• Nenhum resultado encontrado

Enxergamos a escola como um espaço que proporcione escolhas, que abra um espectro de possibilidades para a vida em sociedade e que possa apoiar a formação global do indivíduo como ser independente e dono das próprias escolhas. Um indivíduo livre. Esta utopia pode começar a ser concretizada na medida em que se ofereça aos alunos alternativas ao pensamento hegemônico. Como diz Dermeval Saviani (2009), passar “do senso comum à consciência filosófica”.

Já dissemos que a nossa opção é encarar as questões sobre o consumo numa sociedade capitalista a partir dos ideais marxistas. Propomos esta conduta não apenas como uma forma de doutrina contrária ao neoliberalismo, mas como uma porta para uma outra maneira de pensar a

respeito das práticas consumistas, já que entendemos que o indivíduo pode realizar escolhas a partir do momento que encontra mais de uma opção de vida.

O objetivo educacional deste trabalho nos encaminha, desde alguns anos de estudo, a seguir as ideias de Paulo Freire através de sua leitura de mundo. Buscamos referências em outros textos do pedagogo mas, particularmente, nos ateremos aqui no livro Pedagogia do Oprimido como guia para o ponto de vista que elegemos para esta pesquisa: a postura das camadas sociais de baixa renda frente à sociedade de consumo.

Entendemos que este seja um texto básico do autor e que a partir das ideias nele contidas expõe toda a sua postura de fé, respeito e crença nas pessoas. Freire valoriza o cotidiano como ponto de partida para o desenvolvimento de um conhecimento político-científico-filosófico que daria conta de uma pedagogia com base na praxis humana. É um pensamento libertador que demonstra crença nos homens e mulheres do povo, aposta que a liberdade pode ser conquistada com a ajuda de uma pedagogia que dê condições para que estas pessoas atinjam um poder de reflexão que as faça descobrir o seu papel de sujeito histórico. Paulo Freire demonstrou que, com o seu método de alfabetização através das “palavras geradoras”, o ensino da leitura e escrita deve se basear no princípio da conscientização e, no livro a que nos referimos coloca os problemas que advém do binômio oprimido/opressor.

Nos parece claro que aí se encontra uma questão de luta de classes, uma luta que pende para o lado mais forte e que precisa ser equilibrada a partir da conscientização dos oprimidos como tal.

É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como “coisas”. É precisamente porque reduzidos a quase “coisas”, na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase “coisas”, para depois ser homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é “a posteriori”. A luta por esta reconstrução começa no auto-reconhecimento de homens destruídos (FREIRE, p. 60, 1970).

Este embasamento teórico nos parece relevante com a nossa proposta de pesquisa. Esta linha de pensamento de Freire se completa (ou é completada) com o conteúdo do Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em 1848. Marx e Engels explicitam que o poder político é meramente o poder organizado de uma classe para oprimir a outra. Se, historicamente, a opressão crescente sobre os oprimidos (proletariado, em Marx) não confirmou as previsões dos autores a respeito de uma revolução de baixo para cima não encontramos, de fato, motivos para duvidar que exista entre os “fracos” uma força latente possível de reverter o estado das coisas ou, pelo menos,

diminuir o abismo entre a população de baixa renda e os ricos. É preciso sempre olhar para o passado e constatar que lutas que pareciam inglórias acabaram revertendo o quadro social (podemos de imediato pensar na história do Partido dos Trabalhadores).

Freire se refere ao Ser Mais como uma possibilidade histórica nas mãos daqueles que estão em um processo de busca. Em analogia aos atuais hábitos de consumo, podemos pensar que a cobiça por um número infindável de produtos (e coisas que o dinheiro possa comprar) insinua uma condição de insaciabilidade que jamais termina. Nesta busca contínua pela satisfação, o consumidor, inclusive o infantil, indica que não encontra o que realmente procura porque não sabe exatamente o que quer ou o que precisa. Será que são mesmo os bens de consumo que atenderão a esta possibilidade de Ser Mais? As promessas da publicidade através do audiovisual televisivo são muitas, mas, como não se concretizam, o consumidor continua na sua busca, comprando novos produtos de todas as espécies para tentar encontrar o sentimento de saciedade (e “felicidade”) que espera conseguir.

