biblioteca Estense (Modena, Itália), ou visualizada em: <http://www.cedoc.mo.it/estense/img/geo/Cantino/index.html>. Acesso em: 27 de Jan, 2010.

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do que alguns estudiosos da Amazônia nomeia de ciclo266 das Drogas do Sertão267, que pode ser subdividido em dois períodos: entre 1616-1750 (chegada de Castelo Branco) e 1751-1840 (chegada do Marquês de Pombal). No primeiro, expedições de reconhecimento e posse com a instalação de estabelecimentos coloniais (aldeamentos), missões religiosas268 (os principais agentes da ação cultural européia sobre os povos amazônicos

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Para Almeida (2008a), a idéia de 'ciclos' remete a um esquema interpretativo que fundamentam a Amazônia como palco de planos de intervenção sob a ótica da racionalidade e do progresso iluminista. Esse esquema interpretativo origina-se com as reformas do ilustrado Marquês de Pombal: combinava a noção de 'progresso' com o que denominavam 'racionalidade econômica' e, reproduzido no tempo, “torna-se uma sociologia espontânea de explicação da Amazônia” (idem, p.25). Os 'ciclos' são apresentados numa sequência linear estrita “que tem como referência empírica o que se convencionou designar como 'Amazônia'” (ALMEIDA, 2008a, p. 26). E ainda complementa: “pelo menos até final do século XX, elementos básicos de tal esquema interpretativos podem ser identificados sob uma forma de vulgarização científica, quando todos discutem ou preconizam formas de exploração 'racional', ocupação 'racional' e ação 'racional' como 'moderna', suportando planos, projetos e programas oficiais de desenvolvimento da região Amazônica” (idem, p. 25).

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (2008a). Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8: Fundação Universidade do Amazonas.

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Milho, batata doce, mandioca, cacau, baunilha, cravo, canela, urucu, açafrão, quina, puxuri, tomate, amendoim, pimenta, mamão, maracujá, abacate, castanha-do-pará (hoje, castanha do Brasil), sorva, salsaparrilha, entre outras sementes, cascas, óleos e resinas – além das outras frutas típicas, como açaí, cupuaçu, bacuri, etc.

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Os primeiros jesuítas portugueses chegaram à Amazônia em 1615. Mas quem colonizaram o rio Solimões primeiro foram os jesuítas espanhóis, que chegam à região em 1645 (NIMUENDAJÚ, 1952, p. 08 apud ALMEIDA, 2005, p. 73) – ou 1686, com Samuel Fritz, que “promoveu a catequese dos Omáguas, Aisuares, Tarumãs, Ibononas, Xabecos e Cocamas, tendo fundado inúmeras missões” (LOUREIRO, 1978, p. 95 apud SILVA, 2004, p. 37-8), que hoje são as cidades São Paulo de Olivença, Amaturá, Fonte Boa (Alto Solimões), Tefé e Coari. Roberto Cardoso de OLIVEIRA (1996, p. 69) elenca os alguns relatos de indivíduos ou expedições na área do Alto Solimões durante os séculos XVII a XIX, em que se descrevem os Omáguas (conhecidas também como Cambeba ou Cambeva), povo que dominava as margens e ilhas do Solimões, impressionando os viajantes e cronistas pelo volume demográfico, potencial militar e pujança econômica. No final do século XVII, a coroa portuguesa resolve tomar tais territórios, expulsa os espanhóis e instala suas próprias missões, com carmelitas e mercenários. Oliveira (idem, p. 70-1) precisa que, em 1708, os jesuítas espanhóis foram obrigados a se retirar para Quito. Reagiram e, no ano seguinte, realizam ataques a três aldeias Omáguas. Meses depois, portugueses retomam suas posições. Essas invasões de espanhóis, portugueses e, posteriormente, de seringueiros no ciclo da borracha, contribuíram para o desaparecimento dessa etnia habitante do alto Solimões. O desgaste dos Omáguas afastou os Ticunas (inimigos 'tradicionais' dos Omágua) para outros rios, o que contribuiu para sua sobrevivência nos séculos vindouros, como destaca Flávio Vaz Ribeiro de ALMEIDA (2005). De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), por muito tempo os poucos Cambeba sobreviventes deixaram de se identificar como indígena, devida à violência e discriminação de frentes não-indígenas na região. Com o crescimento do movimento indígena (anos '80), reconhecimento dos direitos indígenas pela Constituição de 1988 e multiplicação das organizações indígenas, os Cambeba voltam a se afirmar como índios. Atualmente habitam no Peru (em 1994, 3.500 indivíduos) e no Brasil (em 2002, estimava-se 1.500 indivíduos), localizados em cinco aldeias: quatro na região do médio e Alto Solimões, uma no baixo rio Negro (rio Cuieiras). Há também famílias em Manaus e outras em terras Ticuna do alto Solimões. Estão organizados na Associação dos Cambeba do Alto Solimões – OCAS. Os