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A Década de 1980: Modelo Integracionista da Educação

CAPÍTULO II: EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: POLÍTICAS E

3.2 A Década de 1980: Modelo Integracionista da Educação

Durante os anos 1970 e 80, momento em que no contexto global se inicia o período de integração, a pressão para fechar as grandes instituições ganha impulso e o Governo canadense desenvolve políticas e procedimentos para a inclusão de crianças e jovens com deficiências em salas de aula regulares. O marco do comprometimento do Ministério de Educação Canadense com a política de inclusão é datado de 1989, quando foi aprovada legislação reconhecendo que a prática anterior de educar os alunos em escolas segregadas foi ineficaz (BARTON, ARMSTRRONG, 2007).

A Portaria 150-1989 fornece a base legal para a inclusão de alunos/alunas com deficiências em salas de aula regulares e define quem são os estudantes que possuem “necessidades especiais”; descreve a obrigação dos conselhos escolares para consultar os pais na colocação de alunos com deficiência na sala regular; e descreve a política concernente à integração.

O critério de educabilidade presente no período de integração (TIMMONS, 2007), quando nem todos os estudantes com deficiência eram considerados “aptos” a estarem na mesma classe que os seus pares, é definido pelo documento canadense Special Education Services: A Manual of Policies, Procedures and Guidelines (1995, p. 23) como:

O princípio de “colocação no ambiente de aprendizagem mais propício” aplica-se quando são tomadas decisões sobre o grau em que um aluno está, se é possível colocá-lo em salas de aula regulares, ou se é atribuída uma colocação alternativa.

O princípio da integração de crianças e jovens com deficiência no sistema de ensino baseia-se na adaptação desses alunos ao ambiente escolar, em sala de aula regular e/ou através de classes especiais, sem que a escola, necessariamente, seja modificada em seus processos de ensino. Apenas acrescenta serviços adicionais direcionados à demanda de estudantes com deficiência. Mantoan (2010) destaca que o período da integração é criticado fortemente pelos/as pesquisadores/as que defendem o paradigma da inclusão porque supõe que, neste último, a mudança estaria na escola para receber as pessoas com deficiência e a diversidade torna-se a base para as metodologias de ensino. Para isso, são necessárias transformações nos relacionamentos pessoais e sociais e na maneira de compreender a pessoa com deficiência, que não é vista apenas por suas características físicas.

No modelo integracionista as pessoas com deficiência são avaliadas como „aptas‟ ou „não aptas‟ para conseguirem „acompanhar‟ os demais estudantes nas atividades comuns da classe regular. Na realidade canadense, a opção de estar ou não em uma sala de aula regular cabia aos pais juntamente com a avaliação da equipe escolar, considerando o momento histórico vivido pelo país no final do século XX. Aqueles/as taxados/as como incapazes de „acompanhar‟ a turma regular, devido à crença na sua limitação, eram direcionados/as para classes ou escolas especiais, tornando-se vítimas de preconceitos e estereótipos. Quando as famílias percebiam qualquer sinal de deficiência, encaminhavam seus filhos para uma avaliação e, a partir daquele momento, muitos deles eram afastados da família e colocados em escolas especiais, onde passavam muitos anos de suas vidas.

O pressuposto da deficiência como uma anormalidade física e intelectual foi responsável por um movimento internacional de direcionamento jurídico, intervenção educacional (com base na deficiência) e segregação espacial (através de ambientes „especiais‟). Segundo Glat e Ferreira (2003), a adoção de procedimentos educacionais com base em ideais de normalização (da maioria sem deficiência) e integração, através de ambientes especializados, acaba reforçando o rótulo e os estereótipos sobre essas pessoas, o que termina limitando o „destino‟ do grupo social de pessoas com deficiência. É o que vivenciou Janne, o atual presidente do People First, após a descoberta do “diagnóstico” de uma deficiência intelectual leve:

