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5. O TRABALHO NA ESCOLA PEDRO II

5.1. A ESCOLA BRASILEIRA DO SÉCULO XXI

5.1.2. A função da escola: dois pontos de vista

A escola começou a ser encarada no Brasil dos anos 1960 e 1970 como uma instituição que teria papel fundamental no desenvolvimento econômico do país, desta forma, seu objetivo seria reproduzir as relações de trabalho e de produção, “mobilizando, para isso”, segundo Freitag (1979, p. 8), “a ideologia da educação como forma de ascensão social e de democratização e oportunidades”. Nestes termos, a escola também funciona como um instrumento de socialização, mas uma socialização que opera em função da ideologia dominante. Nos parece que, embora cerca de 4 décadas tenham se passado, a visão da maioria das pessoas (pais e alunos) sobre a escola não tenha se alterado de maneira significativa.

Encaramos a escolarização como um meio de libertação das ideias dominantes. Em nossa proposta, a escola deve ser um instrumento que possa levar à crítica ao sistema capitalista. Esta crítica seria trabalhada através da categoria da linguagem que é uma das formas mais eficazes de transmissão ideológica e que é utilizada pela televisão com grande eficácia. É um processo que determina a apropriação pelos alunos de códigos linguísticos que fortalecem a ideologia dominante. O trabalho da escola deveria ser melhor entender estes códigos e combater ideias que possam prejudicar a autonomia do aluno – no caso deste nosso trabalho, ideias relativas à sociedade de consumo e como ela se configura nos dias de hoje.

Se o acesso da classe trabalhadora à escola aumentou sobremaneira com os governos de Lula, esperamos que a escola dê este tipo de suporte para que os filhos destes trabalhadores enfrentem sua situação subalterna e que encontrem soluções para uma vida mais digna. Estas crianças não precisam se formar com a mesma subserviência de seus pais que aceitaram o enfraquecimento coletivo (greves, sindicatos etc.) como fato, e a exploração trabalhista como destino. Para se reverter esta situação, é preciso promover a ideia de liberdade e igualdade que

permeia todo este nosso trabalho e que se encontra de forma clara na obra de Marx. Em educação, pode-se entender igualdade como um bem educacional distribuído entre os membros de uma população, sem qualquer distinção. Este bem pode ser pensado como igualdade de acesso (matrículas), igualdade de obtenção (também chamada de sobrevivência), igualdade de produção (ou de alcance do aprendizado) e igualdade de resultados, ou o retorno decorrente da escolaridade. Coleman (1968, p. 13) ainda inclui uma outra característica: “igualdade de tratamento ou acesso à boa qualidade de professores, materiais e experiência educacional em geral” [tradução nossa]. Estariam aí as definições do que esperamos da escola neste início de século e como ela deveria se apresentar à sociedade. Entendemos que esta seria uma escola plena que concorresse para a formação integral do indivíduo porque entendemos que o objetivo amplamente entendido pelos pais e alunos – a qualificação profissional – é apenas uma parte desta formação.

Mas antes de pensarmos numa escola que ofereça condições de desenvolvimento pessoal para os alunos, defendemos que é preciso dar acesso às população de baixa renda para a escola que temos hoje através de incentivos do governo federal como acontece com o programa Bolsa Família. Segundo o Ministério de Desenvolvimento Social (BOLSA FAMÍLIA, 2011), “diversos estudos apontam para a contribuição do Programa na redução das desigualdades sociais e da pobreza. O 4° Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio aponta queda da pobreza extrema de 12% em 2003 para 4,8% em 2008”. Apesar de todas as acusações que este seria um programa assistencialista e eleitoreiro, nos parece que, na verdade, ele serviu não apenas para garantir um maior número de alunos na escola, mas para reduzir um pouco a má distribuição de renda, um dos problemas sociais mais graves no Brasil. Segundo o relatório divulgado em julho de 2010 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil tem o terceiro pior índice de distribuição de renda do mundo. “Dos 15 países do mundo nos quais a distância entre ricos e pobres é maior, 10 estão na América Latina e Caribe. O Brasil tem o terceiro pior Índice de Gini – que mede o nível de desigualdade e, quanto mais perto de 1, mais desigual – do mundo, com 0,56, empatando nessa posição com o Equador” (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 2010). O índice de Gini é a medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini.