Será a escola um lugar para aprender o sentido do consumo? Propomos que sim, uma vez que entendemos a escola como um meio para a formação para a vida. É fundamental para a formação sólida do indivíduo ter ferramentas para enfrentar o mundo de forma coerente e segura, e, dentro de uma sociedade capitalista, o mercado de consumo. A escola poderia mostrar aos alunos o consumo como aquilo que ele realmente representa, segundo Canclini, (1999, p. 77): “o conjunto de processos socioculturais nos quais se realizam a apropriação e os usos dos produtos”. Assim, a forma como se consome no século XXI diz muito de como se formatou a sociedade que hoje vivemos, na propensão dos indivíduos ao individualismo e ao destaque social como ser único, à busca da auto-expressão e reconhecimento (geralmente, através do trabalho), à ânsia de estar no centro das atenções como se protagonizasse o seu espetáculo particular. Esta disputa social que se trava no campo simbólico precisa ser explicitada na escola como uma forma de fazer os alunos refletirem sobre sua própria condição. Como escreve o professor Ernani Maria Fion no prefácio de Pedagogia do Oprimido,

a descodificação é análise e consequente reconstituição da situação vivida: reflexo, reflexão e abertura de possibilidades concretas de ultrapassagem. Mediada pela objetivação, a imediatez da experiência lucidifica-se, interiormente, em reflexão de si mesma e crítica animadora de novos projetos existenciais. O que antes era fechamento, pouco a pouco se vai abrindo; a consciência passa a escutar os apelos que a convocam sempre mais além de seus limites: faz-se crítica (FREIRE, 1970, p. 3).

possa criar outra orientação, diferente daquela que a TV divulga para as crianças a todo o momento, através da publicidade. Freire (1970, p. 145) sustentava que o homem é um ser da praxis, do “quefazer [...] porque seu fazer é ato de reflexão”. Defendemos que incentivar a reflexão deve ser uma tarefa primordial na escola, ainda mais quando se pode criar aí um contraponto à superficialidade do audiovisual televisivo que pouco leva ao ato de refletir. Não é tarefa fácil propor que os alunos pensem filosoficamente sobre seus hábitos de consumo, mas devemos lembrar que uma das grandes justificativas para a escolarização é demonstrar a existência do pensamento científico e como ele faz avançar frente aos problemas práticos. Como insiste Freire (1970, p. 146), “[...] não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ativismo, mas com praxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas.”

O educador também demonstra em Pedagogia do Oprimido que as classes dominantes não esperam que não haja um questionamento frente às suas imposições, ou seja, não existe uma situação dialógica. Como entendemos a televisão como representante dos interesses dominantes (não existe veículo na mídia brasileira que seja controlado e administrado pela população de baixa renda), não vemos qualquer possibilidade de diálogo entre as emissoras e o público. A televisão busca entender o que se passa na sociedade porque é disso que se nutre. Também busca entender o que quer o espectador porque precisa de audiência que, depois de mensurada, servirá de base para as tabelas de preço para os intervalos comerciais e patrocínios de todos os programas.

A ausência de uma perspectiva de diálogo entre a classe dominante e o povo brasileiro também se revela nas políticas educacionais. O modelo brasileiro, historicamente, atendeu os interesses da classe dominante. As práticas de exclusão ainda atingem a população de baixa renda. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Anísio Teixeira (BRASIL, 2010), no ano de 2007 4,3% do produto interno bruto foram investidos na Educação Básica, valor pouco superior aos 3,7%, em 2000. O relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), intitulado Situação da Infância e da Adolescência Brasileira 2009 – O Direito de Aprender: Potencializar Avanços e Reduzir Desigualdades (SITUAÇÃO DA INFÂNCIA, 2009), recomenda que sejam investidos 8% do PIB na Educação brasileira. O documento reconhece e comemora os avanços nos indicadores de acesso, aprendizagem, permanência e conclusão do Ensino Básico – 97,6% das crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos estão matriculados na escola, o que representa cerca de 27 milhões de estudantes. Mas alerta que os 2,4% restantes representam 680 mil pessoas, número maior que a população do Suriname, por exemplo. Desse total de crianças fora da escola, 66% (450 mil) são negras e o percentual na Região Norte é duas vezes maior do que o mesmo percentual na Região Sudeste.

Brasil (que também se revela na precária situação da infra-estrutura física da maioria das escolas públicas). Uma as evidências de que o poder público se importa pouco com o efetivo desenvolvimento das escolas (formação integral) está na prática de indicação dos gestores da esfera federal, geralmente, indicações políticas para os cargos no Ministério da Educação (para delimitar um período político, nos referimos aos mandatos de Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, até o final do segundo mandato de Luiz Inácio da Silva).

