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5. O TRABALHO NA ESCOLA PEDRO II

5.3. OS SUPORTES UTILIZADOS NO QUESTIONAMENTO AO CONSUMO

5.3.2. O trabalho com os vídeos

Alguns documentários em vídeo dão apoio ao trabalho de questionamento do sistema capitalista na disciplina de Sociologia. Durante o semestre que acompanhamos as aulas, foram utilizados 3 filmes. ‟Criança, a alma do negócio” (CRIANÇA, 2008) foi financiado pela ONG Instituto Alana, que desde 2005 desenvolve o Projeto Criança e Consumo com atividades que despertam a consciência crítica da sociedade brasileira a respeito das práticas de consumo de produtos e serviços por crianças e adolescentes. O documentário foi finalizado em em 2008 e está disponível no site da instituição. Abaixo, descrevemos a apresentação do filme.

Por que meu filho sempre me pede um brinquedo novo? Por que minha filha quer mais uma boneca se ela já tem uma caixa cheia de bonecas? Por que meu filho acha que precisa de mais um tênis? Por que eu comprei maquiagem para minha filha se ela só tem cinco anos? Por que meu filho sofre tanto se ele não tem o último modelo de um celular? Por que eu não consigo dizer não? Ele pede, eu compro e mesmo assim meu filho sempre quer mais. De onde vem este desejo constante de consumo? Este documentário reflete sobre estas questões e mostra como no Brasil

a criança se tornou a alma do negócio para a publicidade. A indústria descobriu que é mais fácil convencer uma criança do que um adulto, então, as crianças são bombardeadas por propagandas que estimulam o consumo e que falam diretamente com elas. O resultado disso é devastador: crianças que, aos cinco anos, já vão à escola totalmente maquiadas e deixaram de brincar de correr por causa de seus saltos altos; que sabem as marcas de todos os celulares mas não sabem o que é uma minhoca; que reconhecem as marcas de todos os salgadinhos mas não sabem os nomes de frutas e legumes. Num jogo desigual e desumano, os anunciantes ficam com o lucro enquanto as crianças arcam com o prejuízo de sua infância encurtada. Contundente, ousado e real este documentário escancara a perplexidade deste cenário, convidando você a refletir sobre seu papel dentro dele e sobre o futuro da infância (INSTITUTO ALANA, 2010).

No nosso entender, o destaque para este trabalho é que ele foi desenvolvido no Brasil e fala de nossa realidade, apresentando crianças que falam de seu universo, bem próximo ao universo dos alunos do Colégio Pedro II. Alguns trechos do documentário revelam claramente a incoerência do mercado de consumo infantil, como a frequência com que os pais compram brinquedos para os filhos sem entender exatamente o que isso significa para as crianças. Numa das cenas, o menino mostra em seu quarto dezenas de brinquedos de todos os tamanhos e estilos – carros, jogos, bonecos etc. – para no final mostrar para a câmera aquele que mais gosta: um minúsculo boneco de plástico parecido com um brinde de lanchonete. Em outra cena, um grupo de crianças é reunido e uma menina, na faixa de 12 anos, diz que quando vai ao shopping center tem vontade de comprar tudo, até as próprias lojas. Outra menina, ao seu lado diz que tem vontade de morar no shopping center. Em outro momento do trabalho em grupo, uma mulher que faz perguntas às crianças exibe folhas de papel com marcas publicitárias, facilmente reconhecidas pelas crianças, mas têm dificuldades em dizer os nomes de alguns legumes e verduras. Alguns especialistas – professores, psicólogos, sociólogos etc. – e alguns pais das crianças tecem observações sobre o universo do consumo infantil durante o documentário.

O segundo vídeo exibido tem o título de “A história das coisas” (The story of stuff) (A HISTÓRIA, 2010a) produzido nos Estados Unidos sob o patrocínio das instituições de proteção ambiental Tides Foundation e Funders Workgroup for Sustainable Production and Consumption. O vídeo, roteirizado e apresentado por Annie Leonard, usa o programa de animação flash e está disponibilizado na internet em uma versão traduzida para o português do Brasil, patrocinada pela InfoNature.Org é uma organização internacional independente e sem fins-lucrativos de proteção ao meio ambiente , cujos fundos e apoios provêm em exclusivo de voluntários. Segundo a organização, ‟A história das coisas” é

Um pequeno documentário educativo que apresenta importantes informações sobre questões ambientais e sociais dentro da temática do consumo de produtos, que

representa um assunto urgente e de vital importância para a sobrevivência de todo o Planeta e da espécie Humana, para o presente e o futuro. A História das Coisas é um documentário rápido e repleto de factos que olha para o interior dos padrões do nosso sistema de extração, produção, consumo e lixo [...] até à sua venda, uso e disposição […] (A HISTÓRIA, 2010b).