Chegamos a esta condição a partir de uma processo histórico de elevada concentração da posse da terra já no Brasil colônia, lembrando que a nossa economia tinha como núcleo a produção e exportação de produtos primários. Paralelamente, a escravidão que marcou profundamente nossa sociedade em termos de racismo e do preconceito que persistem até hoje. Mesmo depois da abolição do trabalho escravo, segundo Furtado (1967, p. 149), “praticamente em nenhuma parte houve modificações de real significação na forma de organização da produção e

mesmo na distribuição da renda”. Entendemos que a sociedade brasileira evoluiu e que hoje contamos com um sistema jurídico que pode, teoricamente, reduzir o impacto negativo de questões que envolvam o preconceito. Mas a população de baixa renda precisaria entender estes mecanismos que podem protegê-la e, mais do que isso, compreender a sua situação de direito. Mas a herança escravagista, que hoje atinge em maior grau a população negra (e financeiramente pobre) ainda aparece com força em situações de clara subserviência dos mais pobres frente aos mais ricos (geralmente, os não negros).

Sob estas condições, podemos pensar que a universalidade do acesso à escola, apesar de importante, não avança nesta questão que, no nosso entender, está entre as principais causas da desigualdade. Se as políticas públicas conseguiram criar condições para este acesso (pelo menos, ao Ensino Fundamental), seria necessário começar a desenvolver mecanismos, através destas mesmas políticas, para que a escola pública pudesse efetivamente se transformar em um local de formação cidadã. Que instituição, senão a escola, poderia prover este tipo de formação dentro de um sistema capitalista que se nutre da exploração do indivíduo trabalhador para, através da apropriação da mais-valia, obter altos rendimentos? Como já foi dito, a escola pode ser encarada como um “aparelho ideológico de estado”, mas será que está fadada mesmo a esta condição? Através das noções do materialismo dialético de Marx, acreditamos que haja uma saída e ela estaria na administração pública, ou melhor, no tipo de pessoa envolvida nesta administração. Aqui nos interessa explorar a diferença entre os administradores que seguem uma corrente democrática (que entendemos estar expressa de maneira geral nos Parâmetros Curriculares Nacionais) ou econômica. Na história recente do Brasil, é esta segunda que prevalece. Entre 1965 e 1975, as inciativas governamentais para a educação tiveram uma intensidade sem precedentes.

Convocam-se Conferências Nacionais de Educação e Colóquios Regionais sobre os Sistemas de Educação; desenvolvem-se planos (trienais, quinquenais e decenais) globais e setoriais em que a educação é destacada como fator estratégico do desenvolvimento; redefinam-se as leis para três níveis de ensino; reformulam-se os currículos e instrumentos de avaliação dos alunos; e, o próprio conceito de educação é revisto e reinterpretado sob um novo enfoque: o econômico (FREITAG, 1979, P. 11).

A partir dos anos 1970, a teoria do capital humano foi amplamente difundida no Brasil pelos economistas, 20 anos mais tarde, a educação escolar passou a enfatizar o capital humano individual que habilita as pessoas para a competição por trabalho. Como afirma Setúbal (2010, p. 347), “de forma direta ou indireta, a discussão atual sobre os rumos da educação brasileira passa por um debate que envolve uma postura, se não exclusiva, marcadamente defendida por uma

perspectiva economicista [...]”. A autora ainda escreve que

A visão da educação do ponto de vista dos economistas não é nova no Brasil, e remete-se aqui à ótima análise realizada por Almeida (2008)3 em “O assalto à

educação pelos economistas”. Nesse texto, a autora analisa o fortalecimento da posição dos economistas no campo educacional e o enfraquecimento da posição daqueles que ela chama de bacharéis- educadores. Ao retomar o debate da década de 1970 […], ela mostra como as discussões dos economistas se deslocaram do binômio educação e crescimento econômico para o tema educação e distribuição de renda (SETÚBAL, 2010, p. 347).

