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2.5. MARX E A DIVISÃO SOCIAL PELO TRABALHO

2.5.4. A revisão de Marx em Lukács

É importante dizer que nosso trabalho se baseia nos ideais marxistas no que se refere a questões relativas à ideologia (que veremos adiante) e ao materialismo histórico, mas que não acreditamos ser coerente pensar que, no atual contexto histórico, existam condições para a realização de uma revolução socialista da classe trabalhadora. Aqui não é o lugar de se desenvolver mais a fundo a proposta de revolução em Marx mas, dentro de sua produção intelectual, a teoria da revolução social em geral não passa de um esboço. Ainda mais, poderíamos pensar que uma revolução proletária, resultante de uma luta de classes, não garantiria, necessariamente, uma sociedade mais igualitária, uma vez que o que se observa numa sociedade que prima pelo individualismo é a competição dentro das diversas classes sociais sem que a noção de coletividade, um bem comum, seja eleita como a desejada.

O que propomos é utilizar a teoria marxista como uma forma de crítica ao sistema capitalista atual e à promoção de um consumo incoerente. Como o próprio Marx dizia, depois das diversas interpretações de mundo, “cabe agora transformá-lo”. Encontramos nos escritos de Gyorgy Lukács (1885-1971) um dos caminhos para esta transformação. O filósofo húngaro era conhecido como uma figura com possibilidades de abertura quanto às suas convicções – característica não

muito fácil de se encontrar nos pesquisadores. Procurava respostas e soluções de acordo ao contexto social das diversas épocas, e esta é, definitivamente, uma postura que se mostra condizente com o nosso trabalho.

No caminho para a compreensão e reinterpretação de Marx, Lukács escreveu um ensaio intitulado “O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840 a 1844”, publicado pela primeira vez em 1955 na Revista Alemã de Filosofia, da Berlim Oriental. No ensaio, o filósofo mostra com clareza a evolução do pensamento de Marx desde a escrita de sua tese de doutorado até a sua reavaliação crítica da influência hegeliana para a definitiva elaboração da dialética materialista. Graças a isso, entendemos a verdadeira contribuição de Marx para a história da filosofia ao reabilitar a tradição materialista e ao encontrar as premissas da abordagem dialética na obra de Epicuro de Samos, filósofo grego do período helenístico. Na tese de doutorado, Marx confronta as ideias de Demócrito e Epicuro e ressalta a importância para as questões sociais que este último revelou a levar em consideração o tempo.

Na filosofia natural de Demócrito, o tempo não tinha nenhuma significação; para Epicuro, ao contrário, o tempo era “mudança do finito na medida em que é posto como alteração”: era “tanto a forma real, que separa o fenômeno da essência e põe o fenômeno como fenômeno, quanto o que reconduz o fenômeno à essência.” Assim, diz Marx, para Epicuro “a sensibilidade humana é o tempo que se tornou

corpo, a reflexão do mundo sensível que existe em si” [grifo do autor] (LUKÁCS,

2009, p 128 e 129).

Esta exposição de Epicuro, que nos parece fundamental, partiu da história da filosofia de Hegel, no qual Marx se apoiou, mas com uma interpretação distinta da original. São noções que nos interessam para separar do senso comum os ideais marxistas, da mesma forma que fez o filósofo húngaro. Lukács se aproximou de Marx após a Revolução Russa de 1917, época em que passou a se considerar um comunista. Os atritos com o Partido o fez se afastar em 1956 e a refugiar- se na Romênia. Sua vida intelectual foi marcada pela constante crítica e não poderia ser diferente a respeito de suas convicções marxistas. Em uma entrevista ao filósofo brasileiro Leandro Konder em agosto de 1969, dois anos antes de sua morte, Lukács declara:

No processo histórico de seu desenvolvimento, o marxismo ainda não conseguiu dar respostas realmente satisfatórias aos problemas apresentados pelas novas condições mundiais. […] Quando olho para os anos que estão por vir, admito que os problemas com que nos defrontamos podem se agravar ainda mais e acho até provável que se agravem. Mas, quando olho para as próximas décadas, torno-me otimista. Pode parecer paradoxal que um velho como eu fale das próximas décadas e encontre nelas uma fonte de otimismo... (LUKÁCS, 2010).

É este otimismo que encontramos de maneira recorrente na obra do húngaro. Dentre suas posturas estava a possibilidade de reunir os democratas revolucionários e o socialismo numa nova concepção de democracia que se resumia em acabar com “todas as formas de dependência do homem frente ao homem, de exploração e repressão do homem pelo homem, de desigualdade social e de ausência de liberdade” (LUKÁCS, 2009, p. 28). Para o filósofo, o nível de instrução formal dos trabalhadores urbanos e rurais devia elevar-se para que pudessem lutar por tal democracia ao se apropriar da cultura do passado, conhecendo, assim, a sua história para melhor entender a si próprios e desenvolver as forças culturais até agora reprimidas. Só assim seria possível construir um “novo homem”. Em consonância com a orientação teórica deste nosso trabalho, Lukács defendia uma educação no sentido amplo.

