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2.4. A LIBERDADE EM ARENDT E O “MODELO MECÂNICO” DE BARBERO

2.4.1. O ser político e a liberdade em Arendt

Em A Condição Humana, Hannah Arendt (2007, p. 15) divide as atividades humanas fundamentais em “trabalho, obra e ação”2 – em nosso contexto, a terceira condição humana é a que

realmente nos interessa abordar. A autora busca reavaliar a condição humana em ordem de apontar para o restabelecimento da dignidade e da grandeza do homem, reduzidas frente à um reordenamento histórico que apequenou a estatura do indivíduo frente a uma máquina opressora que, a partir da revolução industrial, deu ao homem a função de mais uma engrenagem dos meios de produção.

Gostaríamos de abrir um parêntese para enfocar a questão sob a ótica de nosso objeto de estudo. Entendemos que a sociedade de consumo (e da informação) também atua numa forma redutiva onde pessoas viram consumidores, diluindo, através de um ideal de consumo intenso, o projeto coletivo de sociedade. Este processo se dá em consonância com o aumento da individualidade nos tempos modernos com a estratégia da produção em massa que se sofisticou tecnologicamente ao ponto de poder oferecer produtos teoricamente personalizados (vendidos como tal) para atender à ânsia da individualização (e diferenciação) dos consumidores. Na realidade, estamos todos consumindo a mesma coisa com uma maquiagem diferente.

Resumidamente, em A Condição Humana, Arendt coloca que o trabalho é uma atividade que faz parte do movimento cíclico e biológico do corpo vivo e, conforme Marx (2003, p. 52) “é a condição natural do gênero humano” que faz o homem se aproximar da natureza. É pelo trabalho que o homem produz aquilo que a condição de estar vivo requer e, consumindo, atende a esta necessidade.

A obra, ou fabricação, produz a quantidade infindável de objetos que dão o suporte físico àquilo que nos acostumamos a chamar de mundo. São coisas que possuem uma certa durabilidade e constituem os ambientes em que transitamos. A obra seria algo que não podemos possuir individualmente, já que ela é de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Um bom exemplo é a arquitetura urbana de uma cidade. No livro O Diamante de Jerusalém, de Noah Gordon (GORDON, 1995, p. 23), o personagem principal Harry Hopeman, um judeu que trabalha com venda de pedras preciosas e está prestes a fugir da Berlim nazista, é perguntado por que tem dúvida em deixar a cidade, já que seus bens mais preciosos cabem em seus bolsos. Ele responde: ‟na

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A tradução da edição em português de A Condição Humana a que tivemos acesso apresenta as 3 características (labor,

work and action) como “labor, trabalho e ação”, o que nos parece confuso. A própria autora chama atenção à etimologia

da palavra nos diversos idiomas. Preferimos traduzir a palavra inglesa work, por obra (da mesma forma que, em francês,

travailler e ouvrer se assemelham, mas o segundo verbo se relaciona mais à criação de uma obra). Ao assumir o termo work por obra, damos a labor a tradução de trabalho.

verdade, o meu bem mais precioso não cabe nos meus bolsos. É a cidade.”

É na obra que nos apoiamos na busca de segurança, permanência, que nos dá razão de existir e afasta a ideia de uma passagem fútil pelo mundo, que tem dia e hora para terminar, coisa que procuramos esquecer desde o nosso nascimento. Ainda que saibamos que estes objetos não são perenes, eles apresentam certa durabilidade, se bem utilizados. Desta forma, o mundo corresponde à artificialidade objetiva da vida humana que porta uma relativa durabilidade, pois diferentemente do trabalho, os produtos da fabricação constituem objetos de uso e não bens de consumo. É a durabilidade do mundo que empresta certa estabilidade e permanência que em alguma medida redimem a futilidade da condição humana de criatura mortal. Baseados nesta durabilidade, que ultrapassa àquela de quem os criou, criamos um mundo artificial que ultrapassa os nossos limites de longevidade biológica.

A ação é uma característica matricial da vida social e os homens se relacionam uns com os outros através de uma vida política em sociedade. Se o trabalho pode ser associado ao biológico, a ação humana, que numa visão ampla se relaciona com a capacidade discursiva, se inclui numa categoria não-biológica, relativa e exclusivamente aos homens – um ato social. Arendt estabelece uma relação entre a capacidade de agir e falar e a condição de ser plural inerente ao homem que precisa respeitar a singularidade dos agentes da polis.

A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir (ARENDT, 2007,p. 16).

A pluralidade é algo inerente a uma sociedade, onde um grupo de pessoas diferentes precisam respeitar-se mutuamente para o bem geral, algo que se vincula à reflexão de Arendt que reflete sobre a noção de vita activa. O termo é originalmente vinculado à polis grega pré-filosófica quando a ação política era tida como a mais alta atividade do cidadão. A inauguração da filosofia platônica confronta esta definição e diz que a mais alta atividade é a vida contemplativa em sintonia com a organização social.

Com o advento da modernidade, apresentou-se o ideal do fabricante e propôs-se que este superaria o homem contemplativo. É quando surge o homo faber com suas categorias de utilidade e instrumentabilidade. Enquanto o trabalho é uma atividade sem fim, repetitivo e que corresponde ao próprio processo biológico do corpo humano, a obra ou fabricação tem um começo

e um fim determinado, termina com um resultado tangível, durável: o objeto de uso. Este objeto fabricado pelo homem resultou da intervenção do homem na natureza e consequente violência sobre ela; assim, ele produziu “artificialmente” um artefato. A fabricação, a obra é a própria transformação da natureza pelo homem e sua condição é a mundanidade. Ao violentar a natureza o homem constrói um mundo de objetos. O domínio da obra é o da artificialidade.