As mudanças no sistema capitalista no século XX – declínio da social-democracia e ascensão do neoliberalismo – foram marcantes a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso. Foram mudanças que afetaram as bases produtivas, trouxeram à tona a ideia de globalização, quando redefiniram a noção de público e o privado.

Nesse contexto, as corporações transnacionais assumem posição hegemônica no mercado mundial e, dentro da concepção neoliberal, passam a ter responsabilidades assistenciais, que na social-democracia constituíam prioridade do Estado. Além disso, tais corporações dominam as forças produtivas centrais do capitalismo de final do século XX: a ciência, a tecnologia e a informação (SILVA JÚNIOR, 2005, p.13).

Estas condições têm um reflexo mais direto na educação superior, mas todo o processo educativo foi atingido e, de certa forma, o sentido da educação fundamental também começou a ser orientado para a formação da força de trabalho. Nesse caso, a pedagogia de formação para a liberdade de Freire estaria colocada em segundo plano, já que a profissionalização exerceria o papel principal na escolarização. O atual modelo econômico prega que uma nação deve estar sempre em crescimento ao proporcionar um contínuo aumento de riqueza (produto interno bruto). A evolução dos meios de produção fez com que se ampliasse a base de trabalhadores qualificados, técnicos, gerentes etc. para atender a crescente demanda da tecnoestrutura (ampliaremos este conceito adiante). Mas esta riqueza gerada beneficia apenas a classe dominante, o que transforma o Brasil (e outros países denominados de “terceiro mundo”) em país que aponta para um crescimento de riqueza, mas que continua com uma população basicamente pobre. A política educacional que objetiva a formação para o mercado profissional não favorece o desenvolvimento pessoal da população de baixa renda (maioria dos brasileiros), não abre portas para uma nova concepção de mundo (ao contrário reafirma que a busca pelo capital seja a razão primordial para a formação escolar) e reforça a condição privilegiada da classe dominante, pela passividade da classe de baixa renda.

Crescer, em termos econômicos no mundo capitalista, também significa aumentar o consumo interno. E é aí que a mídia entra para informar que o poder de compra é o principal

objetivo a ser atingido. Esta é a filosofia dos donos do capital que entendem que, dentro do sistema em que vivem, os esforços devem ser direcionados para o constante o acúmulo de capital – e população de baixa renda assume esta maneira de pensar como sua. Na Educação escolar isto se dá quando o professor se apresenta como o portador do conhecimento que devem ser depositados nos alunos que apenas arquivam o que ouvem, e copiam. É a concepção “bancária” em Freire.

As elites dominadoras, na sua atuação política, são eficientes no uso da concepção “bancária” (em que a conquista é um dos instrumentos) porque, na medida em que esta desenvolve uma ação apassivadora, coincide com o estado de “imersão” da consciência oprimida. Aproveitando esta “imersão” da consciência oprimida, estas elites vão transformando-a naquela “vasilha” de que falamos, e pondo nela slogans que a fazem mais temerosa ainda da liberdade (FREIRE, 1970, p. 100).

A principal diferença é que os filhos da classe dominante, os mantenedores desses slogans, nascem com vários passos de vantagem sobre aqueles que precisariam construir com seu próprio trabalho uma condição financeiramente equivalente às da burguesia e atenda ao ideal por ela estipulado. A conjugação do verbo precisar vai no futuro do pretérito porque as chances de que esta condição (trabalhar para a ascensão financeira) se concretize é pouco provável. Se os filhos da burguesia nascem com vantagem, os filhos das classes de baixa renda se encontram em situação oposta. Provavelmente, se tornarão cópias da condição de dominados como seus pais e os pais de seus pais. É uma condição que deve ser assumida como tal pois o homem que não se reconhece como cidadão, independentemente de sua classe social, não encontra meios de avançar por outros caminhos e deixar para trás aquilo que não mais o serve.

Uma escola que tenha uma orientação humanística não pode permitir que os sonhos de consumo impossíveis continuem a dominar o imaginário do povo como um projeto possível a ser concretizado. Somos proibidos de sonhar? Não, não somos, mas acreditamos que seja necessário entender a dimensão que a fantasia ocupa em nosso cotidiano e saber distinguir entre a situação fantasiosa que nos faz bem e aquela que nos cega para que possamos atingir uma condição de plenitude pessoal.

