• Nenhum resultado encontrado

2.5. MARX E A DIVISÃO SOCIAL PELO TRABALHO

2.5.3. O excesso de trabalho

As abordagens anteriores sobre o quadro do mercado moderno de trabalho foram aqui expostas para que pudéssemos abordar uma questão que se relaciona diretamente com a necessidade artificialmente criada de que temos que consumir cada vez mais. As constantes novidades tecnológicas que nos são apresentadas pela mídia causam sedutora atração e, algumas vezes,

irresistível apelo para a sua aquisição. Mas, para isso, é preciso que aumentemos constantemente nossa fonte de renda para comprar cada vez mais. Muitos encontram a solução para isso na extensão das horas de trabalho.

Os indivíduos que se encontram plenamente empregados e até mesmo com uma certa estabilidade não precisam, a princípio, se preocupar com a manutenção de seus cargos de trabalho, mas sofrem uma pressão interna e externa para que consigam uma remuneração cada vez maior. Quando esta pressão atinge limites intoleráveis, as pessoas param como máquinas sem energia. O psicologista Herbert J. Freudenberger deu um nome a este estado no livro Burnout: the high coast of high achievement, de 1981. O termo burnout poderia ser traduzido livremente por estafa, no subtítulo, o autor diz a causa deste estado: o alto custo das grandes conquistas (no trabalho). O autor começou os estudos sobre o estresse ocupacional, como também é chamado, na metade dos anos 1970, época em que se desenvolvia o tipo de capitalismo que hoje vivemos e a corrente econômica do monetarismo. A “doença” atinge física e psicologicamente o indivíduo que passa a ter uma atitude de apatia e desprezo pelo que faz e pelos outros. Autores como Moreno, Jiménez e Schaufeli alertam que

Conhecer a síndrome e pôr em prática estratégias de prevenção e intervenção faz-se imprescindível, sobretudo no mundo atual, onde as exigências por produtividade, qualidade, lucratividade, associadas à recessão, vêm gerando maior competitividade e, consequentemente, problemas psicossociais. Sabe-se que inúmeras baixas trabalhistas, bem como os altos índices de absenteísmo e rotatividade nas empresas, dão-se principalmente por causa do estresse e burnout (BENEVIDES-PEREIRA, 2008, p. 16)

Ao refletirmos sobre o fato, podemos constatar a incoerência em que a sociedade capitalista chegou. O trabalho que originalmente foi criado como prática social para suprir as necessidades básicas e promover a saúde do homem do paleolítico inferior, aproximadamente entre 5.000.000 a.C. a 25.000 a.C., chega ao século XX como possível causa de doença. Quando a apatia e a fatiga se transformam em características de uma atividade que deveria ser associada à promoção do bem estar, precisaria-se começar a questionar quanto esforço é válido para atingir as metas de consumo.

Países em processo de ocidentalização e grande expansão econômica, como a China, por exemplo, não oferecem vantagens do crescimento macroeconômico à média dos operários. Fábricas da cidade de Shantou, no sul do país, são especializadas na fabricação e na comercialização de brinquedos (BOURBON, 2009). As fábricas funcionam sete dias por semana e os trabalhadores cumprem jornadas diárias de 8 a 12 horas. Por esta carga de trabalho recebem

salários mensais equivalentes a cerca de 136 a 203 dólares (EUA), o que dá uma medida da falácia que carrega o termo potência econômica, que é como a China se apresenta. Como já dissemos, as condições macroeconômicas divergem da real situação da população, que continua pobre e sem qualquer direito de cidadão. Ainda segundo Bourdon (2009), “esses operários não trajam nenhum capacete e nem mesmo uma roupa de proteção contra os produtos químicos. O mesmo ocorre com seus colegas que, sentados num minúsculo banquinho, são encarregados de controlar a qualidade da produção.”

Se compararmos estes trabalhadores chineses com a média dos trabalhadores estadunidenses veremos situações bem distintas, mas alguma similaridade. Os primeiros trabalham para sobreviver (precariamente), enquanto o segundo grupo aumenta sua jornada de trabalho para consumir mais bens materiais e, a princípio, aumentar seu nível de satisfação. Esta pressão por possuir sempre mais acaba fazendo com que os dois grupos se encontrem na condição de enfrentar as mesmas elevadas horas de trabalho semanais e deixar de lado atividades como o lazer (o trabalhador dos Estados Unidos pode ter bem mais dinheiro, mas enfrenta a mesma falta de tempo que o chinês). Por isso, encontramos uma relação entre redução das horas de lazer e o consumo.

O consumo também é gerado por aquilo que podemos chamar de falência do mercado de lazer. Se temos um “mercado perfeito” para o lazer, então as pessoas poderiam facilmente escolher o quanto de trabalho e lazer que preferissem. Este não é o caso. O mercado do trabalho e as relações empregatícias nos Estados Unidos estão organizadas de forma a dificultar os indivíduos a escolher um estilo de vida menos consumista em favor de mais tempo livre [tradução nossa] (SCHOR, 1999, p. 47).

Por que, então, se deve trabalhar mais, para comprar mais, se não há tempo para usufruir daquilo que compramos? Talvez encontremos a resposta na tensa realidade que se apresenta mais forte a cada dia. As empresas, nas quais passamos tantas horas, têm se tornado, de certa forma, nossos verdadeiros lares. Ali encontramos os nossos possíveis amigos e amantes, já que não há tempo para procurá-los em outros lugares. Os ambientes de trabalho modernos têm se modificado para atender necessidades materiais, psicológicas e afetivas dos empregados. Mais uma vez, citamos os Estados Unidos, modelo maior de comportamento para os brasileiros. As corporações da chamada nova economia como a Microsoft, Oracle, Google, Apple, Amazon etc., empresas que encarnam o que existe de mais “moderno”, criam condições para que os funcionários se sintam em casa.

Essas empresas têm como sede social um campus – a palavra sugere um casulo idílico e de convivência, assim como um ambiente jovem e descontraído – que

oferece também creches, salas de ginástica, quadras de esporte, cafés, terapeutas, conselheiros de luto (grief counselors), lavanderia, correio, salas de descanso, com estoques de bebidas e aspirina, e até um serviço de zeladoria, que atende pedidos de encomenda de flores ou compra de ingressos para o teatro (WARDE, 2007).

Podemos chegar à conclusão que o trabalho moderno ao invés de nos libertar para que, independentes, passarmos a decidir sobre nossas próprias vidas, se tornou uma espécie de prisão que almejamos utopicamente na adolescência, mas da qual não podemos nos livrar na idade adulta. O trabalho divide a sociedade, como vimos em Marx, mas também a torna coesa pela maneira como foi organizado com indicações de que a empresa para a qual trabalhamos, e pela qual somos explorados (através da mais-valia), seria, nesta visão, a nossa grande família e que todos, de certa forma, somos os donos desta empresa e dela devemos zelar para que não sucumba. Neste perverso espírito de união, a empresa se apresenta como uma grande mãe, provedora de nossas necessidades e à qual devemos tudo o que temos. Numa das diversas contradições do sistema capitalista, ficamos cegos para entender que o local onde trabalhamos não é nada mais do que isso – uma grande prisão. Desmistificar questões como estas, que se relacionam diretamente com o consumo podem ser trabalhadas com os alunos nas escolas numa perspectiva de fazê-los melhor entender a sociedade em que vivem.