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3. FORMAÇÃO DA AUDIÊNCIA: UMA TAREFA DE CONVENCIMENTO

3.1. JORNALISMO E FICÇÃO: A TEORIA DO AGENDAMENTO

3.1.1. A cultura televisiva

Quando se fala em diferentes culturas que remetem a hábitos e maneiras de vida distintas, também nos referimos a modelos de consumo. Os hábitos de consumo de um determinado povo dizem muito de sua prática social, de sua cultura. Mesmo que crie claras distorções – um exemplo poderia ser o uso do terno e da gravata obrigatórios em certas ocasiões ou para alguns profissionais num país com clima tropical como o Brasil – estas formas de consumo acabam assimiladas pela população já que são vendidos pela mídia como modelos desejáveis, como padrões de vida eleitos entre os mais distintos. Neste sentido, seguir um modelo estranho ao seu também passa a ser uma norma dentro do País. Os grandes centros, localizados ao Sul, ditam as normas para o resto do país – e aí, além da maneira de vestir, estão o estilo de moradia, os móveis e utensílios domésticos, os automóveis e tantos outros bens de consumo. São tendências de comportamento que buscam referências externas que sempre nos parecem melhores do que aquelas desenvolvidas entre nós, uma herança da história de colonização no País.

O espírito de país colonizado se encontra firme no Brasil, mesmo depois de mais de 500 anos dos portugueses terem chegado por aqui. O escravagismo talvez seja uma das instituições brasileiras mais sólidas e se traduz em profissões pouco remuneradas e serviçais como o trabalho doméstico. As relações de poder autoritário, arbitrário, paternalista determina uma condição social a estas pessoas que pouco difere dos escravos que existiam no Brasil até o século XIX. Uma estimativa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) em setembro de 2009 com base na Pnad 2008 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) informava que

[...] o trabalho doméstico remunerado representa atualmente 15,8% da força de trabalho feminina ocupada, sendo que a atividade doméstica se constituiu histórica e persistentemente como uma atividade feminina e negra. As mulheres são 93,6% dos trabalhadores nessa ocupação. Entre 1998 e 2008, embora tenha havido incremento de escolaridade na categoria, o emprego doméstico ainda não alcançou em média sequer o ensino fundamental. [...] a desvalorização do serviço doméstico em geral pode ser traduzida na grande desproteção social dessa faixa laboral, exemplificado pelo renitente tratamento desigual recebido no que tange ao acesso e garantia de direitos trabalhistas. Em 2008, apenas 25,8% das trabalhadoras domésticas tinham carteira de trabalho assinada, sendo que, na região Nordeste, a média de formalização desse tipo de ocupação corresponde à metade do patamar nacional (BRASIL, 2009).

As relações econômicas foram, ao longo da história, mantidas no Nordeste na fase pré- capitalista a fim de fornecer mão de obra barata ao capitalismo brasileiro do Sudeste. Vagarosamente, com o desenvolvimento da exploração do petróleo, a mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília e a ampliação da malha rodoviária é que as relações esboçaram uma

modernização. Mas, a parte o serviço doméstico, estamos, em geral, à espera de um patrão que nos provenha e nos mostre o que fazer, ainda que paguemos um preço alto por isso. Como escreve Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala “esta força, na formação brasileira, agiu do alto das casas-grandes, que foram centros de coesão patriarcal e religiosa: os pontos de apoio para a organização nacional” (FREYRE, 1946, p. 24). Da mesma forma, a sociedade busca modelos de prosperidade e de desenvolvimento nos países ricos que aparecem na mídia como a terra abençoada, onde há poucos problemas, todas as pessoas vivem bem e dignamente, e os direitos civis são plenamente respeitados. A mídia conta, mas não enfatiza, o fato de que no ano de 2006, nos Estados Unidos, houve um aumento de 12,7% na pobreza do país, segundo o próprio censo norte-americano (WEBSTER e BISHAW, 2007, p. 3).

Convencer os brasileiros de que a constante prosperidade dos Estados Unidos é verdade é uma tarefa relativamente simples para a mídia e para a televisão que atua em duas vertentes principais: o jornalismo e os filmes de ficção – a maioria dos que chegam às telas brasileiras são produzidos neste país. Ainda que pretenda retratar a realidade, o jornalismo parece ter abandonado sua função principal para se debruçar na ficção produzida nas redações. Capturado pelos ideias das empresas de comunicação para as quais trabalham, os jornalistas retratam uma realidade forjada que pouco tem a ver com o que acontece na vida da maior parte das pessoas. Em muitos casos, não presenciam os fatos que noticiam, usam os depoimentos das testemunhas para descrever o que aconteceu e partem do pressuposto de que estes depoimentos e percepções alheias coincidem com os fatos – dá menos trabalho do que fazer uma apuração bem feita. De volta à redação, usam as tintas do texto jornalístico para construir a reportagem. Editam (o que significa, selecionar) as informações que conseguiram, descartando o que, nas suas concepções, não interessa e adéquam o texto ao espaço que o editor-chefe concede. A edição de texto ou de imagens tem o poder de mudar a sequência cronológica dos acontecimentos, o que altera o sentido dos fatos. Mas a todas estas práticas, o jornalismo dará o nome de reflexo sobre a realidade.