A visão economicista da educação sustenta que a distribuição de renda no Brasil está relacionada à escolaridade e que esta favoreça a participação mais plena do cidadão na economia e na sociedade modernas. Aqui não se discute que num mercado de trabalho competitivo, onde o número de empregos não acompanha o crescimento da população, a capacitação profissional de alto nível seja indispensável àqueles que queiram sobreviver. Mas entendemos que ao colocar a “culpa” do desemprego no indivíduo (que não estudou e não se capacitou como deveria) opera-se com uma carga ideológica que esconde as debilidades do sistema capitalista que, na verdade, não se apresenta como democrático. Num artigo escrito em 1972 para a revista The American Economic Review, o economista estadunidense Albert Fishlow escreve que “o sistema educacional brasileiro é, em si mesmo, um mecanismo que mantém a estrutura existente, reservando acesso ao diploma àqueles que têm pais escolarizados e que dispõem de uma renda razoável” [tradução nossa] (FISHLOW, 1972, p. 397).

Na nossa visão, uma das funções da escola pública na sociedade é, sim, formar para o mercado de trabalho, mas é, principalmente, promover um tipo de formação que propicie o desenvolvimento de mentes que pensam, e que avaliam, para que os alunos atinjam uma autonomia que leve o grupo, a sociedade, a uma pluralidade de ideias. Ao se promover uma educação que vise, majoritariamente, o mercado de trabalho, entendemos que se caminha em sentido oposto. O objetivo não é conferir autonomia ou pluralidade de pensamento ao indivíduo, mas massificá-lo dentro da lógica trabalhista da produção em série, automatizada. Estamos longe da época em que Charles Chaplin retratou o operário robotizado no filme Tempos Modernos (CHAPLIN, 1936), hoje, mesmo que ainda existam operários deste tipo, espera-se iniciativa, criatividade e raciocínio do empregado, mas tudo dentro de um sistema pré-estabelecido. O tema nos faz lembrar um artigo de Anísio Teixeira, publicado originalmente em 1956.

3 ALMEIDA, Ana Maria F. O assalto à educação pelos economistas. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 20, n. 1, 2008.

A “produção” fundada, assim, em planos uniformes e na repetição indefinida das mesmas fases operatórias faz-se algo de quase automático, reduzindo-se ao mínimo a participação individual do operário e exaltando-se ao máximo a contribuição central no sentido de planejamento e decisão. Toda a organização industrial funciona, então, como um organismo, com as funções centrais de deliberação e as funções automáticas de execução. (TEIXEIRA, 2005, p. 24).

E completando o pensamento,

A concentração de poder na produção industrial seria, principalmente, um resultado da aplicação de métodos uniformes e mecânicos de produção. Os dois fenômenos são diversos, embora, tanto em um quanto em outro caso, se registre a mesma subordinação do indivíduo à organização, com perda conseqüente de independência e liberdade individual […] (Ibidem).

Anísio Teixeira mostra neste artigo como a administração pública do sistema escolar passou a se espelhar na organização industrial, quando foi unificada e passou a ser dirigida pelo governador e pelo secretário de educação. A extinção dos antigos Departamentos de Educação fez com que a administração escolar perdesse a autonomia e passasse a depender das verbas federais a ela destinada.

Desse jeito, as reformas provocaram praticamente uma perda do espírito profissional na direção das escolas – pois o cargo de secretário não podia e nem pode ser técnico – e ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça, foram aumentadas terrivelmente as responsabilidades técnicas dessa direção. Com efeito, transformando todas as escolas, com os quadros únicos para todo o Estado, em uma só imensa escola, obrigou o administrador, isto é, o governador com o seu secretário, à tarefa impossível de administrar o sistema escolar, com um todo único, nomeando, removendo e promovendo, não em cada escola, mas em todo o Estado, o seu professorado, o seu pessoal administrativo e o seu pessoal subalterno. (Ibidem, p. 32)

Desta forma, a administração escolar se orienta com base na organização industrial (espírito de “racionalização”) e forma alunos para a indústria. Contrário a isso, concordamos com as ideias de Anísio Teixeira que defendia uma escola que promovesse um processo de educação de cultura individual, com alunos e professores autônomos para conduzir a vida na escola dentro da realidade de cada comunidade local, em cada momento histórico.