Mais uma vez, colocamos que a proposta de uma educação libertadora não deve ser encarada como uma “mensagem salvadora” (Freire, 1970, p. 101), ou mais uma forma de doutrina a ser imposta àqueles que, aos olhos dos acadêmicos, não sabem o que querem. Esta seria uma atitude presunçosa e arrogante, mais uma esmola para os pobres que sai da mão dos eruditos. O que se propõe é um “combate” à mídia que possui poderosas armas, usadas para convencer a população em favor dos interesses dominantes. Antes que um monólogo, nos propomos a realizar um diálogo em sala de aula que ajude os alunos a “conhecer, não só a objetividade em que estão (os alunos), mas a

consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão” [grifos do autor] (ibid, p. 101). Significa propor que este diálogo possa ser constituído a partir de uma verdadeira troca em que se possa confrontar duas visões de mundo: aquela que defendemos e a daqueles alunos da escola pública que assumem a ideologia dominante.

Não há como não repetir que ensinar não é a pura transferência mecânica do perfil do conteúdo que o professor faz ao aluno, passivo e dócil. Como não há também como não repetir que, partir do saber que os educandos tenham não significa ficar girando em torno deste saber. Partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a outro e não ficar, permanecer. Jamais disse, como às vezes sugerem ou dizem que eu disse, que deveríamos girar embevecidos, em torno do saber dos educandos, como a mariposa em volta da luz (FREIRE, 1992, p.37).

O diálogo é fonte de conhecimento mútuo e para que o professor entenda a condição dos alunos é preciso que os escute. Esta é condição fundamental para o trabalho que propomos em relação aos significados dados pelas crianças ao mercado de consumo – seja a resposta que dão frente à publicidade televisiva, seja na sua maneira de significar questões em relação ao consumo ou o que fazem com os produtos que tanto desejam. Já colocamos que não pretendemos fazer uma análise da recepção, já que esta se apresenta como uma tarefa fora do nosso alcance pela proporção do universo que apresenta, mas precisamos de algumas respostas que possam validar nossa hipótese. Respostas que mostrariam, na prática, qual o sentido que os espectadores dão às imagens e significantes que a televisão propõe para o consumo de produtos. Acreditamos que estas respostas possam ser encontradas em sala de aula.

É um trabalho que necessita de diálogo, impossível de ser feito pelos órgãos envolvidos com pesquisas de audiência que apenas se interessam mais por números e do que por depoimentos sobre aquilo que os espectadores assistem. Em janeiro de 1978, Michel de Certeau deu uma entrevista ao jornal francês Le Monde quando disse:

A análise das imagens distribuídas pela televisão, dos tempos passados diante do aparelho, das escolhas feitas pelos utilizadores etc., não diz ainda nada sobre o que o consumidor anda a fazer durante estas horas e com essas imagens. Ora, aí é que está toda a questão: o que é que anda o nosso freguês a fazer nos espaços impostos da cidade, do supermercado, dos media, dos escritórios etc.? Cada vez sabemos menos, à medida que a extensão totalitária dos sistemas de produção já não deixa aos consumidores um lugar onde deixar marca do que fazem com os produtos e à medida que, participantes na lógica desses sistemas, os aparelhos científicos medem o avanço desses produtos nas redes de uma ordem econômica, mas ficam cegos sobre o uso que deles fazem os fregueses. A uma produção racionalizada, tão expansionista como centralizadora, ruidosa e espetacular, corresponde uma outra produção (qualificada de consumo), esperta, dispersa, mas insinuando-se em todo o lado, silenciosa e quase invisível, já que se não assinala com produtos próprios mas na maneira de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica

dominante (MATTELART, 2005, p. 158).

Este nos parece um ponto muito relevante, porque é aí que o professor pode trabalhar com os alunos as questões sobre o consumo. É nas respostas que os alunos dão ao que fazem com as coisas que compram e como se relacionam com elas que poderíamos entender se os sentidos que a televisão dá aos produtos se equivalem àqueles conferidos pelos que vão utilizá-los. Como já foi dito, não encaramos a TV como toda poderosa, como aquela que dita as normas sem que haja contestação do público. Mesmo que não seja o nosso objetivo estudar a recepção em sua amplitude (as reações de um público diversificado a um universo de programas), aceitamos que possa existir uma reação inesperada (para os veículos) da audiência e esta pode ser encarada como uma forma de resistência, uma crítica. Nos parece que, ao medir apenas os índices de audiência, informação quantitativa, os produtores de TV prestam pouca atenção à qualidade das reações do espectador. Não encontramos, no atual formato televisivo, indícios de que a televisão realmente esteja interessada em entender o que passa pela cabeça daqueles a quem a programação se dirige.