Mesmo que se postule que a representação revela alguma coisa do real, é preciso ter em mente as condições em que ela emerge. Basta lembrar que o autor já carrega em si certos implícitos de representação; o resultado, a representação, constitui, portanto, uma criação destinada a um ou mais receptores. (SATO, in CASTRO e GALENO – org. , 2002, p. 31)

A TV omite a autoria, dissimula a manipulação e simula a espontaneidade. Realidade e representação do real é uma dualidade que sempre está presente em textos jornalístico, uma vez que, como já dissemos, poucos profissionais da área conseguem efetivamente ser testemunhas, eles próprios, dos fatos que relatam, e mesmo que o fossem retratariam a sua visão particular dos fatos.

Hoje, a imagem é fator importante nas reportagens e serve para endossar o que o texto expõe, mas mesmo a imagem, seja em movimento ou não, representa apenas uma fração da história relatada e não toda a história. O jornalismo ainda se aproxima da ficção quando pretende ser factual.

[...] o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência do acontecer em curso, isto é, uma ficção. Além disso, o jornalismo, produto industrial, precisa de esquemas para a captação de notícias, dos quais a fonte é uma das principais. As fontes podem construir posições estereotipadas [...] (SATO, 2002, p. 31 a 32).

Os esteriótipos são intencionalmente manipulatórios ou ideologicamente comprometidos. Assim, o jornalismo relata um testemunho particular de um acontecimento, um único olhar. O ser humano geralmente não é capaz de ter uma visão global de acontecimentos que apresentem muitas vertentes. Nossa percepção é limitada ao que vemos e, algumas vezes, mesmo que estejamos presentes nos acontecimentos esta percepção pode ser destorcida por fatores emocionais. Um olho que tudo vê só é possível com ajuda da técnica eletrônica. É esse o papel dos sistemas de vigilância por câmeras de vídeo ou das coberturas televisivas de grandes eventos. O fato de que as imagens em movimento da televisão e do cinema têm mais a ver com ficção do que realidade pode ser constatado, por exemplo, em uma transmissão de desfiles de escolas de samba no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Grandes eventos merecem diversas câmeras posicionadas em pontos totalmente distintos uns dos outros. Esta múltipla visão é impossível para um único ser humano, o que torna tais transmissões uma distorção da realidade possível. Somente com o auxílio da tecnologia das telecomunicações podemos estar em diversos pontos de um desfile de escolas de samba, de uma partida de futebol ou de um confronto armado num país em guerra. Podemos ver e vivenciar uma realidade diferente da qual ficamos reféns já que os acontecimentos e os ângulos de visão apresentados nos parecem verossímeis, apesar de muitas vezes não representarem a realidade de fato.

Neste mesmo raciocínio, podemos imaginar que conflitos armados de todos os tipos em qualquer do País ou no exterior representam o dia a dia daquele lugar. É o que acontece, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro que vive o drama do narcotráfico, fartamente noticiado pela mídia e explorado em filmes nacionais e séries para a televisão. Para o resto do País, a cidade do Rio de Janeiro virou sinônimo de violência, o que amedronta as pessoas que conhecem esta realidade apenas pela televisão ou pelo cinema. Poucos se perguntam: “Se o Rio vive numa incessante batalha entre traficantes de drogas e a polícia, como os cariocas são capazes de sair a rua, levar seus filhos à escola ou ir ao trabalho? Será que esta gente vive trancada dentro de casa com

medo das balas perdidas?”. Muitos cidadãos de lugares violentos também acabam aterrorizados pelo que assistem na televisão, ou leem nos jornais, e se trancam em suas casas sem perceber que os conflitos armados são localizados o que não significa necessariamente que uma chacina em determinado bairro determine um amplo aumento da violência local. Normalmente, são fatos isolados.

Se o mistério sobre pânicos infundados inclui o fato de como eles são vendidos a pessoas que sofrem perigos reais com os quais devem se preocupar, no caso de temores mais justificáveis a questão é um pouco diferente. Nós temos de ter preocupações com a criminalidade, o consumo de drogas, o abuso de crianças e outras calamidades. A questão é: como nos atrapalhamos tanto sobre a verdadeira natureza e extensão desses problemas? Em grande parte, a resposta está em histórias como a que foi divulgada em 19 de março de 1991. Se alguém lesse um jornal ou ligasse a televisão ou o rádio naquele dia ou nos dias seguintes, acharia que as ruas dos Estados Unidos eram mais perigosas que uma zona de guerra. A imprensa sentiu-se estimulada em dar essa notícia extrema não por causa do aumento de crimes violentos, mas por um evento dramático. A Guerra do Golfo tinha acabado de terminar, e um soldado recém-chegado em Detroit foi morto por um tiro do lado de fora do prédio em que morava (GLASSNER, 2003, p. 75).