A educação é um cultivo individual, diferente em cada caso. Quem se educa é o aluno e a ele tem o mestre de atender. Se algum serviço jamais terá aspecto mecânico, este será o da educação. Ciência, técnica e filosofia da educação sempre hão de constituir não receitas, mas esclarecimentos para conduzir a experiência única e exclusiva, que é a educação de cada um. […] Todas (as escolas) deverão ter o máximo de autonomia, sendo a sua unidade não imposta, embora resultante e

resultado de idéias comuns, conhecimentos comuns e práticas comuns. Nessa unidade, haverá todas as diversificações, segundo as circunstâncias de tempo, lugar e pessoa (Ibidem, p. 35).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais trazem um discurso que respeita a diversidade cultural do país, mas, talvez por terem sido concebidos dentro de uma orientação neoliberal, também estabelecem nas escolas a interação escola e mercado de trabalho. Embora reconhecendo esta diversidade, tendem a indicar que elas devem se incorporar à cultura dominante. Seria ingenuidade pensar diferente já que os Parâmetros tiveram uma versão preliminar em 1995 e foram publicados entre 1997 e 1998 (1ª a 4ª séries e 5ª a 8ª séries) durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que defendia a livre concorrência no mercado sob forte influência da economia do mundo ocidental. As principais críticas aos documentos os acusavam de reacionário, político e ideológico. Os críticos seguem as ideias de Apolônio Abadio do Carmo (que trabalhava com inclusão escolar) e que defende que “é contraditório um professor desenvolver um trabalho pedagógico que parta do respeito às individualidades dos alunos, em escolas organizadas na perspectiva de que todos os educandos são iguais” (CARMO, 2006, p 57). O problema das políticas educacionais estaria em propor a transmissão do saber em benefício do aluno e da sociedade, sem questionar quem é este aluno e que sociedade é essa.

Entendemos que o desenvolvimento do pensamento crítico do aluno é pode levar a resultados que promovam o desenvolvimento na área da educação. Não podemos negar um avanço neste sentido dos PCNs que pregam a adoção de temas transversais como ética, orientação sexual, ambiente, saúde, estudos econômicos e pluralidade cultural – questões altamente pertinentes quando imaginamos uma educação para a vida num sentido amplo. Podemos dizer que a escola brasileira se apresenta como um aparelho ideológico de estado mas nós, professores, não precisamos endossar esta postura. Os professores sabem a autonomia que têm em sala de aula e mesmo que os PCNs avaliem as escolas e o corpo docente segundo critérios voltados para as estruturas administrativas e de reforço ao controle burocrático, podemos, criticamente, entender que dentro de uma instituição escolar estes parâmetros devem concorrer para aquilo que é mais importante dentro de uma escola, a formação do aluno.

Existe uma tendência uma tendência radical no meio acadêmico que aceita ou rejeita certas orientações ou teorias. Propomos aqui que temos liberdade de adotar os PCNs naquilo que têm de melhor: os temas transversais e as propostas humanistas, estas sim válidas para a formação do aluno. A escola é realmente fruto da sociedade que a produziu, mas pode ser também um local de ensaio e experimentação conjunta (entre alunos e professores) que possam um dia responder a alguns problemas sociais. Neste sentido, 14 anos depois da aprovação dos PCNs, e com o governo

de Dilma Roussef, que deve seguir as linhas básicas do governo Lula, com grande apoio popular, poderia ser este o momento de fazer uma revisão sobre os Parâmetros no sentido de reforçar-lhes o cunho de formação intelectual do aluno, que se sobreporia à orientação para o mercado de trabalho.