Eu morei com meus pais e minhas três irmãs até os nove anos de idade. Quando meus pais descobriram que eu tinha uma deficiência, eu tive que

deixar minha cidade, porque minha escola em Virginia disse-me que eles não poderiam me ensinar mais. Meu tio tinha essa instituição em Edmond e minha mãe decidiu que seria melhor para mim lá e então eu fui morar lá sozinho, longe dos meus pais e das minhas irmãs. Eu fiz toda a minha educação básica lá e, apesar de ter estudado até o ano 12, eles não me deram o certificado completo, só me deram até o ano 9. Eu me sentia mais confortável na escola regular que eu estudava antes porque eu estava perto da minha família. Eu preferia muito mais estar perto da minha família do que morar em uma escola especial ou alguma coisa deste tipo (Janne, deficiência intelectual)28

A experiência de Janne revela o estereótipo que há intrínseco a um diagnóstico de “pessoa com deficiência”, o que se tornou um agravante maior por ser uma deficiência intelectual, ainda que, como disse o próprio Janne: um quadro de deficiência leve. Na área educacional, a deficiência intelectual carrega ainda mais estigma se comparada a outras deficiências porque afeta a cognição – aspecto humano mais valorizado neste ambiente. A escola regular tem regras definidas no modo como aprender e expressar os conhecimentos, através do currículo e avaliação. Assim, as pessoas com deficiência intelectual são vistas como „fracassadas‟ na escola, por não responderem de forma idêntica aos demais estudantes (sem deficiência intelectual). A concepção de deficiência torna-se “biologicamente determinante e avaliativa (...) Sob os auspícios do modelo médico-psicológico, o aluno é responsabilizado pelo seu sucesso ou fracasso escolar, os quais são explicados pelas marcas de deficiência” (MICHELS, 2005, p. 11).

Não há, portanto, investimento suficiente no processo de aprendizagem dessas crianças e jovens ou mesmo, como no caso de Janne, ocorre um „corte‟ da pessoa do ambiente em que vive para outro lugar paralelo às demais pessoas „normais‟. A visão na limitação deste grupo passa a ser então predominante no sistema de ensino regular:

Alguns professores privilegiam o caminho das aprendizagens mecânicas quando atuam junto aos alunos que apresentam deficiência intelectual. Ao invés de apelar para situações de aprendizagem que tenham raízes nas experiências vividas pelo aluno, atividades essas de mobilizar seu raciocínio, propõem atividades baseadas na repetição e memória. Frequentemente essas atividades são desprovidas de sentido para os alunos. Esses professores privilegiam o caminho de aprendizagem mecânica sob o pretexto de que os alunos os quais apresentam deficiência intelectual manifestam numerosas

dificuldades no processo de aprendizagem (GOMES, POULIN,

FIGUEIREDO, 2010, p. 7, grifo meu).

28

O depoimento de Janne foi colhido através de entrevista individual, na cidade de Ottawa, por ocasião do

Fórum Mundial de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência. Sua entrevista ocorreu no dia 3 de dezembro de 2013.

Se não fosse a visão médica e patologizante, estereótipo que há por trás de uma pessoa com deficiência, Janne poderia ter tido a oportunidade de vivenciar uma escolarização na escola regular que permitisse seu desenvolvimento cognitivo e socioafetivo. Em uma história semelhante à de Janne, Richards também relata a sua experiência de ter sido excluído do seio de sua família e do ambiente da escola regular, ainda quando criança, após o diagnóstico de sua deficiência:

Eu morava com minha família, mas quando eu tinha oito anos descobriram minha deficiência e eu passei a viver em um group home, que era tipo uma escola especial onde a gente morava. Minha família me colocou lá por conta do meu comportamento e outras coisas relacionadas a isso. Minha mãe e minha professora da escola não podiam me controlar. Eu não gostava de morar lá, nós tínhamos que fazer as mesmas coisas sempre, eles que diziam o que deveríamos fazer. Eu não tinha escolha, nem sonhos, nem crescimento. Tudo era feito por eles. Eu morei lá durante 5 anos (Richards, deficiência intelectual)29.