[…] ignora-se que o que geralmente chamamos de educação em sentido estrito é tão-somente uma pequena parte da efetiva educação de todo homem e que as formas e conteúdos da vida cotidiana operam vigorosamente – às vezes, de modo determinante – sobre a formação interior […]. Uma educação que não esteja em harmonia com essas formas reais de vida, mas que colida com elas, é objetivamente impotente e pode com facilidade se expressar subjetivamente como hipocrisia (LUKÁCS, 2009, p. 62).

Estas também nos parecem as premissas para uma sociedade mais justa e livre das amarras ideológicas, entre elas, as que se referem ao consumismo. Mais uma vez lembramos que não defendemos uma possível revolução social em que os pobres subiriam ao poder, mas nos parece possível propor que se mantenha uma coerência intelectual em função de uma crítica à sociedade de consumo (a sociedade atual brasileira) que apresenta todas as características avessas à independência de ideias: criação de dependência, desigualdade e ausência de liberdade de escolha. Estamos aqui para propor a formação de uma consciência de classe entre os alunos em que a população de baixa renda (e mesmo a classe média) entenda que deve se assumir como tal e, assim, perceber todos os seus direitos que são omitidos por um sistema que só privilegia a classe dominante e seus agregados. Lukács nos faz lembrar que a ideia de igualdade humana é histórica e indispensável ao ser social. Na visão do materialismo, é concebida como possibilidade concreta.

[…] o cristianismo estabeleceu a igualdade das almas humanas diante a Deus; a Revolução Francesa, a dos homens abstratos diante da lei; o socialismo realizará a igualdade dos homens concretos na vida real. Estes três movimentos, por mais diferentes que sejam, sempre conceberam a igualdade como requisito indispensável para um verdadeiro desenvolvimento da personalidade – e jamais como sua destruição. Filosoficamente, a reinterpretação do materialismo e seu desenvolvimento no pensamento marxista trazem como novidade a concepção de que a liberdade e a igualdade não são simples ideias, mas formas concretas da vida dos homens, relações concretas entre eles, ou seja, relações concretas com a

sociedade e, mediadas por esta, com a natureza; a realização da liberdade e da igualdade exige, portanto, a necessária transformação das condições sociais das relações humanas (LUKÁCS, 2009, p. 28).

Lukács entedia que a falência do socialismo prático estava no taticismo, a consideração do cotidiano como essência na política, segundo o filósofo (2010), “a pior herança do que nos deixou Stalin”. O esquecimento da teoria deixada por Marx, ou melhor, a subordinação desta teoria pela prática e pelas necessidades políticas imediatas deixou grande parte dos conceitos marxistas de lado ou, o que pensa a maioria, majoritariamente relacionada à economia, deixando de lado a dimensão filosófica de sua obra. “Com isso”, diz Lukács (2010), “renunciamos a uma das conquistas fundamentais da perspectiva marxista: a unidade de teoria e prática. A teoria fica reduzida à condição de escrava da prática e a prática perde a sua profundidade revolucionária. Os efeitos de semelhante situação são catastróficos”. A falta de liberdade de ir e vir nos países socialistas estaria em uma destas posturas que estão longe do marxismo. Aqui talvez seja a hora de defender que a validade das ideias de Karl Marx, adaptadas à atual conjuntura histórica, nada têm a ver com a falência do sistema socialista. Aqueles que defendem que a teoria do materialismo dialético afundou com o socialismo prático e que o capitalismo é o único sistema possível de conseguir sucesso nas sociedades atuais, são, sem dúvida, os maiores beneficiários da exploração e expropriação social. É a eles que devemos dirigir nosso poder de fogo intelectual.

Insistimos aqui que a crítica à sociedade de consumo, que pode ser realizada na escola, diz respeito a mudanças não apenas relativas ao ato de comprar, mas na construção de um universo intelectual do aluno que possibilite um entendimento de um sistema que privilegia o capital em detrimento de concretas relações sociais entre os indivíduos numa vida coletiva. Ao isolar o indivíduo, fugimos da possibilidade de verdadeira troca e da convivência efetiva e afetiva com os nossos pares, situação que fortalece os ideais próprios ao grupo (a promoção da divisão social é uma forte arma de quem detém o poder). A televisão e a mídia nos levam a mundos imaginários e inalcançáveis, o que transforma nossas vidas em verdadeiros simulacros – uma vida imaginária dentro de nós mesmos, dos aparelhos de televisão e dos computadores. As informações da mídia, geralmente, transformam a ausência de liberdade em ‟fatos naturais”, em “lei da natureza”. É desta forma que opera a ideologia.