É um trabalho que se aproxima da situação de sala de aula: uma ‟professora” (a apresentadora), frente a um fundo branco onde surgem as animações sobre o que diz. Basicamente, começa por explicar o sistema de produção capitalista e os impactos sociais e ambientais produzidos por este sistema.

O terceiro vídeo é intitulado “Surplus” (SURPLUS, 2008), palavra e inglês para o termo mais-valia é uma produção sueca de 2003, com 52 minutos de duração, que revela estatísticas segundo as quais 20% da população mundial absorve 80% dos recursos globais. O documentário foi filmado ao longo de três anos em oito país e apresenta desde os confrontos explosivos das manifestações em Gênova, 2001, em protesto contra o encontro dos G8, até as bonecas para uso sexual de 7.000 dólares. “Surplus” explora a natureza destrutiva da cultura consumista onde coabitam os líderes mundiais e diretores de grandes empresas (como um fanático empresário da Microsoft). Um dos personagens principais é o guru da anti-globalização, John Zerzan, cujo apelo à provocação de danos sobre a propriedade inspirou muitos à intervenção direta nas ruas.

Diferente, dos outros dois filmes, o documentário se utiliza de uma linguagem que, em produção audiovisual chamamos de “clipada”: sequências de cenas com cortes rápidos, em muitos momentos se assemelhando a um videoclipe em que as imagens acompanham o ritmo da trilha sonora. O filme é bem inovador para os padrões atuais de documentário e tem um forte apelo visual.

A escolha dos vídeos nos pareceu bem interessante porque são trabalhos bem diferentes uns dos outros. No Colégio Pedro II, os vídeos são assistidos em uma sala dedicada à atividade, que retira os alunos de seu ambiente corriqueiro de sala de aula – o que causa grande excitação na turma. Durante as exibições, em uma sala com as luzes apagadas, a reação da turma nos pareceu muito diversa. Alguns prestavam atenção, outros conversavam ou, mesmo assistindo à tela da TV, pareciam estar muito longe dali. Os documentários foram exibidos na íntegra e, ao final da sessão, por uma questão de falta de tempo, a professora não teceu qualquer comentário com os alunos – atividade que seria realizada na aula seguinte, dali a 2 dias. O filme “Criança, a alma do negócio” foi o que chamou mais atenção dos alunos que se interessavam quando as crianças davam seus depoimentos, mas perdiam a atenção aos depoimentos de pais e especialistas. Os outros dois vídeos despertaram menor interesse. Acreditamos que “A história das coisas” possui um bom conteúdo, mas se apresenta muito didático para este fim, ser apresentado para uma turma de crianças e adolescentes. Se assemelha demasiadamente a uma sala de aula, sem a presença e o possível

carisma do professor. Lembra os filmes de peças de teatro que se perdem entre os dois tipos de dramaturgia e acabam por não ser nem um, nem outro. “Surplus” é um filme inovador e uma boa proposta de linguagem documental para o público adulto, mas acreditamos que é diferente demais das produções audiovisuais a que os alunos estão acostumados. Aqui aparece claramente a influência da televisão que tem uma programação homogeneizada ao extremo e que se configura não como transmissora de conteúdos mas como uma formatadora de conteúdos. Conforme BUCCI e KEHL (2004, p. 31), “a televisão é um lugar em si”, exibe um olhar sobre o mundo bem particular.

[...] esse olhar que no cinema se consagrou na ficção e, portanto no domino do autor (apesar da indústria), exige uma cumplicidade consciente do expectador com a recriação do real. Na TV, esse “olhar sem corpo”, extremamente ativo no seu processo de recortar e recompor a realidade, nos é entregue sob formas diversas de ficção e testemunhos, conjugando-se com o nosso olhar passivo, substituindo nossa intencionalidade pela intenção e interesse do outro (ANDRADE, 2009, p. 01).