A suposta tragédia da morte do soldado foi publicada na primeira página do Washington Post que descrevia uma antiga pacata rua da cidade de Detroit que havia se transformado em um ponto de venda de drogas e criminalidade. O jornal anunciava a suposta tragédia em tom dramático. “[…] E, às 2h15 da madrugada de segunda-feira, os tiros mataram o soldado Anthony Riggs, algo que todos os mísseis Scud iraquianos não conseguiram fazer durante os sete meses que ele passou em uma bateria de mísseis Patriot na Arábia Saudita” (GLASSNER, 2003, p. 75). Os jornalistas só não se deram ao trabalho de apurar melhor, se o fizessem, desconfiariam de um drama tão perfeito – digno que qualquer filme barato. Na verdade, a repercussão da história fez com que a polícia descobrisse que o assassino era o cunhado do soldado, ávido em receber parte do seguro que a mulher do militar tinha feito antes que ele partisse para a guerra e que tinha prometido dividir com o irmão.

Criar realidades estereotipadas é uma das características da mídia em geral e uma especialidade da televisão e do cinema. A relação dessas duas áreas será descrita com maior profundidade mais adiante, mas pode-se dizer que tanto a televisão como o cinema têm uma grande capacidade de forjar novas realidades. E já que o precursor foi o cinema, foi aí que a técnica se desenvolveu. Na primeira exibição pública em 28 de dezembro de 1895, no Grand Café em Paris, o público pôde assistir a pequenos filmes sem um roteiro dramático, apenas imagens em movimento. Um destes filmes, com câmera parada, mostrava uma locomotiva que se dirigia em direção ao público e dava a impressão que passaria por cima da platéia. O susto foi grande. Não eram apenas

as imagens em movimento que cativavam as pessoas, mas o sentimento que elas provocavam.

É aí que residia a novidade: na ilusão. Ver o trem na tela como se fosse verdadeiro. Parece tão verdadeiro – embora a gente saiba que é mentira – que dá para fazer de conta, enquanto dura o filme, que é de verdade. Um pouco como num sonho: o que a gente vê e faz num sonho não é real, mas isso só sabemos depois, quando acordamos. Enquanto dura o sonho, pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade, que se chama impressão da realidade, foi provavelmente a base do grande sucesso do cinema [grifos do autor] (BERNARDET, 1985, p. 12).

A diferença inicial entre as duas produções audiovisuais é que, enquanto a experiência cinematográfica da audiência acontece em uma sala escura, longe da luz, do barulho e de todos os atrativos visuais do cotidiano, a TV está em nossos lares, ligada o dia inteiro. Neste sentido, propicia uma constante “impressão da realidade” com a qual nos acostumamos e que passa a fazer parte do nosso dia a dia. Com suas origens no Rádio, a televisão fala mais do que mostra, e mesmo aquilo que é mostrado também é descrito com palavras para que o expectador não precise estar sentado constantemente a frente do aparelho para saber qual é a programa em exibição. O hábito de ouvir televisão (e assistir quando alguma informação sonora nos atrai) determina a presença constante da TV durante o tempo em que estamos em casa. Este envolvimento cria um vínculo, uma espécie de dependência para conseguir as informações que precisamos ter do mundo.

Um mundo que nos é apresentado, geralmente, como algo perigoso, quando assistimos a um telejornal, ou como algo que brilha como um produto novo, quando se apresentam as telenovelas, os programas e os filmes, normalmente produzidos nos Estados Unidos. A TV nos faz crer em coisas incríveis como a forma constantemente glamorosa e a vida sadia e próspera dos norte-americanos. Nos filmes exibidos pela televisão, os estrangeiros são na maior parte do tempo pessoas que vivem muito bem, que possuem casas e carros confortáveis e pouco têm a ver com a miséria e o “subdesenvolvimento” do povo brasileiro. É possível revelar suas qualidades e esconder seus problemas através de filmes de ficção. Aí, é criado o padrão de felicidade que se associa ao consumo de bens e serviços.

Os Estados Unidos representam 30% do consumo e 25% do produto interno bruto mundial (CONSUMO MUNDIAL, 2008). Nosso padrão televisivo foi copiado dos norte- americanos e a possibilidade de vender produtos por este veículo seguiu as normas estrangeiras. A proposta era enxergar o mercado como algo uniforme e seguir a ideia de criar um veículo voltado para a massa. Neste caso, nem seria preciso que este aglomerado humano tivesse a capacidade de compreensão da escrita. Em 1950, quando a TV Tupi inaugurou as transmissões televisivas no Brasil, falar e mostrar passou a ser uma maneira muito mais eficaz de convencer a população

brasileira da época com pouco menos de 52 milhões de habitantes (BRASIL, 2008, p. 2), dos quais 50,6% eram analfabetos (BRASIL, 2008, p. 24). A televisão representou um meio de fácil compreensão e, na visão dos donos das emissoras, um meio eficaz de convencer uma massa “iletrada”, manipulável e que possuía um suposto comportamento linear.