No decorrer do período moderno, o aumento da escala e a tecnologia produtiva transformou os hábitos de consumo e fez surgir uma espécie de trabalhador que tinha como ideal a realização dos hábitos consumistas e a saciedade dos desejos a partir da aquisição de produtos que passou a se configurar como objetivo final (e principal) de seus esforços. O trabalho ganha valor sobre a fabricação de objetos, Marx chamou este homem de animal laborens. Arendt nos adverte que este não é, necessariamente, o operário, mas que está sob uma classificação que abrange uma ampla faixa de posições sociais.

Até mesmo presidentes, reis e primeiros-ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da sociedade; e, entre os intelectuais, somente alguns indivíduos isolados consideram ainda o que fazem em termos de trabalho, e não como o meio de ganhar o próprio sustento (ARENDT, 2007, p. 13).

A vitória do animal laborens, do trabalhador, sobre o fabricante de objetos (de obras) e sobre o homem de ação faz com que a animalidade se aproxime da humanidade, já que Arendt coloca como impossível o fato da felicidade estabelecida a partir da saciabilidade superar a razão da existência da política, que é a liberdade do indivíduo. Da ação, a vida na pluralidade junto a outros indivíduos singulares, decorre a política que através do discurso foi o meio encontrado para que esta situação de convívio pudesse ser assegurada com dignidade e garantia de liberdade. O interesse na coisa pública denotando que só com o bem estar geral se pode chegar ao bem estar individual.

A distorção moderna do ser político abandona esta concepção clássica e se dá, em Arendt, no ingresso do que os gregos chamavam de zoé (vida biológica) numa esfera que deveria ser dedicada ao bem comum e não apenas às necessidades e um indivíduo ou de alguns grupos de pessoas. Uma vez valorizada sobre as outras, a vida biológica estreita os horizontes do homem moderno que só enxerga a saciedade própria e, dividido entre o trabalho e o consumo, torna-se indiferente à política que passa a ganhar a conotação de coisa afastada (da qual eu não faço parte) – esta é uma forma de incentivo ao totalitarismo político onde os poucos eleitos ganham o poder de determinar a existência coletiva.

Neste cenário, não se estranha o fato de que nossa política funcione a favor do bem estar físico (saúde e segurança) e tome a educação como simples forma de inserção no mercado de

trabalho, afastando o ideal de Paulo Freire de formação completa do indivíduo. Por outro lado, a política se relaciona cada vez mais com a economia e é maior a pressão dentro e fora dos países para que as nações atinjam o equilíbrio financeiro no sentido macro, mesmo a custa de corte de financiamentos em projetos que atendem a população como um todo. A política voltada para o bem estar físico e o tipo de economia praticada no século XXI se inserem numa sociedade em que a busca por saciedade e conforto como objetivos máximos tende a fazer com que o deslumbramento com a abundância cegue o reconhecimento da futilidade de um modo de vida que não transcende o mero estar vivo.

O homem laborens difere basicamente do homem faber (o fabricante de objetos/obras) porque este último busca a permanência e a durabilidade, enquanto o primeiro encara o consumo como primeira necessidade e, para não parar de consumir, deve encarar tudo como mercadorias rapidamente descartáveis e perecíveis. É um mundo inseguro por força das circunstâncias já que nada se mantém, o velho vira sinônimo de ruim, de ultrapassado, só restando a valorização do novo. Nesta lógica, a história aparece sem importância porque ela trata de coisas passadas, superadas em muito pelas novidades.

No livro A Condição Humana, Hanna Arendt nos fala dos dois nascimentos como pessoas pelos quais passamos. O primeiro, biológico, quando enxergamos a luz pela primeira vez, e o segundo, quando em palavras e atos nos inserimos no meio social e encontramos nosso lugar entre os outros da nossa espécie. Esta inserção

não nos é imposta pela necessidade, como a atividade do trabalho, nem desencadeada pela utilidade, como a atividade da obra. Pode ser estimulada, mas nunca condicionada, pela presença dos outros em cuja companhia desejamos estar; seu ímpeto decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao qual respondemos começando algo novo por nossa própria iniciativa. Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar inciativa […], imprimir movimento a alguma coisa (ARENDT, 2007, p. 189 e 190).

Para os antigos, a participação política tinha como um dos seus significados o desejo de confirmar-se como livre na ação junto aos outros. Para a autora, a decisão principal com a qual se depararam todos aqueles que dedicaram sua vida à política, se resume à pergunta: seriam os homens capazes de amar mais o mundo que a si próprios? À elevação histórica do animal laborens como o tipo ideal que ocupa o topo das posições na hierarquia da vita activa se segue o postulado fundamental que alicerça o pensamento de Karl Marx: a tese do materialismo histórico.

Aqueles que se incomodam com a futilidade do consumo sem medida e entendem que isto não atende a promessa de liberdade lançada desde seus nascimentos como pessoas precisam

sempre se perguntar o que realmente buscam, a possibilidade de ser livre ou a fartura. O mundo de soberania ocidental em que o sistema democrático tem sido eleito o modelo mais bem sucedido encara um grande paradoxo: o trabalho se iguala à falta de liberdade. É difícil prever uma mudança do estado das coisas, mas enquanto nascerem pessoas, mesmo que estas sejam influenciadas pelas posturas tradicionais dos mais velhos, entendemos que a história continua a ser escrita.