O distanciamento da linguagem dos documentários e a profundidade com que os temas são abordados, coisa pouco vista na televisão, parece um dos fatores que fizeram os alunos não se interessar pelos vídeos como imaginávamos. Também pareceram pouco interessados nas aulas de comentários sobres os filmes. Alguns diziam que não se lembravam bem das cenas, as respostas foram vagas. A professora Tatiana diz: “O capitalismo estabelece uma relação entre as pessoas muito peculiar e estabelece uma relação de consumo também muito peculiar. Uma relação muito maléfica. O consumo passa a ser um foco. O ser humano passa a se constituir a partir de elementos que ele consome, que ele compra.” Os alunos parecem concordar, mas não detectamos o mesmo tipo de desenvolvimento do pensamento crítico, visto nos trabalhos escritos.

Alguns fatores nos parecem relevantes neste fato. Não nos parece adequado tirar os alunos da sala de aula para que assistam aos filmes. Este fato cria uma espécie de ‟evento” a parte – como se fossem ao cinema – o que remete a um clima de diversão e de “hoje não tem aula!”. Acreditamos que se os alunos pudessem assistir aos filmes em sala de aula, os conteúdos seriam por eles melhor conectados ao que se diz na classe. Também seria mais eficaz que fossem exibidas partes dos filmes e que a discussão pudesse ser realizada no mesmo dia. Encaramos que, desta forma, poderia se tirar mais proveito do audiovisual e, ainda assim, ele poderia servir como um momento de ruptura do cotidiano da sala de aula.

Ficou claro que os alunos desta faixa etária estão pouco preparados para tomar um contato produtivo com produções audiovisuais diferentes daquelas que assistem na TV. E a professora Tatiana concorda com isso.

Inúmeros recursos audiovisuais podem ser utilizados. O grande diferencial é como o professor vai fazer para que aquele aluno esteja aberto para observar aquele recurso audiovisual. Temos um problema de disciplina muito grande. Muitos alunos em idade pré-adolescente. Todo mundo muito agitado. São adolescentes, mudam de sala, vão para sala de vídeo, ficam animadíssimos. Temos que conseguir fazer com que esses alunos tenham uma calma, uma tranquilidade, que eles possam serenar. É preciso fazer algum tipo de sensibilização para que eles possam capitar aquelas imagens e depois discutir sobre elas ou fazer uma discussão anterior. Algum tipo de sensibilização é preciso para que eles possam ver o filme, para que eles possam ter acesso ao audiovisual (BUKOWITZ, 2010a, p. 01).

Neste ponto de nosso trabalho na escola nos demos conta de como é preciso trabalhar com as crianças para que consigam entender questões fora do senso comum. Mas acreditamos que este pode ser um dos papéis da escola, porque o mundo imposto pela ideologia dominante deve sofrer uma resistência. Colocamos anteriormente que a escola pode ser considerada como uma dos aparelhos repressores do estado e as respostas destas crianças a um trabalho escrito ou a um vídeo está incluída no ambiente escolar. Bakhtin dizia que sempre escrevemos para alguém:

O simples fato de eu conceder um significado, se bem que infinitamente negativo, ao que me determina, e de questioná-lo, ou seja, de eu tomar consciência de mim mesmo na existência, esse simples fato atesta que não estou sozinho em minha introspecção-confissão que meus valores são refratados em alguém, que há alguém para quem apresento interesse, que há alguém que necessita que eu seja bom. […] O índice substancial (constitutivo) do enunciado é o fato de dirigir-se a alguém, de estar voltado para o destinatário. […] Este destinatário pode ser o parceiro e interlocutor direto do diálogo na vida cotidiana, pode ser o conjunto diferenciado de especialistas em alguma área especializada da comunicação cultural, pode ser o auditório diferenciado dos contemporâneos etc.[...] (BAKHTIN, 1981, p. 91 e 180)

Assim, nossos discursos se limitam aos ambientes em que nos inserimos, subjugados pelas redes de poder através da linguagem. Quando proferimos uma ideia, estamos sujeitos a esta censura que também é uma auto-censura. Mesmo assim, acreditamos que a liberdade seja o que mais procuramos: na escola ou em qualquer outro lugar.