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O Papel das ONGs e Associações no Desenvolvimento das Pessoas com Deficiência

CAPÍTULO II: EDUCAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL: POLÍTICAS E

4.2 Dimensão Coletivo-Local

4.2.2 O Papel das ONGs e Associações no Desenvolvimento das Pessoas com Deficiência

As ONGs assumiram historicamente o papel de fornecer serviços às pessoas com deficiência, negados pelos governos, ficando a cargo delas o compromisso de fornecer „inclusive‟ a educação, consagrada como um direito humano universal e fundamental. Hoje as instituições, muitas vezes, ainda trazem o caráter assistencialista, fruto de uma tradição. No

contexto de educação inclusiva, essas instituições ainda têm o papel relevante, por fornecer o suporte para complementar os serviços oferecidos pela escola ou fora dela.

No Brasil, as instituições especiais, desde o período imperial, passaram a ter poder sobre os destinos das pessoas com deficiência. As instituições surgiram da sensibilidade de algumas pessoas sem deficiência e de familiares, especificamente mães de pessoas com deficiência que, por não terem a garantia dos direitos humanos de seus filhos – por exemplo, a educação –, resolveram por conta própria unir forças num espaço comum e oferecer serviços de reabilitação e educação aos seus filhos. Notou-se o aumento de instituições especiais por volta da década de 1920, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Amazonas e Rio Grande do Sul. O apoio governamental a essas instituições só foi minimamente garantido quando a elite intelectual brasileira começou a se preocupar com o nível de instrução da população para o progresso do país no começo do século XX (JANNUZZI, 2004).

As práticas pedagógicas e de reabilitação eram supervisionadas pelo campo médico e influenciadas pela Psicologia. Segundo Jannuzzi (2004, p. 31), a deficiência, qualquer que seja, era vista fortemente como anormalidade e, portanto, essas pessoas eram recolhidas do convívio com as demais pessoas da sociedade e passaram a viver isoladas em instituições especializadas:

O despertar dos médicos no campo educacional pode ser interpretado como procura de respostas ao desafio apresentado pelos casos mais graves, resistentes ao tratamento exclusivamente terapêutico, quer no atendimento clínico particular, quer no, muitas vezes, encontro doloroso de crianças misturadas às diversas anomalias nos locais que abrigavam todo tipo de doença, inclusive loucos.

Apesar das instituições especializadas terem surgido dentro de um contexto de omissão e negação dos direitos das pessoas com deficiência pelo Estado, essas instituições, muitas vezes, também eram locais em que as pessoas com deficiência sofriam práticas abusivas de violência simbólica e material, a partir da necessidade de reabilitação e educação que possibilitassem a elas uma proximidade máxima às características da não deficiência (normalidade). As pessoas com deficiência intelectual, por exemplo, eram submetidas a tratamentos psicológicos comportamentais aplicados àquelas pessoas com doenças mentais, como pressuposto de que elas iriam se „curar‟ de sua deficiência (JANNUZZI, 2004). Tais práticas ao invés de fornecer um suporte para a autonomia e empoderamento das pessoas com

deficiência, ao contrário, reforçavam a ideologia da normalidade e „justificavam o porquê‟ da negação dos direitos sociais das pessoas com deficiência, uma vez que seriam anormais.

As práticas das instituições especializadas só passaram a ser contestadas com o advento do paradigma da inclusão social do final do século XX. As instituições perderam força e houve um fechamento brusco de muitas delas, deixando diversas pessoas com deficiência sem os serviços antes recebidos por elas, uma vez que foi instituída a obrigatoriedade de estarem matriculadas no ensino regular. Paralelamente, algumas instituições mantiveram projetos educacionais relacionados à inclusão socioeducacional, articulando-se às leis brasileiras do presente. Muitos desses projetos têm servido como suporte para o empoderamento e a autoadvocacia, através da ampliação das oportunidades de inserção em um contexto social mais amplo, considerando o distanciamento do passado de confinamento das pessoas com deficiência nessas instituições especializadas, como no trabalho realizado pela APAE de Brasília, junto ao Tribunal de Justiça.

No Brasil, instituições como a APAE e a Associação Carpe Diem desenvolvem trabalhos que têm como finalidade incluir crianças, jovens e adultos na vida social, no sistema de ensino regular e no mercado de trabalho. No Canadá, as instituições realizam trabalhos de itinerância, de apoio às escolas e universidades de ensino regular. Ainda que as propostas sejam inclusivas e de empoderamento individual, muitas instituições têm força sobre a voz das pessoas com deficiência, que são tuteladas pelas permissões institucionais.

A Associação Carpe Diem se destaca nesta pesquisa, por oferecer projetos educacionais, tendo o protagonismo de pessoas com deficiência como base para as suas ações, como: o Projeto Pipa, que teve como foco a formação para a sexualidade e saúde. Nesse projeto, Mariana, Bia e Thiago (jovens com deficiência intelectual) tiveram a oportunidade de aprender sobre o seu corpo, o direito ao matrimônio e à reprodução, prevenção à gravidez e ao abuso sexual, o que contribui para criar uma consciência sobre si e para diminuir as chances de vulnerabilidade, comparando com pessoas com deficiência que não têm acesso a essas informações; e o Projeto Cidadania, voltado para a discussão e conscientização dos direitos das pessoas com deficiência, do qual faz parte o grupo “Com a palavra o jovem com deficiência intelectual”, em que as pessoas com deficiência intelectual participam de eventos, proferindo palestras que dão visibilidade ao seu grupo social. Os relatos dos jovens citados comprovam a intervenção social dessas práticas educativas, na medida em que, ao mesmo tempo em que eles/elas se empoderam contribuem para empoderar outros sujeitos.