Para Richards, a vivência em uma escola especial pelo fato de a família ter lhe excluído da convivência com eles e da escola lhe ter negado o direito de permanecer nela, acarretou para sua vida o peso da incapacidade que limitou suas escolhas. Isso restringiu as oportunidades de autonomização e da vivência de um processo de empoderamento. Nessa escola, Richards não teve o direito de acesso a uma educação de qualidade, nem lhe foi oportunizado aprender a fazer escolhas, ter sonhos, ter crescimento para uma vida adulta. Nesse período histórico, denominado de integração, ainda não existiam instrumentos jurídicos nacionais e internacionais30 que tornassem compulsória a obrigação do Estado de oferecer uma vida digna a todos os cidadãos, em condições igualitárias.

No sistema de integração, ainda quando aspessoas com deficiência permaneciam nas escolas regulares, elas não estavam isentas de preconceito e exclusão. A experiência de Joanne e de Richards (antes de ele ser encaminhado para a escola especial) ilustra a exclusão vivenciada por eles dentro do sistema regular no período da integração:

Antes de ir morar na escola especial, eu tive um tempo muito difícil na escola regular. As pessoas tinham preconceito comigo. Existiam muitos estereótipos aqui no Canadá em relação às pessoas com deficiência. Eu tinha alguns amigos na escola, mas era muito difícil. Eu estudava em uma sala segregada e eles perseguiam pessoas como eu o tempo todo. A

29

Richards possui deficiência intelectual associada a problemas psicológicos. Seu depoimento foi colhido

através de entrevista individual, na cidade de Ottawa, por ocasião do Fórum Mundial de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência. Sua entrevista ocorreu no dia 3 de dezembro de 2013.

30

Nesse momento, já havia sido publicada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), no

entanto, este documento possui natureza apenas declaratória e não tem o condão de obrigar os Estados-Parte a cumprir com os direitos nela prescritos.

lembrança que eu tinha do jardim da infância, quando eu estava na escola regular, era que os professores não tinham paciência comigo. Eles sempre me diziam: Vá sentar, vá sentar... não entendiam minha deficiência

(Richards, deficiência intelectual).

Eu tentei ir à escola regular, mas eles nunca me deram a chance. Então eu fui a uma escola especial e estudei lá dos 7 aos 14 anos. Essa escola era muito boa, mas o governo acabou com ela. Então, eu tentei novamente ir a uma escola regular e eles tinham uma sala especial para pessoas com deficiência. Quando eu estava tentando frequentar a escola regular, eles colocaram uma caixa bem grande ao redor da minha carteira, só assim ninguém podia olhar para mim. Meus pais adotivos não gostaram disto e eles me tiraram da escola (Joanne, deficiência intelectual)31.

As experiências dessas pessoas canadenses mostram que a exclusão e segregação as perseguiram tanto ao serem designadas a instituições especializadas – sem terem a oportunidade de participar da vida em sociedade – como também nas instituições de ensino regular, uma vez que no modelo integracionista elas são excluídas (SOARES, 2010; DANTAS 2011) das relações comuns através de classes especiais ou estratégias dentro da sala regular que distinguem e diferenciam os estudantes com deficiência, como foi no caso de Joanne.

Nas palavras de Skliar (2003, p. 23): “a visibilidade ou invisibilidade do outro depende do olhar que este recebe, sendo que é o olhar do sujeito que é capaz de sentenciar quem ele mesmo é e quem são os outros”. Ao sujeito visto como deficiente, anormal, diferente, inscrito numa ordem educacional que o aparta da normalidade, esta é a ordem que contribui para sua representação de pessoa estranha e não igual. Dessa forma, a própria forma como Joanne e Richards foram tratados tornou-se decisiva, naquelas situações de exclusão para o desempoderamento, no sentido de não resistência às barreiras encontradas por eles, ao se autorregularem também pela norma, embora em seus discursos (destacados acima) perceba-se que eles identificaram o demérito e a injustiça que sofriam apenas por ter uma deficiência.