Diferentemente do Brasil, no Canadá, o Governo assumiu a responsabilidade sobre as instituições de pessoas com deficiência, onde estas viviam desde logo após o nascimento até,

muitas vezes, à morte, fora do convívio da família e da sociedade. Neste momento mundial de educação inclusiva, muitas dessas instituições foram fechadas pelo movimento de autoadvocacia e as ONGs passaram a assumir um papel fundamental na inserção de pessoas com deficiência na comunidade, oferecendo suporte e serviço em várias esferas, como moradia, educação, emprego, matrimônio, etc.

O People First é um exemplo dessas ONGs que desenvolve um trabalho de relevância para pessoas com deficiência intelectual. É interessante destacar que essa organização surgiu do movimento das pessoas com deficiência e pelas próprias pessoas com deficiência, que passaram a planejar, gerenciar e executar as questões que dizem respeito aos seus próprios interesses. O People First tem por objetivo formar pessoas com deficiência para o exercício da autoadvocacia na esfera pessoal, educacional e social, atingindo a participação desse grupo na esfera política, junto aos órgãos governamentais. Richards, ex-presidente do People First, afirma em seu depoimento a satisfação de contribuir para o empoderamento de pessoas com deficiência, que, assim como ele, viveram situações de opressão e discriminação. O seu trabalho, enquanto autoadvogado, é desenvolvido por meio de palestras, oficinas, cursos, fóruns no Canadá e em outros países, como o Brasil.

No Brasil também existiram instituições fundadas pelas próprias pessoas com deficiência que passaram a questionar a caridade e as políticas de assistência prestadas por associações que pessoas sem deficiência estavam à frente e que prestavam serviços às pessoas com deficiência. Ao se organizarem, as pessoas com deficiência puderam assumir um novo paradigma de sociedade e de homem, contribuindo para a quebra das grades invisíveis do consenso que as proclama incapazes (CAIADO, 2009). Segundo Júnior (2010), esse processo de associações criou o ambiente para a formalização da consciência que resultaria no movimento político das pessoas com deficiência na década de 1970:

A partir de meados do século XX, é possível observar o surgimento de organizações criadas e geridas pelas próprias pessoas com deficiência. A motivação inicial é a solidariedade entre pares nos seguintes grupos de deficiência: cegos, surdos e deficientes físicos que, mesmo antes da década de 1970, já estavam reunidos em organizações locais – com abrangência que raramente ultrapassava o bairro ou o município–, em geral, sem sede própria, estatuto ou qualquer outro elemento formal. Eram iniciativas que visavam ao auxílio mútuo e à sobrevivência, sem objetivo político prioritariamente definido. Essas organizações, no entanto, constituíram o embrião das iniciativas de cunho político que surgiriam no Brasil, sobretudo durante a década de 1970 (JUNIOR, 2010, p. 28).

As duas realidades dos países se distinguem pela questão financeira. No Canadá, as organizações são financiadas pelo Governo e, por isso, atingem um número maior de pessoas

com deficiência: as pessoas com deficiência que querem participar dos projetos não precisam pagar por eles. No Brasil, as organizações são iniciativas pontuais que dependem de doações, financiamento através de editais periódicos, ademais, na maioria dos casos, as pessoas com deficiência precisam pagar pelos serviços, não atingindo pessoas com baixa renda.

É notável a influência social que as ONGs, tanto brasileiras quanto canadenses, exerceram historicamente sobre a vida das pessoas com deficiência. As ONGs que existem até hoje tiveram que se adaptar às políticas de inclusão e muitas têm desenvolvido um trabalho de visibilidade, empoderamento e autoadvocacia de pessoas com deficiência. Mesmo em uma era chamada “inclusiva”, essas instituições não perderam a sua importância, uma vez que seus projetos possuem como foco o suporte e a inserção social.

As ONGs, articuladas aos movimentos sociais das pessoas com deficiência, fazem parte de uma política de identidade. Elas se sustentam no essencialismo sobre a deficiência, recorrendo à história e à biologia para afirmar tal identidade, o que envolve a “celebração da singularidade cultural (...) o essencialismo pode, assim, ser biológico e natural, ou histórico e cultural. De qualquer modo, o que eles têm em comum é a concepção unificada da identidade” (WOODWARD, 2012, p. 34-35). O fato de a deficiência ser vista como uma identidade estática através dos serviços ofertados pelas instituições especializadas anula outras marcas culturais e a própria diversidade nas escolhas e formas de vida entre as pessoas desse grupo. O essencialismo leva à homogeneidade e, por isso, todas as pessoas com deficiência, independentemente da vontade e expressão particular, „naturalmente‟ precisam de serviços especiais mesmo em sistemas ditos inclusivos.

Ora, será que desenvolver o empoderamento e autoadvocacia apenas entre os iguais através de instituições especiais – somente aqueles que têm deficiência – seria sustentar a própria identidade histórica sobre essas pessoas (identidade de um grupo à parte da sociedade), uma forma de assistenciá-las e protegê-las? Ou, as instituições especiais ao se dispor em empoderar e autoadvogar pessoas com deficiência estariam possibilitando a esse grupo o direito de autoafirmar-se e adquirir uma consciência sobre si?

É nesse cenário de contradições que as ONGs estão inseridas na sociedade. Ao mesmo tempo em que elas reproduzem a história de segregação e distinção do grupo de pessoas com deficiência através dos seus discursos e práticas, elas também são espaços que contribuem para o fortalecimento da identidade desse grupo, para a emancipação social e a autoadvocacia das pessoas com deficiência nas suas próprias causas, o que não deixa de ser de extrema relevância no momento das políticas de inclusão.