Os depoimentos anteriores demonstram o quão desumanas eram as experiências que ocorriam nas escolas, nesse período histórico no Canadá, apesar de aparentarem algum avanço para a educação. A fala de Richards expressa as barreiras atitudinais existentes no relacionamento tanto com a professora quanto com os/as demais alunos/alunas e a concepção enraizada de que o problema estava no/na aluno/aluna com deficiência e não no ambiente que o/a cercava. Para Carvalho (2000), as barreiras atitudinais podem ser temporárias ou permanentes, sendo que são atitudes graves por acarretarem consequências diversas, uma vez

31

Joanne é uma das integrantes do grupo People First, da cidade de Vancouver, e o seu depoimento foi colhido

que atitudes negativas ou omissas impedem a convivência e também que a pessoa com deficiência desfrute do espaço comum.

Chama atenção a atitude de colocar uma caixa ao redor da carteira de Joanne para que os outros/outras alunos/alunas não pudessem vê-la. Isso constitui um atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana – base sobre a qual tem sido construído o movimento dos direitos humanos e, especificamente, da autoadvocacia de pessoas com deficiência. Com efeito, como discorrem Lima e Silva (2009), a forma de exclusão, manifestada nas falas e atitudes de alguns profissionais da educação, leva o aluno com deficiência, como vimos, a uma situação de segregação, fortalecendo o preconceito e a marginalização da pessoa com deficiência no contexto escolar.

Por outro lado, além das inúmeras barreiras atitudinais presentes nesse tipo de educação, encontra-se agregada também a falta de preparo dos professores e de ambientes adequados na escola. Além da inexistência de planos de ensino específicos para atender as peculiaridades dos alunos com e sem deficiência, não havia tampouco metodologias de didáticas voltadas para as multirreferencialidades dos sujeitos humanos, que possibilitem um processo de ensino-aprendizagem eficaz para todos/as os/as alunos/alunas, conforme mencionado no depoimento a seguir:

Eu estudei em escolas regulares, mas em classes especiais. Nos primeiros anos, estudei em classes segregadas e, depois, vivi o que eles chamam de integração. Até a série 10, eu estudei em classes segregadas e, depois, eu fui para a classe regular, mas eu tive muitos problemas. Por exemplo, eu deveria aprender a digitar, mas eu não conseguia, era muito difícil para mim. Para mim, tanto a classe especial quanto a regular, os dois são bons, eu não sei, os dois são o mesmo. Na classe regular, eu não tinha o apoio necessário, mas na classe especial, eles tinham classes menores, uma classe tinha 14, outra tinha 10 pessoas, eu acho. Mas na aula de digitação, por exemplo, eles tinham 25 ou 30 pessoas e era muito difícil para mim. Eles não tinham assistentes para ajudar (Barb Goode, deficiência intelectual)32.

Barb Goode também é uma das fundadoras do movimento de autoadvocacia e teve uma participação muito importante na luta a favor da efetivação dos direitos humanos para as pessoas com deficiência no Canadá, uma vez que liderou a militância contra a esterilização das pessoas com deficiência – que era comum de acontecer na realidade canadense33. O

32

O depoimento de Barb Goode foi colhido por meio de entrevista individual, realizada em sua própria casa na

cidade de Vancouver, no dia 15 de dezembro de 2013. Como uma das fundadoras da autoadvocacia, Barb Goode esteve presente na primeira conferência que deu início ao movimento.

33

O caso que Barb Goode participou é conhecido como caso EVE. Na época, Barb trabalhava na diretoria do

movimento de autoadvocacia do Canadá e levou à Suprema Corte o caso de uma mulher que os pais queriam esterilizar simplesmente pelo fato de a terem visto segurando na mão do namorado. Barb liderou a defesa deste

discurso de Barb é relevante para esta pesquisa, pois mostra a sua experiência de ter vivenciado a exata passagem do modelo segregacionista para o modelo de integração, aspecto de grande significado investigativo, uma vez que a experiência empírica vivenciada por pessoa canadense com deficiência serve de reflexão sobre os paradigmas sociais da deficiência já mencionados pela literatura científica há algum tempo.

3.3 Paradigma da Inclusão na Realidade Canadense: Primeiras Aproximações com